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O MEU ECRÃ É O VOSSO PALCOSUSANA GRAÇA E CARLOS PIMENTA2020-04-04
Não imaginaria Paul Valéry, quando escreveu em A conquista da Ubiquidade (1928) que as tecnologias de comunicação proporcionavam a "distribuição de realidade sensível ao domicílio", que o papel destas seria tão determinante nestes tempos de quarentena, tanto a nível artístico como económico. Também nós não imaginávamos que, no decurso do trabalho de investigação que temos desenvolvido no que respeita à relação da cultura e arte com as novas tecnologias (fundamentalmente no contexto da internet), as temáticas que temos enunciado ganhariam visibilidade de uma forma tão inopinada e radical. Se é certo que as novas tecnologias de comunicação têm vindo paulatinamente a ocupar alguns espaços próprios do ao vivo, a sua súbita intrusão na nossa reclusão forçada constitui uma acelerada tomada de consciência de um sector que tem sofrido desenvolvimentos acentuados nos últimos anos. Sabemos que, com o aparecimento das “novas tecnologias” nos anos quarenta e cinquenta do século passado, o conceito de “experiência” foi sofrendo alterações por via da mediação tecnológica. O ao vivo foi perdendo lugar para o mediado, com a consequente transformação do nível de experiência dos públicos. Se o uso das novas tecnologias (sobretudo as digitais) deve ser encarado como uma opção de natureza artística (decorrendo no contexto da liberdade e experimentação criativa), já naquilo que respeita à sua utilização pelas instituições e agentes culturais, com o objetivo de conquista de novos públicos e disseminação dos objetos artísticos, elas têm-se constituído como ferramentas essenciais, dados os níveis de eficácia que proporcionam a custos relativamente reduzidos. Com efeito, as organizações artísticas e culturais têm hoje à sua disposição diversos instrumentos de comunicação com os seus públicos cada vez mais online propondo novas formas de relação, procurando dar resposta a novas possibilidades de encontro entre artistas, instituições e públicos. A mediação tecnológica tem-se afirmado gradualmente como transformadora da experiência humana no campo das artes, tornando-se ao longo das últimas décadas objeto de variados estudos. Nas artes do espetáculo, a ideia de que é o trabalho do performer ao vivo que constitui o output, seguindo a ideia de Baumol e Bowen (1966), pode ser posta em causa: bem como outros conceitos alternativos focados exclusivamente na ideia de presença. Nas artes visuais, aquilo que uma galeria ou um museu oferecem já não é exclusivamente uma experiência presencial, mas uma experiência de acesso às obras por vários meios. Nestes tempos estranhos que atravessamos, assistimos, repentinamente, à presença massiva na internet de conteúdos que rapidamente saltaram dos seus locais habituais (salas de concertos, teatros, museus) para se apresentarem online procurando um público que para aí migrou em massa, por força das circunstâncias. Se esta presença já era bastante visível no caso p.ex. da música ou do audiovisual, ela dá agora visibilidade ao campo das artes performativas, embora, como se sabe, as transmissões em live stream de produções inseridas no projeto MET Opera Live-HD ou NT-Live já existam há anos, bem como a disponibilização de conteúdos com fins comerciais por parte destas e de outras instituições. Face a esta migração dos públicos para espaços de mediação digital e face ao cancelamento abrangente de tudo o que se passa ao vivo, várias notícias e comentários vieram afirmar que a economia da cultura está parada. Ora, o problema é exatamente o oposto: a economia da cultura não pára, tal como a economia de qualquer outro setor. No setor da cultura continua a haver um mercado de trabalho a funcionar, com trabalhadores a precisar de salários e empregadores a tentar não declarar falência; continua a haver um mercado financeiro a exigir que empréstimos e juros sejam pagos, e a disponibilizar mecanismos financeiros necessários para fazer a compensação pela falta de atividade normal; continua a haver interdependências económicas entre a esfera pública e a privada, com a necessidade de se continuarem a pagar as prestações dos apoios à atividade artística e a consequente necessidade de se justificarem esses apoios com a realização de atividades. A cultura enquanto setor económico no qual se cria valor diariamente não tem qualquer hipótese de parar. Numa economia que não para e encarando um cenário de potencial crise económica, temos de olhar para o que está a acontecer no que respeita à oferta e à procura. A maior parte das crises económicas pelas quais temos passado derivam de um choque na procura. No entanto, atualmente, a recessão económica que se antecipa como consequência da crise de saúde pública que vivemos deriva igualmente de um choque na oferta, já que os trabalhadores e os produtores não estão em condições de produzir tanto quanto no passado. No caso da criação e produção artística, a oferta tem de (e está a) adaptar-se a uma nova configuração do mercado e a criar valor com recurso aos meios disponíveis. Assim, assumir que o acesso à oferta artística através da mediação tecnológica é uma via válida e artisticamente relevante, é aceitar também que o setor da cultura é, e pode continuar a ser, economicamente dinâmico e produtivo. É preciso agir sobre a oferta no setor artístico e garantir que os artistas continuam a ter possibilidades de produzir e apresentar os seus trabalhos. O esforço de proporcionar plataformas de mediação digital de produção artística, e de promover e validar estes objetos artísticos é fundamental. Em Portugal, talvez por desatenção, desinteresse ou falta de recursos - são necessários alguns em termos de equipamentos, equipas especializadas, etc. – são muito poucas as instituições que têm recursos disponíveis nas suas plataformas ou que desenvolvem projetos de curadoria online. Ao não apostarem nesta área, estarão a esbanjar oportunidades financeiras e de captação de novas audiências, cuja realidade recente bem comprova. As consequências perversas da necessidade de isolamento e distanciamento social para a criação e fruição artísticas podem ser mitigadas através da valorização social e económica da obra artística mediada pela tecnologia, sendo certo que, na sua essência, ela não perde o seu valor enquanto obra.
Susana Graça Carlos Pimenta |