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Isabel Carlos. Fotografia: Joana Linda. Cortesia Proyecto Incognitum.

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INCOGNITUM: CIRCUM-NAVEGAÇÕES CONTEMPORÂNEAS. ENTREVISTA A ISABEL CARLOS



NICOLÁS NARVÁEZ ALQUINTA

2018-11-22




 
No passado mês de julho, a curadora e crítica de arte portuguesa Isabel Carlos (Coimbra, 1962) visitou Santiago de Chile, por ocasião da apresentação do projeto de intercâmbio cultural entre o Chile e Portugal Incognitum: Circum-navegações Contemporâneas, a desenvolver-se entre 2019 e 2021, no âmbito dos 500 anos da circum-navegação de Fernão de Magalhães.

O projeto Incognitum, criado pelo artista, académico e investigador chileno Raúl Miranda (Santiago, 1966), em parceria com Isabel Carlos, visará criar um encontro entre dez artistas chilenos – entre os quais se encontram Fernando Prats, Voluspa Jarpa, Enrique Ramírez, Mónica Bengoa, Demian Schopf e Claudio Correa – e dez artistas portugueses ou ligados à arte portuguesa, os quais participarão em 2019 numa residência na cidade de Punta Arenas, à beira do Estreito de Magalhães. Este encontro binacional resultará numa exposição que será montada em Lisboa, Santiago e Punta Arenas, entre os anos 2020 e 2021. Além dos artistas selecionados, os artistas chilenos Paz Errázuriz e Eugenio Dittborn farão parte da exposição como referentes do projeto.

Além de comemorar a façanha de Fernão de Magalhães, Incognitum nasce da premissa do mútuo desconhecimento que existe entre Portugal e Chile, e a interrogante de qual é a melhor forma de se enfrentar e se aproximar do desconhecido, abstraindo-se de discursos rotineiros e do imaginário da ditadura, reconsiderando a história oficial gerada a partir do colonialismo. O projeto instala-se como uma releitura política do “descobrimento”, onde os curadores e artistas participantes questionarão o seu lugar de enunciação presente, originando uma mostra que não ofereça uma “imagem” do país como o postal típico e turístico, e sim um contexto transcultural em movimento constante.

Destaca-se na carreira da Isabel Carlos a sua participação como membro dos júris da Bienal de Veneza (2003), Turner Prize (2010) e The Vincent Award (2013); o seu labor como curadora da Bienal da Veneza (2005), e da mostra Provisions for the Future na Bienal de Sharjah (2009); e o seu trabalho como diretora do Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian em Lisboa entre 2009 e 2015.

Como parte da sua visita a Santiago, a curadora proferiu a conferência “Sem plinto nem parede. Criar em democracia” no Museu Nacional de Belas Artes. Depois da sua conferência, Isabel Carlos conversou com Artishock sobre o projeto Incognitum, a sua visão da curadoria e o presente e o futuro da arte.

 

por Nicolás Narváez Alquinta | 7 de Agosto, 2018

 


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Nicolás Narváez: Conta-me por que estás no Chile e fala-nos do projeto Incognitum que estás a desenvolver em parceria com Raúl. Sei que é a primeira vez que vens ao nosso país. Como nasce esta iniciativa de ligar o Chile com Portugal? É uma relação que não parece tão óbvia à primeira vista...

Isabel Carlos: Não é óbvio...

N.N.: Claro, não é uma relação óbvia, não é uma associação...

I.C.: Não, não é. Começou com o Raúl, que me contatou em Lisboa, com a ideia de relacionar Portugal com o Chile. Eu sempre tive relações letivas com o Chile. Em 1998, trabalhei pela primeira vez com Eugenio Dittborn e numa segunda ocasião quando fez a Bienal de Sidney entre 2002 e 2004, conheci a obra do Juan Dávila. E claro, com Raúl Ruiz, que é muito próximo da cultura portuguesa, porque filmou em Lisboa e no seu entorno. Então, sempre tive muita curiosidade de vir para cá e, como sempre na minha vida, aguardo pelo momento perfeito: não há que o forçar. Sou uma viajante, mas não sou uma turista, e gosto muito de viajar com objetivos de trabalho, porque é uma maneira muito mais interessante de entrar numa cultura, num país, numa cidade. Então, esta é basicamente a razão porque estou aqui hoje.

N.N: A ideia de desenvolver Incognitum, dizias-me, começa a partir do Raúl...

I.C: Sim, foi o Raúl que me contatou há um ano em Lisboa, e contou-me que tinha um projeto com esta ideia de artistas portugueses e chilenos. Pois, aí começámos a trabalhar juntos, a construir os conceitos e toda a ideia do projeto em si, globalmente.

