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GRUPO EMPREZA E A MORADA INFERNAL DA ARTEJULIANA DE MORAES MONTEIRO2014-07-15A palavra empresa, por mais que tenha sua conotação relacionada ao mundo econômico, também guarda o sentido de aventura e empreendimento. Umas das acepções do termo que aparece no dicionário é o de “ação árdua e difÃcil que se comete com arrojoâ€. Para quem conhece a longa trajetória do Grupo EmpreZa, coletivo de Goiânia, a exposição que ocupa duas salas do Museu de Arte do Rio é uma excelente oportunidade para acompanhar a arriscada aventura desse grupo fundado há 13 anos e as ações árduas e difÃceis empreendidas por eles no campo da performance, fruto de um intenso exercÃcio de pesquisa e elaboração. A exposição Eu como você, que traz já no tÃtulo a marca da relevância do corpo no trabalho do coletivo, se apresenta como uma das raras vezes em que se pode conferir as performances e a pesquisa do EmpreZA no Rio de Janeiro. Além da exposição fixa nas salas, Eu como você conta ainda com serões performáticos e uma área que funciona como uma ampliação do espaço de constituição da obra, onde o visitante pode se integrar e participar do trabalho do grupo, intitulada Sua vez. Ao transitar pela primeira sala de exposições vemos os registros das performances – em fotografia e video - e alguns objetos materiais dispostos ao longo da sala, evocando alguns dos mais significativos trabalhos do grupo, como a bacia com pedras ensanguentadas de Vila Rica. Além do evidente traço do grupo, no que se refere ao uso da expressão do corpo como linguagem artÃstica, o que vem à tona durante a exposição é a confirmação de que o EmpreZa é um conjunto coeso, na qual as singularidades de cada indivÃduo cede lugar à unicidade do coletivo. Para o EmpreZa, o coletivo não é só uma forma de aglutinar semelhanças, mas sobretudo de subsumir as diferenças em favor de uma totalidade orgânica, na qual desaparece a assinatura da figura centralizadora do artista e vem à tona uma forma de exercÃcio artÃstico que já não pertence a um ou a outro, mas a um comum, amalgamado sob a identidade do coletivo. Uma das chaves para pensar essa caracterÃstica é o uniforme usado pelos emprezários e emprezárias durante as performances. O uniforme é essa estranha particularidade que retira a singularidade das pessoas e as lança em uma espécie de massa amorfa. Como sÃmbolo do apagamento das individualidades, disponÃvel dentro de uma lógica de mercado, dentro da qual a empresa poderia ser pensada como signo, o uniforme é aqui reapropriado pelo coletivo como uma marca que, assim como evoca a dissolução da persona individualista do artista, também nos lembra ao mesmo tempo que a arte nada mais é do uma atividade entre outras, retirando o modo como as práticas artÃsticas foram pensadas até a arte moderna. A empreitada do grupo move-se na direção de um saber que aquele universo é fruto de um trabalho intenso de pesquisa e exercÃcio, de um método que incorpora o fracasso, os desvios e acidentes no seu próprio percurso, sempre pronto a recomeçar, suspender e se reconfigurar a partir das demandas de cada artista. Por sua vez, é o espectador da exposição que, lançado em meio à estranheza das performances como Maleducação ou Sopa de letrinhas, se sente acolhido a refletir sobre o estatuto das suas próprias ações, porque vê naquele corpo uniformizado a face tenebrosa de si mesmo. Como explica a introdução da exposição, no emblema antropofágico canibalista do “eu como você†se pode entrar, à s avessas, no domÃnio do reconhecimento e da identificação expresso pelo “você como euâ€. Assim, o Grupo EmpreZa, por meio de suas ações transgressoras, opera o tensionamento dos campos do estranho e do familiar. Se aceitarmos o convite que a arte contemporânea nos remete, podemos enxergar na simplicidade daqueles gestos – que por muitas vezes se resumem a dar tapas na cara um do outro (Sua vez) ou comer o cabelo um do outro (Antropofagia) – a banalidade do nosso próprio cotidiano, sempre permeado por sintomas, repetições, atos inexplicáveis para os quais não encontramos significação. Nas performances do grupo, nos damos conta de que o encontro com a obra de arte não é o deparar-se com o que já somos – você como eu – , e sim um impulso que nos move para o que