|
NICOLE EISENMAN: AH! JE RIS DE ME VOIR SI BELLE EN CE MIROIR...ANTÓNIO PRETO2007-07-02Tendo por referente e pano de fundo a História da Pintura, o trabalho da artista americana Nicole Eisenman afigura-se, no sentido literal do termo, como uma proposta de releitura dessa história, actualizada a partir de um ponto de vista que se situará algures entre uma versão lésbica do feminismo e uma crítica dos “costumes”. O programa é claro quanto às suas estratégias e intenções: trata-se de desconstruir a “formulação masculina” tanto do discurso historiográfico dominante como da tradição iconográfica e iconológica da pintura figurativa ocidental – cotejada com os valores da sociedade contemporânea –, através de uma perspectiva satírica, próxima da sensibilidade do cartoon underground. A alusão, a transfiguração, a recontextualização, a reversibilidade, a anedota e a profanação iconoclasta são assim, em Eisenman, as vias possíveis para aquilo que podemos designar como uma contrafacção feminista da História da Arte. Concebida e realizada em parceria com a Kunsthalle de Zurique, a exposição “Nicole Eisenman”, patente no espaço Le Plateau (galeria do FRAC – Fundo Regional de Arte Contemporânea / Ile-de-France), dá a ver um conjunto de cerca de trinta pinturas e cem desenhos realizados entre os anos noventa e a actualidade. Numa postura neo-pop, Eisenman referencia e recicla obras específicas, temas, esquemas compositivos e soluções plásticas de artistas tão diferentes como Rubens, Ticiano, Picasso, Chagall ou Delacroix, produzindo, como Hogarth, uma reinterpretação da pintura histórica e de género (entendida à luz da actualidade, da “guerra dos sexos”, do discurso dos media e da vernaculidade da cultura popular), convertida, na maioria das vezes, numa representação grotesca dos mitos contemporâneos e respectivas celebrações. Imune à influência hegemónica da arte minimal e conceptual, Nicole Eisenman tem desenvolvido um trabalho que concilia maneirismo e ecletismo. O tom homérico da pintura de Rubens, aliado à versatilidade de Ticiano, desagua num regime de formulações que, indo do rigor da pintura flamenga à bad painting, passando pelos arquétipos renascentistas, pelo dinamismo barroco, pelas deformações modernistas ou pelos efeitos expressionistas, é invariavelmente subordinado à figuração ou, mais exactamente, à tematização. A história da pintura é pois tomada apenas como pretexto ou para uma inversão de papéis, na maioria das vezes primária (preservando os elementos iconográficos, a mulher toma o lugar do homem) ou para a afirmação do homoerotismo como resistência à “predação” masculina. A figura da mulher, ora vítima, ora carrasco, subjugada por um papel social ou, pelo contrário, emancipada de todos os ditames da moda, feminil ou virilizada, submissa ou amazona, é o centro de um escólio que, com algum cinismo, critica a tradicional reificação da nudez feminina ao mesmo tempo que a erotiza e reitera enquanto objecto de desejo. Passando em revista as bandeiras e antagonismos de algumas das principais teorias feministas do século XX – é possível, com alguma boa vontade, detectar comentários, parcamente fundamentados e mais ou menos caricaturais, tanto à perspectiva “culturalista” de Simone de Beavoir (que enquadra a condição feminina numa realidade histórica e socialmente construída), como à concepção “essencialista” de Julia Kristeva (que pensa o feminino no quadro psicanalítico da exclusão abjeccionista e da alteridade radical), mas também à via “esteticista” de Susan Sontag (que produz um raciocínio sobre o feminino no âmbito de uma política da representação) ou à “militância-espectáculo” de Camile Paglia (dita “a feminista mais machista de todos os tempos”, votada a um activismo pela via do escândalo) –, Nicole Eisenman furta-se no entanto a qualquer tomada de posição ou reflexão aprofundada face a essa história que convoca sem problematizar. Embora afirmem algumas preocupações quanto à função social da artista-mulher hoje e interroguem da validade e da pertinência de se continuar a pensar numa “arte de género”, as imagens de Nicole Eisenman estão sobretudo ao serviço de uma narrativa de pendor biográfico que passa muitas vezes pela auto-representação. Fazendo uma panorâmica pelos trabalhos agora apresentados no Plateau, encontramos, além das referências mais eruditas (entre o épico e a ostentação camp), todos os estereótipos, sobejamente conhecidos, das versões mais populares de um determinado quotidiano no feminino, profusamente comentado com anotações gráficas de diversa ordem: entre outros, a dona de casa aprisionada atrás das panelas, a adolescente melancólica, a família disfuncional, a burguesa engalanada, não faltando ainda uma vasta gama de pin-ups dispostas aos mais variados humores e situações. Este pitoresco, que mascara com humor um certo reaccionarismo com que se propõe, constitui a dimensão mais enfática do trabalho de Nicole Eisenman que assim se descentra daquelas que são provavelmente as questões mais atinentes à reflexão que hoje se produz sobre as problemáticas de género e que correspondem à desmontagem e a um entendimento transversal da questão, apenas realizáveis através de uma perspectivação histórica. O que se poderia esperar ser o cerne da questão não passa assim de um rascunho a traço grosso. Em Portugal assiste-se actualmente ao ressurgimento, no âmbito das artes plásticas, de uma determinada “agitação feminista”, conduzida sobretudo por mulheres, radicadas, na sua maioria, no Porto. A aparente novidade do fenómeno é proporcional à mansidão dos movimentos femininos, seja nos alvores da revolução republicana, seja no presente (veja-se o caso recente da discussão em torno do aborto), mas também ao rápido esquecimento e à falta de diálogo desta nova geração com a precedente (podemos citar, a título de exemplo, o “matricismo” de Natália Correia; a herança da Marquesa de Alorna reclamada por Maria Teresa Horta, uma das “três Marias”, empenhadas na transgressão dos códigos morais e conduzidas à barra do tribunal em vésperas da Revolução; ou, no caso específico das artes plásticas, a reflexão sobre o território doméstico levada a cabo por Ana Vieira; a desdramatização dos símbolos culturais ligados aos géneros, por Clara Menéres; ou as estratégias de padronização, descapitalização e despossessão falocráticas ensaiadas por Maria José Aguiar), da qual parece ter-se descartado sem grandes contemplações. Sejam quais forem as vias, se não quiser ser mera ilustração, a verdadeira acção política terá, neste como noutros casos, de ganhar uma voz pública na rua e estará, seguramente, contra o facilitismo e a omissão, do lado oposto ao cliché e à caricatura. António Preto |