N.N: Sobre esta associação, que não é uma que venha primeiro à mente, há uma perspetiva histórica e geográfica também neste mútuo desconhecimento entre o Chile e Portugal que, como foi mencionado no texto do projeto, poderia inclusive datar do Tratado de Tordesilhas, no século XV, quando virtualmente se divide o mundo em dois. E apesar de que Espanha e Portugal tenham laços, estiveram unidas as duas coroas em diferentes ocasiões, a América Hispânica ficou completamente alheia a Portugal e, talvez, a nossa única aproximação à cultura lusitana é o Brasil... Mas o Brasil apresenta-se, pelo menos no Chile, como uma figura algo exótica, exuberante, que – imagino – não é algo que possa se assemelhar a Portugal.

I.C.: Há que lembrar que o Brasil é independente há mais de 200 anos, e foi uma colónia que Portugal decidiu que se tornasse independente [ri]. Claro que há muita presença da cultura portuguesa no Brasil, não só pela colonização, mas também pelas sucessivas ondas migratórias de portugueses que foram para o Brasil. Mas sim, concordo que, para a parte hispânica da América, Portugal é um grande segredo, é o segredo melhor guardado da Península Ibérica. Isso tem acontecido, em geral, com a Europa e o com o mundo até há pouco tempo. Lisboa está a viver um momento de grande fulgor, com muitos eventos turísticos. É como se de repente todo o mundo tivesse descoberto essa cidade, que tem caraterísticas muito particulares, que é muito diferente em comparação com a Espanha – ou de Madrid, se falamos de outra capital – Eu sempre uso a metáfora para diferenciar a cultura portuguesa da espanhola, que é a representação de Cristo. São dois países católicos. Cristo na cruz em Espanha – em qualquer igreja de Espanha – é um Cristo retorcendo-se, cheio de feridas, sangue e tudo é sofrimento; o Cristo português está como dormindo [ri]. Há uma frase, um grafiti que há uns anos alguém escreveu numa parede nas proximidades da minha casa, em Lisboa, que diz em inglês: “Tourists, please be silent. If you want noise, go to Spain”. Estas anedotas dizem algo sobre a diferença entre as duas culturas e países. Portugal é como uma varanda em cima do Atlântico que tem atrás uma casa grande, uma grande mansão, que é a Espanha ... que decidiu que a varanda fosse independente da mansão [ri]. É um país atlântico, não mediterrâneo. É profundamente atlântico, e o mar é algo muito presente em toda a cultura. Isso, penso também, pode ser uma ponte de encontro entre Portugal e o Chile.

N.N.: Sobre o facto de que é um país atlântico, isso diz-nos também que Portugal foi o primeiro império colonial da Europa, e o último também. Foi um império por mais de 400 anos. Ficou gravado na minha cabeça o que disseste na conferência, há pouco, no Museu de Belas Artes, sobre a colonização e descolonização. Disseste que o colonizado sofria, que o descolonizado sofria... mas que o colonizador também sofria. Porquê?

I.C.: Dado que há toda uma geração que perdeu coisas que conheciam desde as colónias, e que devem retornar. Os chamamos “retornados” tiveram que voltar a Portugal continental sem nada. Então, isso é um trauma: é um trauma para quem foi colonizado, para o colonizador e para o descolonizador. E há algo que se passa agora, que se começou a fazer em Portugal, que é uma reflexão colonial ... Mas às vezes sinto, e isto é perigoso, um tipo de melancolia colonial, onde as pessoas têm começado a falar da África com uma atitude quase colonial. Que “esses tempos eram maravilhosos”, que “as chuvas em cima da savana”... todo um discurso de melancolia colonial, uma nostalgia colonial. Paul Gilroy fala da “nostalgia colonial”. Eu, como sou portuguesa, diria “melancolia colonial”. Há que prestar atenção intelectualmente a essas mudanças, a nunca avançar para uma postura neocolonial. Não quero que o Incognitum se torne nisso, porque há esse perigo neste momento na sociedade portuguesa.

N.N: Mudou a forma de falar. Inclusive, já não se fala do “descobrimento da América”, é sim do “encontro de dois mundos”, e diferentes frases ou eufemismos...

