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CINEMA E ARTE CONTEMPORÂNEA: A PROPóSITO DE DUAS EXPOSIçõES DE DAVID CLAERBOUT E DE CLEMENS VON WEDEMEYERTERESA CASTRO2009-08-22David Claerbout, Galeria Hauser & Wirth, Londres 22 Maio – 1 Agosto de 2009 Clemens von Wedemeyer, “Fourth Wall”, Barbican Center, Londres 29 de Maio – 30 de Agosto de 2009 Nascidos respectivamente em 1969 e 1974, o belga David Claerbout e o alemão Clemens von Wedemeyer pertencem a uma geração de artistas cujo trabalho se situa no prolífico território de fronteira onde o cinema e a arte contemporânea se encontram. Duas exposições recentes em Londres – uma delas realizada numa das mais interessantes galerias do momento, a Hauser & Wirth, e outra ainda patente no espaço do Barbican Center dedicado exclusivamente à criação contemporânea, o The Curve, fornecem-nos uma ocasião privilegiada para reflectir sobre essa contemporaneidade discursiva que consiste em reunir o cinema e a arte contemporânea numa mesma proposição teórica e artística. A questão, complexa, pode resumir-se da seguinte forma: se, hoje em dia, todos os grandes museus e bienais, bem como uma percentagem significativa de galerias de arte, exibem sistematicamente trabalhos que convocam de forma mais ou menos explícita o “cinema”, de que falamos quando evocamos um “efeito cinema” na arte contemporânea? De uma forma geral, parece claro que o “efeito cinema” − traduza-se ele por exposições explorando as múltiplas relações entre o cinema e a produção artística contemporânea, pelas instalações cada vez mais frequentes de cineastas conceituados (Chantal Akerman, Chris Marker, Agnès Varda, Jean-Luc Godard, Atom Egoyan, etc.), pelas encenações de cineastas recordando a prática da instalação (Lars von Trier, Gus van Sant, etc.), ou ainda pelos trabalhos de artistas que colocaram o cinema no centro da sua prática (como Claerbout e von Wedemeyer) – diz respeito a questões exteriores às obras propriamente ditas. Na verdade, falar de “cinema, arte contemporânea” trata-se, antes de mais, de evocar uma questão territorial remetendo para intricados problemas de identidade – de que falamos quando falamos de “cinema”? e de “arte contemporânea”?. Parece claro também que a reunião dos dois elementos numa mesma proposição - institucional, artística e teórica − diz respeito a uma questão de poder simbólico e de legitimação recíproca dos dois domínios, sobre a qual haveria certamente muito a escrever. Ainda que se situem numa mesma corrente − a dos artistas plásticos que colocaram de alguma forma a prática do cinema no centro das suas preocupações −, a forma como os trabalhos de Claerbout e de von Wedemeyer ilustram o “efeito cinema” na arte contemporânea é significativamente diferente. Assim, na Hauser & Wirth, o artista belga apresentou três trabalhos recentes: “Riverside” (2007-2008), “Sunrise” (2009) e “The American Room, 1st Movement” (2009). A primeira peça, “Riverside”, consiste numa dupla projecção em que podemos acompanhar o périplo de dois viajantes perdidos num mesmo vale verdejante. Pouco a pouco, o espectador percebe que separação física entre os ecrãs de projecção – e, sobretudo, entre as bandas sonoras dos dois filmes – reflecte o isolamento espácio-temporal dos dois personagens: ainda que errando no mesmo espaço, estes nunca se cruzam. Durante os 25 minutos que duram ambos os filmes, o espectador espera ansiosamente por esse encontro; mas, à reunião dos dois personagens sobre um mesmo tronco de árvore suspenso sobre um pequeno riacho substitui-se, no final do filme, a reunião das duas bandas sonoras. Desta forma, o súbito som estereofónico da água que corre assume o inesperado papel da tão esperada resolução narrativa do filme. Claerbout define “Riverside” (tal como as outras peças expostas na galeria) como um trabalho sonoro encarnado em vídeo. A observação do artista é particularmente sugestiva, sobretudo porque “Sunrise” (que de entre as três peças se destaca pela sua beleza formal e dimensão assumidamente poética) explora a questão sonora de uma forma bastante diferente da de “Riverside”, ainda que evocando a linguagem e os códigos cinematográficos. O filme de 18 minutos, exibido numa sala onde se recriaram as condições de projecção características de uma sala de cinema convencional (escuridão, assentos para os espectadores), documenta uma cena de trabalho nocturna no interior de uma casa modernista. Por entre a geometria rigorosa da