precisamos ser. Em uma das paredes de Sua vez chama atenção a frase escrita ao lado da porta de entrada: “Tente apagar um traumaâ€. A sentença talvez nos lembre que essa estranheza nos é constitutiva e que, além disso, só chegamos a nos assumir como sujeitos onde fixamos as faltas, as lacunas e os vazios, aquilo que não se encontra em nós mesmos. A arte do grupo EmpreZa provoca um embate com aquilo que está fora de nós mesmos, joga com a alteridade, por meio da qual nos re-conhecemos e nos des-conhecemos. Eu como você é esse endereçamento a sairmos para fora de si, tomando como postura polÃtica a potência de dar lugar ao outro. Esta transmissão oferecida pela arte do nosso tempo é de ordem mÃnima, perpetrada através de pequenos gestos - que são desde sempre gestos polÃticos- e que se desdobram para além da esfera artÃstica, afinal são os corpos viventes que estão inseridos nas práticas do risco, da dor, e do contato sem tréguas com a realidade. A vida, “esse centro frágil e turbulento que as formas não alcançamâ€[1], talvez seja a matéria de onde a arte do Grupo EmpreZa emana para com ela romper com a linguagem. A sentença “Tente apagar um trauma†nos convida a constatar que é impossÃvel nos livrar de nossas próprias feridas, senão transformando-as em outra coisa. A arte é essa possibilidade aberta para que nos tornemos senhores do que ainda não somos, de que nos apossemos de nossos próprios traumas não para esquecê-los e negá-los, mas para transfigurá-los em algo positivo. Sendo assim, os atos performáticos do Grupo Empreza, entendidos em seus pormenores, apontam para uma possibilidade artÃstica afinada com o mundo contemporâneo, no qual as fronteiras entre arte e vida se dissolvem e as obras de arte não produzem mais calmaria e identificação, mas nos perturbam e nos angustiam. A arte contemporânea é essa morada infernal na qual não é mais Deus quem habita os detalhes, frase de Aby Warburg distorcida pelo Grupo Empreza, que a retoma nas paredes da sala Sua vez reescrevendo-a como “o diabo mora nos detalhesâ€, nos lembrando que a caracterÃstica da arte que nos fornecia o medida do mundo e nos reconciliava com nossa existência talvez nada tenha mais a dizer para o nosso tempo. Até a modernidade, vÃamos nosso olhar devolvido pela obra de arte, vÃamos nessa janela para o mundo a fonte do nosso apaziguamento e da nossa tranquilidade. Por outro lado, a arte contemporânea desdobra nosso olhar na distância para nos fazer sair de nós mesmos. Nesse sair para fora de si, nos lançamos diante do abismo e experenciamos a total perda de garantias que a arte nos oferecia. Estar à deriva diante do abismo é a autêntica experiência contemporânea. Ao participar do trabalho do Grupo nos vemos diante dessa experiência autêntica, que nos lança em um lugar limÃtrofe e não nos deixa sair ilesos. E se for realmente verdade que só a partir da casa em chamas é que conseguimos ver o projeto arquitetônico fundamental, devemos nos aventurar em meio ao fogo e ao perigo ara olhar bem de perto a face aterradora da arte do nosso tempo. Mas, como nos lembra Heidegger dos versos de Hölderlin: “ ora, onde mora o perigo/ é lá que também cresce/ o que salvaâ€[2]. Colectivo EmpreZa: Aishá Kanda, Babidu, Helô Sanvoy, João Angelini, Marcela Campos, Paul Setubal, Paulo Veiga Jordão, Rafael Abdala, Rava e Thiago Lemos. Obras na exposição: Impenetrabilidade; Jóias; Mar e Eros; Sopa de Letrinhas; Sua vez; Antropofagia; Com Oriente; Réquiem da vaca; Endemias cotidianas; Carma Ideológico; Impenetráveis; ExercÃcio de Paisagem; Paisagens destiladas; Cheia de graça; Itauçu; Porque eu quis; Sangue bom; Maleducação; TrÃptico. Juliana de Moraes Monteiro ::: Notas [1] ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Trad. Teixeira Coelho. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 8. [2] HEIDEGGER, Martin. Ensaios e Conferências. Tradução de Emanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel, Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001, p. 31. ::: Bibliografia ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Trad. Teixeira Coelho. São Paulo: Martins Fontes, 2006 HEIDEGGER, Martin. Ensaios e Conferências. Tradução de Emanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel, Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001 |