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Para quem conhece a longa trajetória do Grupo EmpreZa, coletivo de Goiânia, a exposição que ocupa duas salas do Museu de Arte do Rio é uma excelente oportunidade para acompanhar a arriscada aventura desse grupo fundado há 13 anos e as ações árduas e difíceis empreendidas por eles no campo da performance, fruto de um intenso exercício de pesquisa e elaboração.

A exposição Eu como você, que traz já no título a marca da relevância do corpo no trabalho do coletivo, se apresenta como uma das raras vezes em que se pode conferir as performances e a pesquisa do EmpreZA no Rio de Janeiro. Além da exposição fixa nas salas, Eu como você conta ainda com serões performáticos e uma área que funciona como uma ampliação do espaço de constituição da obra, onde o visitante pode se integrar e participar do trabalho do grupo, intitulada Sua vez.

Ao transitar pela primeira sala de exposições vemos os registros das performances – em fotografia e video - e alguns objetos materiais dispostos ao longo da sala, evocando alguns dos mais significativos trabalhos do grupo, como a bacia com pedras ensanguentadas de Vila Rica.

Além do evidente traço do grupo, no que se refere ao uso da expressão do corpo como linguagem artística, o que vem à tona durante a exposição é a confirmação de que o EmpreZa é um conjunto coeso, na qual as singularidades de cada indivíduo cede lugar à unicidade do coletivo.

Para o EmpreZa, o coletivo não é só uma forma de aglutinar semelhanças, mas sobretudo de subsumir as diferenças em favor de uma totalidade orgânica, na qual desaparece a assinatura da figura centralizadora do artista e vem à tona uma forma de exercício artístico que já não pertence a um ou a outro, mas a um comum, amalgamado sob a identidade do coletivo.

Uma das chaves para pensar essa característica é o uniforme usado pelos emprezários e emprezárias durante as performances. O uniforme é essa estranha particularidade que retira a singularidade das pessoas e as lança em uma espécie de massa amorfa. Como símbolo do apagamento das individualidades, disponível dentro de uma lógica de mercado, dentro da qual a empresa poderia ser pensada como signo, o uniforme é aqui reapropriado pelo coletivo como uma marca que, assim como evoca a dissolução da persona individualista do artista, também nos lembra ao mesmo tempo que a arte nada mais é do uma atividade entre outras, retirando o modo como as práticas artísticas foram pensadas até a arte moderna.

A empreitada do grupo move-se na direção de um saber que aquele universo é fruto de um trabalho intenso de pesquisa e exercício, de um método que incorpora o fracasso, os desvios e acidentes no seu próprio percurso, sempre pronto a recomeçar, suspender e se reconfigurar a partir das demandas de cada artista.

Por sua vez, é o espectador da exposição que, lançado em meio à estranheza das performances como Maleducação ou Sopa de letrinhas, se sente acolhido a refletir sobre o estatuto das suas próprias ações, porque vê naquele corpo uniformizado a face tenebrosa de si mesmo. Como explica a introdução da exposição, no emblema antropofágico canibalista do “eu como você†se pode entrar, às avessas, no domínio do reconhecimento e da identificação expresso pelo “você como euâ€.

Assim, o Grupo EmpreZa, por meio de suas ações transgressoras, opera o tensionamento dos campos do estranho e do familiar. Se aceitarmos o convite que a arte contemporânea nos remete, podemos enxergar na simplicidade daqueles gestos – que por muitas vezes se resumem a dar tapas na cara um do outro (Sua vez) ou comer o cabelo um do outro (Antropofagia) – a banalidade do nosso próprio cotidiano, sempre permeado por sintomas, repetições, atos inexplicáveis para os quais não encontramos significação. Nas performances do grupo, nos damos conta de que o encontro com a obra de arte não é o deparar-se com o que já somos – você como eu – , e sim um impulso que nos move para o que precisamos ser.

Em uma das paredes de Sua vez chama atenção a frase escrita ao lado da porta de entrada: “Tente apagar um traumaâ€. A sentença talvez nos lembre que essa estranheza nos é constitutiva e que, além disso, só chegamos a nos assumir como sujeitos onde fixamos as faltas, as lacunas e os vazios, aquilo que não se encontra em nós mesmos.