I.C.: Sabes o que os brasileiros propõem? É uma palavra que acho horrível: achamento. Claro que não é um descobrimento, no sentido de que havia povos que viviam nesses lugares. Nesse sentido é um descobrimento só desde um ponto de vista eurocêntrico. Isso está muito claro. Foi o início da globalização e do capitalismo, sem dúvida. E há nesta viagem, que se fez desde o sudoeste da Europa para África e as Américas, uma parte muito grande e maravilhosa. Os portugueses são os primeiros que criaram uma visão – por causa da viagem e do contato com a América, com África e passar o Estreito de Magalhães – que se afasta da visão de fantasia da Idade Média, e que passa a ser todo um discurso e uma literatura da viagem dependente da observação, da investigação e da descrição, e não mais da imaginação fantástica, dos monstros da Idade Média. Procuram fazer uma literatura baseada no visto, no observado. Nessa observação há uma descrição um pouco fantasiosa, às vezes. É como René Descartes antes do seu tempo, essa preocupação de primeiro observar e depois descrever o mais próximo possível da realidade do que foi olhado.

N.N: A nível artístico-cultural, do que já pudeste conhecer do Chile e da América Hispânica, que diferenças percebes tu com Portugal?

I.C.: Desde que cheguei, uma coisa que me surpreendeu muito – porque não o esperava – foi a presença dos povos não europeus em muitas obras artísticas contemporâneas. Estou a pensar no Enrique Ramírez, o seu vídeo que vi no MAVI; as fotos de Demian Schopf com os seus diabos, ou o que eu vi no Espacio O com uma série de obras que retratam o xamanismo, o retorno a práticas ancestrais e com personagens sagradas. Encontro isso um pouco no Brasil, embora não muito, mas encontro mais na arte argentina ou na arte colombiana. Isso surpreendeu-me aqui, não esperava que a presença dos povos...

N.N: Cá são chamados “Povos originários”...

I.C.: Povos originários, isso em Eugenio Dittborn é muito presente. Mas que as novas gerações continuem fazendo isso e de um modo quase ritual, com esse compromisso, com aquela iconografia dos povos originários... é algo que acho muito interessante.

N.N: Isso é algo relativamente novo, acho eu, na arte chilena pelo menos, porque também o Chile era muito eurocêntrico ao nível das artes, é só ver o edifício do Museu Nacional das Belas Artes – que é uma cópia, uma réplica do Petit Palais de Paris –, ou pensar nas bolsas chilenas dos inícios do século passado, enviando os artistas chilenos para estudar na Europa e que “pagaram” ao Estado fazendo reproduções de obras europeias. O redescobrimento dos povos originários é algo relativamente novo, mas que se está a fazer muito. Eu, pelo menos, não sei que haja noutros países um olhar assim, para o passado.

I.C.: Não é tão frequente desta forma, acho. Achei aqui uma particularidade. O país em que estive mais recentemente foi a Argentina, estive em Buenos Aires em outubro passado, e não vi isto. São as primeiras impressões que tenho sobre Santiago, o que pude ver em quatro dias, então não é muito aprofundada [ri]. Quatro dias, porém, muito intensos. Isso surpreendeu-me e acho que é muito interessante. Por isso, por exemplo, incluí a obra de Demian e de Enrique. É maravilhoso que em Incognitum possamos mostrar isso e levá-lo para fora do Chile. É algo maravilhoso.

N.N: Na tua conferência também falaste do conceito do “outro”, algo relativo ao projeto Incognitum. Também mencionaste a multiculturalidade como um perigo, que pode provocar opressão cultural aos grupos minoritários, quer dizer, historicamente subjugados ou excluídos.

I.C.: O que eu quis dizer com isso é que temos de ter cuidado com esses conceitos. Esses conceitos podem levar-nos a lugares que são primários, como eu os chamaria, no sentido de que se começam a criar todos esses guetos se tiveres um discurso de exclusão em vez de inclusão. É o mesmo que dizer que o teu lugar como mulher, o teu lugar como gay, é este e ficas lá. Sempre me provoca confusão, por exemplo, em Los Angeles (Califórnia), que é uma cidade que conheço bem e onde morei, que haja um bairro gay. Então, é como um gueto. Eu gosto mais de misturar e da inclusão do que o outro, e os seres humanos temos de lutar todos os dias para incluir e entender o outro, e não dizer: "o teu lugar é aí". A melhor maneira de entender e colocar-se no lugar do outro é manter-se próximo dos outros. Isso é um pouco o que eu queria dizer na conferência, e é por isso que acho que o conceito de multiculturalismo não foi bem aplicado, porque criou mais guetos. Eu acho que são, por assim dizer, permanências na história da humanidade, podemos chamá-lo por outros nomes. É por isso que mostrei o vídeo de Vasco Araújo, porque quando ele faz esse vídeo [O Jardim] no Jardim Colonial de Lisboa, com as cabeças dos negros da Exposição Colonial dos anos quarenta, com textos de A Ilíada e A Odisseia de Homero, lembra-nos de que essas questões provavelmente existem desde o início da humanidade, a partir de que vivemos em sociedade. Portugal também foi colonizado, se formos mais atrás, pelos romanos [risos]. Temos uma história marcada, por exemplo, por pragas e pinheiros, que foram trazidos pelos romanos; os fenícios também estiveram... Como Portugal também é uma finis terrae [risos], alguém chegava e ficava [risos]. Então, acho que devemos prestar muita atenção a que o politicamente correto que foi instalado hoje não se torne num lugar de exclusão em vez de inclusão.

