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O OMNITALENTO DE RUI MACEDO OU A VISÃO DE UM ARTISTA TRANSTEMPORALNUNO LOURENÇO2024-01-27
A exposição “Aparato” do pintor eborense Rui Macedo é uma das mais recentes ilustrações sobre a obsessão do ofício da pintura da qual Gerhard Richter se refere nas suas notas de 1973, em The Daily Practice of Painting: “uma vez obcecados, somos levados em última instância ao ponto de acreditar que podemos mudar os seres humanos através da pintura." [1] Por isto, esta exposição, patente no Centro de Arte e Cultura da Fundação Eugénio de Almeida até 7 de abril do próximo ano, arrisca-se a ser considerada a melhor de 2023 para quem acredite que a pintura como meio artístico ainda tem uma palavra preponderante a dizer no curso da contemporaneidade. Nestas obras, todas elas terminadas este ano, Macedo lançou-se num trabalho de minúcia quase monástico unindo um grande rigor técnico à transmissão do zeitgeist contemporâneo. Tal empenho desembocou num conjunto de trabalhos representativos de um conhecimento transtemporal ao ressuscitar os temas-mortos da pintura antiga para a realidade virtual segundo a perspetiva de um futuro enigmático. O elogio às suas capacidades não é exagerado quando se pode com o seu trabalho refletir ao mesmo tempo e em larga escala sobre a encenação, a pintura como ofício, a diversidade da natureza ou sobre o belo, isto pelo lado da história antiga; e sobre o fragmento, o tratamento da obra de arte como mercadoria, o acesso à contemplação como produto de elite até ao seu quase desaparecimento na idade da plena virtualidade de 2023, isto pelo lado da história atual. E não é menos impressionante que tenha conseguido transformar qualquer sensação de destruição, quebra, divisão, obstáculo e ilusão em perfeitas imagens harmoniosas. Em suma, Rui Macedo interpela a pintura e a história da pintura a partir da sua condição contemporânea, como é, assim, apresentado pelo curador desta exposição José Alberto Ferreira. A exposição começa com uma composição de uma visão pouco comum: a do topo de umas escadas em caracol, chamada “Grandioso-Oco” que ao se inspirar possivelmente nos interiores da pintura holandesa do séc. XVII, joga com a mistura de uma sensação física e outra emocional. A intensidade da luz natural vinda do exterior sugere uma enorme vontade de avanço que choca, em sentido contrário, com a escuridão sinistra da descida, qual vertigem para o abismo! A representação é a de uma verdadeira imagem dramática sem intervenientes humanos por isso merecedora de um título em cartela como qualquer pintura seiscentista. Mas, neste caso, a cartela foi pintada sem qualquer texto, porque nenhuma palava poderá exprimir a totalidade da composição. Ao lado desta temos o primeiro sufoco contemporâneo: a mesma tela é repetida, mas, revestida na maior parte da sua superfície por fita grossa, daquela que é usada nas obras públicas. O desconforto produzido é evidente nesta simbiose entre a representação clássica de contraste claro-escuro e da sugestão da obra de arte como mercadoria. Este elemento da fita – nas restantes obras é castanha - aparece em quase todos os trabalhos da exposição. Por vezes anuncia-se discreta numa só tira, outras vezes numa tela quase completamente coberta, entre a ameaça de um artigo inacessível à garantia de um produto viável em termos comerciais como sugere a obra “Volubilíssimo-Requintado #3”. Esta última torna-se particularmente paradigmática no que respeita ao acesso à arte, diga-se, ao acesso à arte do belo e do sublime. Não estamos mais perante um objeto para gozo de alguém com poder, nem de uma pequena minoria letrada como tivemos até ao séc. XIX. Assume-se antes como um produto comercial, mas, cujas massas de hoje apenas poderão ter acesso através de pequenos fragmentos da composição total, como um troço de um fundo de paisagem idílica que apenas podemos desfrutar como migalha de um todo contemplativo. Rui Macedo parece-nos chamar a atenção não mais para a obra de arte que perdeu a sua aura, se reproduziu e se vendeu como uma mercadoria de massas pronta a ser rentabilizada, na senda do pensamento de Walter Benjamin. Esse fenómeno já faz parte do passado. Agora é apenas um fragmento da própria contemplação que pode ser adquirido, em maior ou menor tamanho, segundo o poder aquisitivo da bolsa de cada um. A questão é que estas fitas castanhas, umas verdadeiras e outras pintadas, nos vedam a todos a composição total das peças, porque efetivamente a arte já morreu. O que podemos hoje adquirir é apenas uma ideia de arte concebida numa sociedade reduzida ao fetichismo total. Resta-nos ver um pequeno pedaço da ideia de uma obra de arte, porque, há que pagar um valor para desvendar e desfrutar do que ela outrora fora. E é esta ideia que nos lança numa outra fase da contemporaneidade que tem de ser estudada, tenha o artista criado esta imagem deliberadamente na mesma linha de pensamento ou não.
