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DIÁRIO DE UMA PANDEMIAFÁTIMA LOPES CARDOSO2020-09-16
Que possibilidade tem o fotojornalismo nacional de encontrar uma montra menos efémera do que as páginas da imprensa e vencer a fugacidade do acontecimento? Momentos únicos, neste caso com profunda carga negativa, exigem ideias excecionais. Se os jornais, revistas e online, mesmo com o espaço infinito que poderia significar o digital, não deixam o fotojornalismo português mostrar a sua força, condicionando, por inúmeros motivos que já ficaram registados em estudos sobre os média, a vontade dos profissionais testemunharem um momento único no mundo, os fotógrafos reagem. Emergem projetos nos novos meios e, eventualmente, agigantam-se. Se a todos os constrangimentos editoriais se acrescentar a fúria de um vírus que obriga o mundo a parar e impede os fotógrafos de documentarem os pulsares do quotidiano dignos de notícia, o ensejo de fotografar e testemunhar o que apenas se esperava ser possível na ficção transforma-se numa vontade indómita. Os fotógrafos não podem confinar as câmaras, mesmo que a realidade a documentar esteja entre quatro paredes das suas casas.
O fotojornalismo a dar a volta à Covid-19 “Diário de uma Pandemia”, a exposição de fotografia e multimédia que se encontra patente ao público até 31 de outubro de 2020, no espaço da associação CC11, em Lisboa, é a prova da necessidade absoluta que os fotojornalistas têm de captar o momento. Quando o Presidente da República decretava estado de emergência em território nacional e o confinamento dos portugueses, o Instagram recebia, entre milhares de fotos supérfluas que por ali circulam, o EverydayCovid. Pensado por Miguel A. Lopes, da agência Lusa, e pelo fotojornalista Gonçalo Borges Dias, depressa a ideia envolveu dezenas de outros fotógrafos, incluindo não profissionais, atraídos pela possibilidade de participar num registo único na História, pelo menos, para a fotografia. O Instagram acolhia mais fotografias do que aquelas que a imprensa poderia naturalmente comportar, mostrando como o país, de norte a sul, nos espaços exteriores, públicos ou íntimos, reagia à Covid-19. “Como fotojornalista e ao ver o que acontecia no mundo por causa do coronavírus e a situação a alastrar-se a Portugal, senti-me na obrigação de documentar essa realidade. A última pandemia foi há cem anos e não existe praticamente registos fotográficos desse momento”, sublinha Miguel A. Lopes. O que poderia - continua um dos dois mentores do projeto - “ser só uma brincadeira passou a algo mais sério porque começámos a receber trabalhos com muita qualidade. Todos os participantes se mostravam muito empenhados. O entusiasmo de todos deu-nos mais vontade de continuar. Senti que não podia passar esta época sem fotografar. Estava a trabalhar para a agência Lusa 15 dias e nos outros 15 dias continuava a fotografar”.
Dignificar a fotografia Da realidade digital, o EverydayCovid teve a oportunidade de ganhar outra materialidade quando a associação cultural CC11, dedicada à fotografia, decidiu contrariar a inércia obrigatória do confinamento, e transportar uma amostra do projeto para um espaço revitalizado no bairro de Alvalade, em Lisboa, com 86 fotografias ampliadas em diversos formatos. Bruno Portela, um dos antigos organizadores do Estação Imagem - que passados 11 anos desde a sua criação continua a premiar os melhores trabalhos dos fotojornalistas portugueses -, acreditou que não existia nada mais singular para mostrar o espírito da nova associação que fundou em janeiro de 2020, em Lisboa, juntamente com outros 30 fotógrafos, realizadores e videógrafos do que imagens que uniram os fotógrafos numa situação de crise e impelidos pela vontade de não deixarem perder a memória deste momento inédito: “Há duas formas de valorizar o fotojornalismo, que tem uma natureza efémera na imprensa: o livro e a exposição. Embora não tenha tanta longevidade como o livro, a exposição confere à fotografia outra áurea e significado. Neste momento, os fotojornalistas enfrentam uma época muito complicada desde que a fotografia passou a ser desvalorizada na imprensa, onde muitos profissionais se encontram em situação precária e a recibos verdes. A missão da CC11 é promover os fotojornalistas e o seu trabalho. O facto de os colocar em exposição e - esperamos -, no futuro, querer publicar livros e ter uma revista só dedicada à fotografia contribui para essa valorização da imagem documental e jornalística. O facto de as fotografias de um acontecimento passado voltarem a ser observadas em exposição e publicadas em livro também lhes dá outro prestígio.” Numa altura em que todas as pessoas fotografam com os seus telemóveis e partilham imagens nas redes sociais, “Diário de uma Pandemia” vem, segundo o membro da direção da CC11, “lembrar o que torna o fotojornalismo único e que, nestas situações, transforma-se em algo ainda mais importante. Se as pessoas visitarem a exposição percebem que o trabalho de um profissional é meritório e consegue contar muito melhor a sua história do que as imagens que elas fazem no seu quotidiano”.