N.N: Conversávamos sobre isto há alguns dias, sobre a correção política – ou a ultracorreção política. Há alguns meses tive a oportunidade de entrevistar Ai Weiwei, e ele disse-me que, vivendo entre a Alemanha e os Estados Unidos, percebia que a correção política está a pôr em risco a liberdade de expressão.

I.C: Concordo completamente, concordo inteiramente. Quando chegas a um momento em que dizes, por exemplo: "Tu, homem branco, louro, só podes fazer obras que tenham a ver com homens brancos e louros...". Estamos num momento em que, às vezes, isso acontece. Essa é sempre uma leitura muito ignorante, quando o politicamente correto, o sofisticado, cai no ignorante. Mas tenho visto muitas vezes reações às obras de arte em que dizem ao artista: "Não, tu não podes fazer uma reflexão sobre a escravidão porque não és preto, porque não és um descendente de escravos". O que é isto?! Acho isto muito mau. "Não, não podes discutir a questão homossexual ou lésbica porque não és lésbica." E aí está toda a questão da apropriação, que agora está muito na moda e que eu acho que são discursos com os quais temos de ter muito cuidado, temos de estar muito atentos para, precisamente, não cair numa situação de falta de liberdade de expressão, para restringir, de dizer: "Não podes falar sobre isso porque não vens daí". Como? Todos viemos da Mãe Lucy, a primeira humana, o antepassado mais antigo da humanidade que foi encontrado no leste da África: a mãe da humanidade [risos]. Lucy ... in the sky ... [risos]

N.N: Mudando de assunto, foste a diretora do Centro da Arte Moderna da Fundação Gulbenkian, em Lisboa, mas a tua carreira tem sido mais associada à curadoria e à crítica. Como é a tua aproximação à curadoria frente à obra e ao artista? Como é essa relação?

I.C: Para mim é muito claro. Para mim, o grande referente como curador e o meu maestro, afortunadamente conheci-o e tivemos ótimas conversas, é Harold Szeemann. Para mim, ele é a referência do curador. Uma das muitas coisas boas que ele tinha era um profundo respeito pelo artista, e ensinou-me isso. Acredito que o trabalho de curadoria é um trabalho de mediação: a mediação entre o artista e a instituição, entre o artista e o público, entre a instituição e o público... É um trabalho de mediação. Claro que podes dizer-me, e posso concordar, que também é um pouco um trabalho de autor. O trabalho de mediação tem algo de autor, porque apresentas um conceito, uma leitura da obra. Mas, para mim, é acima de tudo mediador e cuidador. A palavra "curador" vem de curar; curar na arte significa cuidar. Para mim, basicamente, isto significa ser um curador.

N.N: No caso do incognitum, vão fazer uma espécie de residência no Estreito de Magalhães, como te aproximas disso? É um momento em que a obra está apenas a começar a formar-se, não é que chegue o artista e diga: "OK, é isto". Como é que trabalhas nesse caso?

