|
55. BIENNALE DI VENEZIA. IL PALAZZO ENCICLOPEDICOSOFIA NUNES2013-06-27De tempos em tempos, no mundo da arte contemporânea, surgem exposições de grande formato que perspetivam a curadoria como um campo de reflexão resultante de uma investigação profunda que determina, explora e complexifica um problema preciso, despoletado pelos próprios objetos apresentados, ao mesmo tempo que reinventa a sua prática. A exposição central da 55ª Bienal de Veneza, O Palácio Enciclopédico, comissariada por Massimiliano Gioni (Busto Arsizio, 1973) é uma dessas exposições, sendo portanto exÃmia e muito estimulante do ponto de vista curatorial. O seu ponto de partida é uma maquete de um museu imaginário concebida por Marino Auriti, um artista autodidata, em 1955. Nesse enorme museu, que dá tÃtulo à bienal, mas que nunca saiu de projeto, caberiam todos os saberes do mundo e conquistas da humanidade, desde a roda, ao satélite, passando pelos artefactos e as vanguardas artÃsticas. Um sonho que Auriti partilhou, nas palavras do curador, com “muitos outros artistas, escritores, cientistas e profetas auto-proclamados que tentaram em vão, construir uma imagem do mundo que captasse a sua infinita variedade e riqueza.†Recuperar esta utopia requer, porém, que a olhemos a partir das condições históricas atuais e extrair certas consequências, como Gioni o faz. Assim, se hoje o sonho pelo saber universal e o acesso a toda a história parecem ter-se atualizado à luz da cultura da hiperconetividade e da profusão de imagens e informação via google/facebook, nunca, por outro lado, a capacidade de inventar novas imagens nos pareceu tão parca e, simultaneamente, urgente. Neste sentido, esta é uma exposição que considera aquela contradição para reativar a importância da esfera da imaginação, perscrutando os lugares da imagem na relação com a experiência do mundo. Gioni, prefere, por isso, considerar a imagem como uma noção elástica e pluriforme, que tanto pode ser trabalhada do ponto de vista bidimensional, tridimensional ou corporal, por artistas profissionais, autodidatas e não artistas (mas artistas dentro da exposição). Paralelamente, opta por uma narrativa de corte histórico sincrónico que abrange o século XX e primeiras décadas do XXI, onde diferentes gerações de artistas dialogam entre si e a problemática central surge tratada de modo prismático. Como tal, as múltiplas cosmologias pessoais que se vão sucedendo ao longo da exposição, vão também conferindo diferentes ordens discursivas à imagem. A exposição abre, não por acaso, com o Livro Vermelho, 1914-30 de Carl Gustav Jung, um manuscrito iluminado que reúne um conjunto de interpretações das suas visões e fantasias mais profundas. Assente na técnica da “imaginação ativaâ€, o manuscrito constituiria um exemplo de como o “inconsciente individualâ€, imprescindÃvel à sua teoria da individuação, se manifestava em imagens, narrativas ou simbólicas, e como através destas, o homem podia aceder à totalidade da psique. Ora a atenção dada aos sonhos, intuições, visões e alucinações é, assim, levantada para de seguida assumir centralidade junto da maioria dos trabalhos apresentados no Pavilhão Central, que somam também outros interesses ligados, concretamente, à tentativa de compreensão de fenómenos imperceptÃveis e estranhos ao conhecimento [1]. Entre esses trabalhos, encontramos os esquemas a giz sobre cartolina negra, feitos por Rudolf Steiner durante as aulas que deu nos anos 1920, dedicadas ao estudo da Antroposofia e à interpretação do mundo através de experiências espirituais e mÃsticas de base cientÃfica. A coleção de pedras raras de Roger Caillois, cujos padrões variados e a riqueza cromática permitiram-lhe, com base no seu modelo de “ciência diagonalâ€, traçar analogias semânticas entre o mundo mineral e o mundo animado e meditar sobre os fluxos de energia em toda a matéria. As aguarelas coloridas de 1938 de Aleister Crowley, mago e ocultista que visitou Fernando Pessoa em 1930, pautadas por uma linguagem de influência art deco e simbolismos diversos impulsionados pelas práticas do ocultismo, budismo e consumo de alucinogénios. Ou os desenhos geométricos de Emma Kunz, iniciados em 1939, no contexto das suas sessões terapêuticas, que apontam para o poder paliativo da imagem fundado numa ideia de consciência superior que apreenderia as forças invisÃveis do mundo visualmente perceptÃvel. Já em João Maria Gusmão e Pedro Paiva, representados numa grande sala do Arsenal com várias projeções de filmes 16mm (2007-2013), algumas destas preocupações reaparecem desviadas pelo pensamento ficcional da “abissologia†que ambos engendram, jogando sistemas de devires paradoxais contra sistemas de crença (racionalista ou mÃstica) [2]. À