©Rui Oliveira / EverydayCovid.
Imersão visual num país em confinamento Com escolha fotográfica dos fotojornalistas Daniel Rocha, Ilídio Teixeira, Luís Filipe Catarino e Tiago Miranda, quatro profissionais reconhecidos no meio, “Diário de uma Pandemia” começa por ser uma imersão num país na penumbra e em choque por perder a liberdade por causa de um vírus desconhecido ao Homem e à Ciência; mostra o desalento de médicos e enfermeiros que tentavam combater a doença no embate com o sofrimento de quem foi infetado, mas também a alegria ou inocência das crianças que encontram novas formas de brincar e de aprender longe dos bancos das escolas; dos portugueses que vagueiam perdidos pelas cidades desertas ou dos muitos confinados em casa que tentam reinventar a dinâmica dos dias, como a mulher que, depois de uma longa vida, espera fechada em casa a observar o arco-íris pela janela; de idosos a viverem em lares e que ficaram impedidos de abraçar e receber os sorrisos do seu universo de afetos e, numa fase mais positiva, de quem procura o regresso ao mundo, agora assombrado por um vírus sem vacina.
Claro e Escuro, de Luísa Ferreira.
Mostras paralelas, como “Claro e Escuro”, de Luísa Ferreira A par do projeto do Instagram, “Diário de uma Pandemia” integra ainda mais três mostras: “Retratos de Portugal pelas Agências de Notícias”, uma seleção de fotografias dos fotógrafos que trabalham em território nacional para as agências AFP, AP, Getty Images, Epa/Lusa e Reuters. São cerca de 40 imagens que retratam como Portugal reagiu à Covid 19; “Dias da Pandemia pela Imprensa Nacional”, onde estão reunidas algumas das melhores primeiras páginas de jornais e capas de revistas, recolhidas durante 18 semanas e com seleção de João Paulo Cotrim. Com um olhar diferente e crítico sobre como o ser humano continua a destratar o meio-ambiente, surge ainda a instalação artística “Claro e Escuro”, da fotógrafa Luísa Ferreira. “É quase um diário da nova vivência. Procurei captar o vazio da cidade, que até me agrada do ponto de vista da fotografia. Mostrar como, de repente, realidades que pareciam tão distantes, como as que víamos nos habitantes da China, da Índia ou outros lugares populosos, a circular nas ruas de máscara, como proteção contra a poluição ou outros agentes agressores, se tornou também parte do nosso quotidiano. Nunca pensei que essa realidade nos pudesse acontecer. Depois, é também uma crítica aos atos das pessoas que deitam máscaras ou luvas usadas para o chão e que podem ser perigosas para os outros, sem qualquer respeito pelo mundo em que vivemos. A mostra começa com imagens captadas a 12 de março e termina com os meus pais, a serem despejados de casa, por causa da gentrificação”, descreve a autora.
O lugar da imagem do real As primeiras imagens do EverydayCovid foram publicadas na rede social a 16 de março e o projeto continuou até ao retomar de uma “nova normalidade”. Num mundo em suspenso, muita gente reagiu à força da imagem do real. Quando o sentimento era desalento, mas deveria ser de alegria para poder celebrar os 46 anos de democracia e da liberdade, uma fotografia de José Sena Goulão, ao serviço da agência Lusa e publicada no EverydayCovid, onde um antigo capitão de Abril é captado de costas segurando a bandeira nacional tombada no chão e a caminhar em direção ao Marquês de Pombal, dá um soco no estômago dos portugueses e lembra que nunca se pode desistir, mesmo que a ordem seja para confinar. A rebeldia de um resiliente de Abril ilustra o quanto a fotografia de imprensa, no seu silêncio, pode ser impactante e inesquecível. Como lembra o autor, “senti que aquela era a foto que dizia tudo”. O studium e o punctum da fotografia, na perspetiva de Roland Barthes, na obra A Câmara Clara, aquilo que identificamos coletivamente e a ferida que a imagem nos provoca a nível singular, concentram-se num mesmo registo visual e em tantos outros que nos atraem, sem resistência, na exposição “Diário de uma Pandemia”. No Instagram, a imagem obteve 330 comentários e 5933 gostos. Muitas outras fotografias permanecem na rede social como se ficassem, citando o fotógrafo e um dos curadores da exposição Tiago Miranda, “na cápsula do tempo desta época que vivemos”. No Instagram, o EverydayCovid ficou adormecido a 7 de junho com 635 publicações, algumas com sequências fotográficas, da autoria de 119 autores portugueses e, no final, 19,4 mil seguidores. O projeto também ambicionava, desde o início, ganhar outra materialidade em livro. Neste momento, o livro já se encontra numa fase final e em pré-venda, tornando possível que 500 fotografias representativas dos momentos mais marcantes destes dias de incerteza sejam eternizadas com a nobreza que só o livro consegue. Por agora, abrem-se as portas da exposição ou das redes sociais.
Fátima Lopes Cardoso
Exposição “Diário de uma Pandemia”
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