I.C: Vou dizer-te uma coisa. Fiz a minha primeira grande exposição em 1994, chamava-se The Day After Tomorrow, e era uma exposição internacional em Lisboa, no marco de que Lisboa era a Capital Europeia da Cultura. O que fiz foi trabalhar apenas com peças novas. Então, os artistas internacionais viajaram para Lisboa dois anos antes, passaram uns dias na cidade e em Portugal, olharam para os espaços e depois pensaram. Todos, os 25 artistas, produziram novas obras. Vi os projetos, mas eu realmente não vi as obras até ao dia da inauguração. Todas estavam prontas e montadas. Então, para mim é fascinante, completamente fascinante, acompanhar todo o processo de criação. Claro que também adoro descobrir obras já feitas, chegar a uma coleção... Mas, como curadora, ter a possibilidade de acompanhar o processo de criação desde "o outro" [risos] e ver como os artistas - com as condições do tempo, espaço, tudo - vão criar uma nova obra... Eu adoro isso, e acho que essa é a grande diferença entre um curador de arte contemporânea e um curador de arte moderna. Eu adoro trabalhar com pessoas. Eu não sou uma dessas curadoras para quem os artistas são um problema. O artista é o melhor. O Incognitum dá essa possibilidade. A residência é um encontro entre artistas portugueses e artistas chilenos. A lista, como sabes, não é binacional: rompemos isso [risos]. É mais uma geografia afetiva do que uma geografia nacional. Isso será o encontro, e os artistas podem ou não produzir novos trabalhos durante o encontro, ou ter ideias novas durante essas duas semanas que passem em Punta Arenas. Essa é uma decisão primeiro deles e depois nossa, como curadores. A ideia é falarmos durante todo o processo. Assim o vejo, como um work in progress no qual os curadores devem cuidar de coisas tão simples como se um artista precisar fazer uma investigação, ajudá-lo nisso, encontrar as referências... É para mim um trabalho muito quotidiano e próximo do artista. Isso é o que eu adoro. É por isso que o modelo bienal está a mudar. Quando trabalhei em bienais, com a produção de novas obras, adorava. Adoro.

N.N: Tu e o Raúl serão co-curadores do Incognitum. Como vês esse relacionamento? Não refiro nenhum de vocês em particular, mas ao partilhar o espaço como curador.

I.C: É muito simples: o Raúl sabe muito sobre arte chilena e eu disse-lhe o que sabia. Eu sei tudo sobre arte portuguesa. Então é simples [risos]. Sempre há que compartilhar, não há? É um encontro de conhecimento: um conhecimento profundo da arte chilena, que o Raúl Miranda tem, com o meu conhecimento da arte portuguesa, e esse encontro que resultará da lista de artistas que escutaste hoje.

N.N: Quais foram os critérios que seguiram para selecionar os diferentes artistas que participarão deste projeto?

I.C: Os eixos curatoriais são três. Primeiro, uma reflexão sobre o colonialismo e o pós-colonialismo, e depois encontrar nos mapas da arte portuguesa e da arte chilena artistas que têm essa reflexão. O segundo é a ideia de viajar, porque é a comemoração dos 500 anos da viagem de Magalhães, e o deslocamento. E o terceiro é o deslocamento e a viagem não no sentido físico, e sim também num sentido psicológico. Fernando Pessoa, que é como o nosso Beckett ou o nosso Joyce, diz que "viajar é sentir". Esses são os três eixos curatoriais que levaram a esta seleção. O incógnito: a descoberta, a viagem, o desconhecido.

N.N: Precisamente ia perguntar-te sobre a citação de Fernando Pessoa: "A melhor maneira de viajar é sentir". Neste caso, a viagem seria o sentimento, seria através não só da distância geográfica, e sim também da distância histórica: estamos a falar de colonialismo, pós-colonialismo, e são 500 anos de história. Como observas esta viagem, não apenas desde a obra, mas também desde a experiência artística?

I.C: A viagem é algo proeminente na experiência artística contemporânea. Os artistas são, como sabes, cada vez mais nómadas, cada vez mais moram entre países, cada vez fazem mais residências... Há uma condição nómada no artista contemporâneo que o aproxima muito da época da viagem, e a viagem é muito permanente na vida e na prática artística contemporânea. Eu vejo isto muito claramente, é assim no mundo de hoje.

N.N: E sobre o assunto da arte e das viagens - viagens no tempo, digamos - para ti, para onde é que a arte viaja? Qual é o seu trajeto hoje?

I.C: Vai até onde o artista quiser. Eu acho que será cada vez mais como Clement Greenberg dizia: "Para ser um crítico de arte, só preciso de dois dedos: um para apontar o que é bom e o outro para escrever". Penso que cada vez as coisas são mais complexas e que não podemos dizer que a arte vai numa direção. Há muitas direções, e a mim interessa-me mais o que narra uma obra, e o que me parece que acontece mais hoje é que as obras que mais avançam não são aquelas que dão um passo à frente, e sim as que dão um passo em profundidade. A mim interessa-me mais a profundidade do que aquilo que seja de vanguarda. Por exemplo, para mim o tema das técnicas não é algo relevante, não influi no facto de uma obra ser mais avançada. A pintura pode ser muito avançada, porque aprofunda algo que outros meios não aprofundam. O meio é o meio. O meio é como a tua caneta para escrever, não é o que faz a obra: o que faz a obra é o que escreves.

 

 

 

[Tradução de Felipe Alfaro]


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Esta entrevista foi originalmente publicada na Artishock – Revista de Arte Contemporáneo, a 8 de Agosto de 2018.