casa, e mergulhada numa escuridão quase total a que os olhos do espectador se habituam lentamente, uma empregada doméstica repete silenciosamente os seus gestos de trabalho quotidiano. No final do filme, a mulher deixa a casa já envolta na penumbra matinal, para atravessar de bicicleta os campos envolventes. O nascer súbito do sol, inundando de luz o ecrã e o olhar do espectador, coincide com a escuta de Vocalise de Rachmaninov. Sem constituir uma resolução narrativa da mesma ordem que a estereofonia final de Riverside (traduzida espacialmente no espaço sonoro), a utilização de uma célebre área musical assinala em “Sunrise” um desses “momentos mágicos” em que o Cinema – aqui propositadamente com maiúscula – pretende ser rico. Aos olhos do espectador, o final do filme é, na boa tradição clássica, simultaneamente desfecho e começo. Bastante diferente destas duas últimas peças, a vídeo-projecção “The American Room, 1st movement” (peça criada expressamente para a Hauser & Wirth), retoma algumas das estratégias características do trabalho de Claerbout, como a manipulação digital da imagem de forma a explorar a percepção do espaço e a impressão de suspensão do tempo. Das três peças expostas, esta é a única que se situa na fronteira entre imagem fixa e imagem em movimento, na linha, por exemplo, de “Sections of a Happy Moment”, de 2007 (obra exibida na exposição “Ida e Volta Ficção e Realidade”, realizada na Fundação Calouste Gulbenkian em 2007-2008). Documentando o início dum concerto de piano, a imagem é digitalmente manipulada pelo artista de forma a que o tempo pareça desacelerar, uma câmara particularmente lenta movendo-se por entre o espaço estereoscópico onde se encontra aprisionada audiência. Mais do que o trabalho sonoro, é o trabalho sobre a percepção do espectador, duplamente capturado por Claerbout no acto de olhar e de observar, que parece relacionar “The American Room” com as outras duas peças expostas. A questão espectatorial é abordada de forma distinta por Clemens von Wedemeyer em “Fourth Wall”. O conceito remete simultaneamente para a parede imaginária que separa a audiência do espaço teatral (ou cinematográfico) e para a suspensão temporária da descrença por parte desta, que aceita como sendo reais os acontecimentos que observa. Explorando um fait-divers verídico – a pseudo-descoberta do povo “selvagem” filipino Tasaday por exploradores ocidentais em 1971 –, “Fourth Wall” consiste numa gigantesca instalação de oito filmes ocupando o espaço monumental da galeria. Diferentes estratégias, indo da utilização de footage televisiva da época à documentação de uma peça teatral inspirada pelos Tasaday e encenada pelo Barbican Theater, questionam as noções de autenticidade e credulidade. Na verdade, nos anos oitenta vários antropólogos e jornalistas denunciaram o encontro com este último povo “selvagem” como uma farsa: os Tasaday teriam apenas representado o papel de “selvagens” diante de cientistas demasiado crédulos. Ainda que a instalação se distinga pela sua dimensão dos outros trabalhos de von Wedemeyer, reencontramos aqui uma das suas preocupações principais, articulada em torno da noção de making-of. Se noutras peças o interesse do artista pelo making-of se traduz pela realização de dois filmes – o filme propriamente dito e o seu making-of –, no caso de “Fourth Wall” a ideia remete literalmente para a feitura (making of em inglês) de autenticidade e credulidade operada pela cobertura mediática do acontecimento. De certa forma, “Fourth Wall” ilustra a transformação de um procedimento típico da indústria de Hollywood (o making-of) em instrumento de análise. Complexa e intelectual, a estratégia de von Wedemeyer parece realizar o caminho inverso da de Claerbout. Enquanto este último parece interessado em explorar diferentes formas de absorção do espectador pela imagem-som, o artista alemão está claramente mais interessado pela sua dissecação crítica. “Fourth Wall” assemelha-se assim a uma espécie de inquérito cujas etapas mais ou menos bem conseguidas pretendem compreender o fenómeno global da suspensão da descrença. De certa forma, tanto o espectador de von Wedemeyer como o de Claerbout são espectadores activos, confrontados ao seu papel, ou surpreendidos por ele. E se von Wedemeyer pensa com o cinema, trazendo-o indirectamente para o seio de uma galeria de arte, Claerbout pensa cinematograficamente, colocando-o, subtilmente, no seio do seu trabalho. Teresa Castro |