A arte do grupo EmpreZa provoca um embate com aquilo que está fora de nós mesmos, joga com a alteridade, por meio da qual nos re-conhecemos e nos des-conhecemos. Eu como você é esse endereçamento a sairmos para fora de si, tomando como postura política a potência de dar lugar ao outro.

Esta transmissão oferecida pela arte do nosso tempo é de ordem mínima, perpetrada através de pequenos gestos - que são desde sempre gestos políticos- e que se desdobram para além da esfera artística, afinal são os corpos viventes que estão inseridos nas práticas do risco, da dor, e do contato sem tréguas com a realidade. A vida, “esse centro frágil e turbulento que as formas não alcançamâ€[1], talvez seja a matéria de onde a arte do Grupo EmpreZa emana para com ela romper com a linguagem.

A sentença “Tente apagar um trauma†nos convida a constatar que é impossível nos livrar de nossas próprias feridas, senão transformando-as em outra coisa. A arte é essa possibilidade aberta para que nos tornemos senhores do que ainda não somos, de que nos apossemos de nossos próprios traumas não para esquecê-los e negá-los, mas para transfigurá-los em algo positivo.

Sendo assim, os atos performáticos do Grupo Empreza, entendidos em seus pormenores, apontam para uma possibilidade artística afinada com o mundo contemporâneo, no qual as fronteiras entre arte e vida se dissolvem e as obras de arte não produzem mais calmaria e identificação, mas nos perturbam e nos angustiam.

A arte contemporânea é essa morada infernal na qual não é mais Deus quem habita os detalhes, frase de Aby Warburg distorcida pelo Grupo Empreza, que a retoma nas paredes da sala Sua vez reescrevendo-a como “o diabo mora nos detalhesâ€, nos lembrando que a característica da arte que nos fornecia o medida do mundo e nos reconciliava com nossa existência talvez nada tenha mais a dizer para o nosso tempo.

Até a modernidade, víamos nosso olhar devolvido pela obra de arte, víamos nessa janela para o mundo a fonte do nosso apaziguamento e da nossa tranquilidade. Por outro lado, a arte contemporânea desdobra nosso olhar na distância para nos fazer sair de nós mesmos. Nesse sair para fora de si, nos lançamos diante do abismo e experenciamos a total perda de garantias que a arte nos oferecia. Estar à deriva diante do abismo é a autêntica experiência contemporânea. Ao participar do trabalho do Grupo nos vemos diante dessa experiência autêntica, que nos lança em um lugar limítrofe e não nos deixa sair ilesos.

E se for realmente verdade que só a partir da casa em chamas é que conseguimos ver o projeto arquitetônico fundamental, devemos nos aventurar em meio ao fogo e ao perigo ara olhar bem de perto a face aterradora da arte do nosso tempo. Mas, como nos lembra Heidegger dos versos de Hölderlin: “ ora, onde mora o perigo/ é lá que também cresce/ o que salvaâ€[2].


Colectivo EmpreZa: Aishá Kanda, Babidu, Helô Sanvoy, João Angelini, Marcela Campos, Paul Setubal, Paulo Veiga Jordão, Rafael Abdala, Rava e Thiago Lemos.

Obras na exposição: Impenetrabilidade; Jóias; Mar e Eros; Sopa de Letrinhas; Sua vez; Antropofagia; Com Oriente; Réquiem da vaca; Endemias cotidianas; Carma Ideológico; Impenetráveis; Exercício de Paisagem; Paisagens destiladas; Cheia de graça; Itauçu; Porque eu quis; Sangue bom; Maleducação; Tríptico.



Juliana de Moraes Monteiro


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Notas

[1] ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Trad. Teixeira Coelho. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 8.
[2] HEIDEGGER, Martin. Ensaios e Conferências. Tradução de Emanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel, Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001, p. 31.


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Bibliografia

ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Trad. Teixeira Coelho. São Paulo: Martins Fontes, 2006

HEIDEGGER, Martin. Ensaios e Conferências. Tradução de Emanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel, Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001