Rui Macedo, Espalhafato-Insignificante #1, 2023. Óleo s/tela, 90x108cm.
A exposição recupera também o tema das naturezas-mortas que podemos apreciar na pintura holandesa do séc. XVII, com Floris van Dijck ou Willem Kalf e, claro, na pintura portuguesa do mesmo século pela mão de Josefa d´Óbidos, por exemplo. Porém, a abordagem é distinta, no que respeita aos elementos, ao volume e à composição em geral. Enquanto, vemos riqueza numa natureza-morta muito frugal do séc. XVII, as naturezas-mortas de Rui Macedo representam um caleidoscópio de vários frutos e legumes num ambiente de superabundância como Baudrillard caraterizou a sociedade capitalista. Enquanto, o volume dos elementos das naturezas-mortas do séc. XVII, nos apelam aos sentidos como manifestação do divino, próprio da mentalidade barroca, nesta exposição o efeito é reduzido ao efeito de papel de parede como o vemos no ecrã do computador, o que nos apela a uma atividade mais mental do que sensorial. E enquanto, a composição barroca integrava vários elementos num diálogo compositivo-dramático, como pratos, jarros ou toalhas contra uma parede sóbria, estas naturezas-mortas não dialogam com outros objetos encontrando-se fragmentadas na própria moldura. Não falam do todo. Falam das partes, falam de divisão.
Rui Macedo, Vazio-Aparatoso, 2023. Óleo e resina s/contraplacado, 59x40cm.
O omnitalento de Rui Macedo não se fica por aqui. A obra “Vazio-Aparatoso”, é talvez a mais ousada das propostas do artista, pela sua subtileza e capacidade laboral. A obra corresponde ao difícil enunciado de tentar representar nos dias de hoje o sublime em pintura. Tendo em conta o que o filósofo Marc Jimenez considerou como sublime – disforme, caótico, conflito das nossas faculdades, no seu livro “O que é a estética?” -, esta composição onde a resina que representa um vidro partido sobre um fundo azul transparente, sem mais nada, é, na verdade, uma obra plena concebida a partir de elementos mínimos, por isso, tão perfeita, tão excelsa, justamente tão sublime. Ela tem paradoxalmente tudo e nada: tem moldura, passe-partout, um fundo sóbrio de várias matizes azuis-esverdeadas, sombras, reflexos, a simulação da transparência e ao mesmo tempo um vazio de conteúdo onde nada é representado. Porém, tudo foi pensado como uma análise laboratorial. “Celebérrimo-absurdo” é uma obra-símbolo daquilo em que nos metemos como humanidade. Estamos num hipnótico labirinto emoldurado, que não importa a estrutura quadrangular em que caímos, o abismo será sempre certo, uma eterna queda livre. Onde quer que caíamos, a saída aponta para o interminável simulacro. Não parece ser este o enigma do séc. XXI caraterizado por um conjunto de formas rígidas que se espelham ad infinitum fazendo-nos perder o norte? Há muito que caímos na armadilha do excesso do qual vai ser muito difícil sair. Mas, não menos angustiantes são as placas espalhadas pelo chão, chamadas de “Inutilidade-Magnífica”, cuja amálgama de resina e acrílico lembram magnificamente as nossas memórias contemporâneas: amorfas, indefinidas, meros resquícios derretidos pelo tempo. Rui Macedo lança-nos ainda uma última provocação. Andamos tão iludidos, em relação a tudo, a nós mesmos, ao que desejamos e ao que devemos ser, que não sabemos mais distinguir uma coisa, de outra coisa que se assemelhe. Pobres de nós! Pobre de mim, que se não lesse todas as legendas, me quedaria na ilusão ótica - qual trompe l´oeil contemporâneo - de que os ventiladores do museu seriam três na parede da direita e não dois. O terceiro é, afinal, um óleo sobre acrílico chamado “Inútil-Magnifico”. O terceiro não é, e eu talvez também já não seja o que penso ser...porque, a pintura que me reflete, representa a minha mudança como ser humano.
Nuno Lourenço
Notas
[1] Tradução livre.
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