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OLHAR O MUSEUCATARINA CABRAL2014-06-13Em 1995, a exposição âEls LĂmits del Museuâ, comissariada por John G. Hanhardt e Thomas Keenan, na FundaciĂł Antoni TĂ pies, em Barcelona, fazia uma reflexĂŁo crĂtica sobre os museus, questionando os seus limites, atravĂ©s das obras de artistas como Christian Boltanski, Sophie Calle, Marcel Broodhaers, Joan Fontcuberta, entre outros. âAbrirâ os museus, tirĂĄ-los do seu enclausuramento, desbloqueĂĄ-los, tornĂĄ-los espaços de experimentação capazes de nos transmitirem sensaçÔes, pondo-nos numa relação inesgotĂĄvel com as obras de arte, foram algumas das propostas destes artistas para transpĂŽr as fronteiras do museu, para levar os seus limites mais alĂ©m; a arte resistindo Ă santificação do museu. A maior parte dos museus da nossa Ă©poca actual soube repensar-se, para melhor responder ao fluxo global dos mercados culturais e do turismo nas grandes cidades. Muitos limites deixaram entretando de ser limites, o museu tornou-se espaço para todo o tipo de visitantes, com a arte mostrada de forma mais arriscada, mais interactiva e mais prĂłxima das nossas vivĂȘncias. Os grandes museus continuam a ser o lugar de culto, o culto que se presta Ă s obras de arte, a respiração que se sustĂ©m diante de uma obra, o olhar que se demora nesta. Locais de culto, locais de observação, de refĂșgio e de encontro connosco prĂłprios atravĂ©s da arte. Podemos estar a sĂłs com uma obra e podemos estar integrados numa multidĂŁo a observar essa mesma obra. Thomas Struth na sua magnĂfica sĂ©rie de fotografias Museum Photographs, sobre os museus, testemunha esse encontro, pĂ”e-nos a olhar para ele. Ă como se estivessemos a observar-nos enquanto observamos as obras de arte. HĂĄ uma relação de observação e de participação. O museu estende-se para alĂ©m dos limites do seu espaço, prolonga-se nas imagens de Struth. TambĂ©m o cinema tem olhado os museus. Em âVertigoâ de Alfred Hitchcock, Madeleine Elster (Kim Novak) contempla, sentada, o retrato da sua âduplaâ no Palace of the Legion of Honor, em SĂŁo Francisco. Em âManhattanâ, Woody Allen e Diane Keaton detĂ©m-se diante de uma escultura no Guggenheim de Nova Iorque. A âArca Russaâ de Alexander Sokurov surpreende-nos com o plano sequĂȘncia no Hermitage de S. Petersburgo. Em âMuseum Hoursâ de Jem Cohen, exibido o ano passado no IndieLisboa, o prestigiado Museu de HistĂłria de Arte de Viena (Kunsthistorisches Museum Wien) e as obras de Bruegel participam na histĂłria de amizade entre o vigilante do museu e uma visitante estrangeira. O mesmo museu volta a surgir no cinema, pelo olhar curioso de Johannes Holzhausen, no seu documentĂĄrio âThe Great Museumâ, exibido na Berlinale deste ano. E mais recentemente, em Cannes, o grande documentarista Frederick Wiseman apresenta o seu Ășltimo trabalho â o filme âNational Galleryâ, sobre a National Gallery, em Londres. John âScottieâ Ferguson (James Stewart), o detective de âVertigoâ, contratado por um amigo para seguir a esposa deste e perceber o seu comportamento estranho, observa-a sentada no museu em frente Ă pintura de um retrato feminino â Portrait of Carlotta . Os detalhes da obra saltam para a realidade: o bouquet de flores que Madeleine (Kim Novak) pousou no banco Ă© igual ao do quadro, o penteado de Madeleine Ă© semelhante ao de Carlotta na tela. Detalhes reveladores de uma identificação da personagem com a obra que ela observa, e que sĂŁo captados no filme pelo detective (o observador) e tambĂ©m por nĂłs, enquanto espectadores no papel de observadores. Quando Johann (Bobby Sommer), o vigilante do Museu de HistĂłria de Arte de Viena (Kunsthistorisches Museum Wien), no filme âMuseum Hoursâ, se cansa de olhar as pessoas, ele olha as obras e descobre sempre algo de novo nestas. Ă a observação atenta aos detalhes que prolonga o museu para a realidade exterior a este. Do detalhe dos ovos que Johann vai descobrindo nas pinturas expostas, ele passa para os objectos que encontra na cidade, depois de terminar o seu turno de trabalho: uma lata de cerveja no chĂŁo, etc. O observador nĂŁo se cansa de estar atento ao que o rodeia; a observação Ă© praticada no interior do museu e fora deste, pondo em relação duas realidades, como se nĂŁo existisse nenhuma fronteira entre elas. Nesta belĂssima ficção de Jem Cohen, o Kunsthistorisches Museum Wien estĂĄ no centro dos pensamentos do protagonista. Johann reflecte sobre o seu trabalho de vigilante no museu e guia-nos pelas suas salas, pelas obras expostas e pelos rostos dos visitantes. Leva-nos atĂ© Ă sua sala favorita - provavelmente a mais famosa do museu - onde estĂŁo os quadros de Bruegel. E Ă© nesta sala que ele assiste â e nĂłs, enquanto espectadores â a uma visita guiada, em que a guia se detĂ©m com o seu grupo, diante das obras cĂ©lebres do pintor, como A Torre de Babel. Johann transporta o museu para fora deste, quando sai do trabalho para os espaços da cidade. Prolonga-o nos encontros e nas conversas que tem com Anne (Mary Margaret OâHara), a visitante estrangeira que faz do Kunsthistorisches Museum Wien o seu refĂșgio solitĂĄrio. O museu nĂŁo estĂĄ fechado, continua nas obras de que falamos e discutimos, em outros contextos das nossas vidas. No delicioso documentĂĄrio de Johannes Holzhausen, âThe Great Museumâ, sobre o Kunsthistorisches Museum Wien, o museu estende-se aos bastidores, ao trabalho dos curadores, Ă investigação, ao restauro e Ă s tarefas de manutenção. Vemos para alĂ©m das obras em exposição; sorrimos quando a cĂąmara de Johannes Holzhausen nos revela o mundo agitado e fascinante que se esconde por detrĂĄs da organização e do sossego das salas que nos recebem para contemplarmos as obras de arte. Catarina Cabral Ă programadora de cinema no IndieLisboa â Festival Internacional de Cinema Independente ::: [a autora escreve de acordo com a antiga ortografia] |