medida que avançamos no Arsenal, as investigações em torno da imagem direcionam-se progressivamente para a questão do digital, do excesso de informação que povoa o quotidiano e para a indagação de formas de conhecimento e experiência organizadas pelas novas tecnologias. A este respeito salientam-se os vÃdeos: The Trick Brain, 2012 de Ed Atkins, uma filmagem da coleção pessoal de André Breton que estabelece uma analogia entre a imagem digital/código e a ideia de morte associável à ideia de coleção. Kempinski, 2007 de Neïl Beloufa, onde o presente é tido pelos intérpretes como um tempo preenchido de virtualidades tangÃveis: a telepatia, carros com voz, viagens à s estrelas num segundo. Das Hole, 2010 de Jos De Gruyter e Harald Thys, uma conversa interpretada por três manequins que ironiza a aceitação e incorporação imediatas do digital tanto na vida como na arte. Grosse Fatigue, 2013 de Camille Henrot, que apresenta a subjetividade enquanto terreno inimigo dos diferentes sistemas arquivÃsticos inventados pelo homem através de uma narrativa assente em texto/poesia lido em voz off e interfaces gráficos de utilização informática. E os vÃdeos e cenários, 2013 de Ryan Trecartin que investigam os processos identitários marcados pela indefinição de géneros e pelo registo compulsivo do corpo em vÃdeo, a par da sua exposição histérica e quase desesperada. Mas Gioni amplia também as possibilidades da imaginação a outros domÃnios, sendo possÃvel pensarmos a produção de imagens associada ao desejo e fantasias sexuais (Sarah Lucas, Evgenij Kozlov, Kohei Yoshiyuki ou Robert Crumb); à representação (Fischli & Weiss, Tacita Dean, Shinro Ohtake ou Laurent Montaron); à identidade (Geta Bratescu, Eva Kotátková ou Victor Alimpiev); à invenção de novos sistemas de linguagem (Fréderic Bruly Bouabré, Channa Horwitz, Steve McQueen, Tino Sehgal ou Xul Solar); à colonização e mercantilização da própria imaginação (Danh Vo ou Harun Farocki); e ao corpo, relação que alcança, por ventura, o melhor momento com Cindy Sherman. Convidada para comissariar um projeto dentro do Arsenal, Sherman apropria-se do problema geral da exposição para interrogar as representações e percepções anatómicas, reunindo trabalhos de artistas e materiais encontrados, voltados, por exemplo, para as funções internas do corpo humano (Paul McCarthy), as memórias assustadoras de infância (Robert Gober), os usos da fotografia como técnica de visualização de sonhos e obsessões (coleção de fotografias de estúdio tiradas por Norbert Ghisoland entre 1918-39) ou a instrumentalização dos comportamentos por via dos brinquedos e bonecas (Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi). A escolha de Apollo’s Ecstasy, de 1990, de Walter de Maria, que encerra a exposição é também bastante curiosa, já que falamos de uma instalação de grande rigor matemático, mas cuja forma admite a rutura da polarização clássica entre os vetores apolÃneos e dionisÃacos. Um aspeto que de resto ecoa a mecânica da criação de imagens que o curador persegue e sustenta ao longo da bienal, salvaguardando a liberdade de imaginar como reduto da subjetividade. Se a exposição tem o mérito de resgatar a questão da imaginação, um pouco esquecida pelas desconstruções à antropologia filosófica, e de repensá-la sob o presente com sentido crÃtico, ela denota porém certas fragilidades que se prendem com o entendimento da imagem que veicula. Para Gioni importa compreender a imagem enquanto imagem gerida no interior da mente, ou seja, como “imagem interiorâ€, citando Hans Belting. Sabemos que o desacordo face à s posições estruturalistas e da “nova†história da arte, levaram Belting a desenvolver uma teorização antropológica da imagem fundada numa relação triádica entre imagem-medium-corpo, onde a imagem se oferece já não como signo mas como anterioridade: entidade interior e abstrata, fruto dos sonhos, visões e memória do homem, que aguarda por um suporte/corpo para se presentificar e, em última instância, testemunhar, junto de quem a percepciona, a sua condição de invisibilidade e ausência. Este é o movimento que aliás espreita o próprio pictograma de divulgação da bienal: de dentro de uma cabeça de homem saem várias setas amarelas grandes para o exterior e de fora surgem pequenas setas azuis que apontam para o interior daquela. Um movimento demasiado antropocêntrico e metafÃsico, parece, para interpelar as forças da imaginação e da produção de imagens fora de uma orla mÃtica, pelo que, corre o perigo de as remitificar também. Sofia Nunes Notas [1] Algo que tem ressurgido em força na produção artÃstica atual, sobretudo desde 2010. [2] João Maria Gusmão e Pedro Paiva são os únicos portugueses representados na exposição central da bienal. |