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VOSTOK VIAGEM ÀS PROFUNDEZAS DO INVISÍVELLIZ VAHIA2015-03-17
O lago Vostok é um dos maiores lagos sub-glaciares do mundo. Localiza-se a quase 4 mil metros abaixo da superfície gelada da Antártica, perto da base de investigação russa Vostok.
VOSTOK é também o nome de um projecto da artista brasileira Letícia Ramos, que parte desse momento pioneiro do primeiro contacto com as águas secretas do lago antártico. Conta a artista no texto explicativo do projecto que ao regressar de uma residência artística no Polo Norte é surpreendida por essa notícia e decide iniciar o projecto VOSTOK, com o “objetivo investigar e construir uma paisagem subaquática a partir de um modelo da península antártica e “evocar” as escuras paisagens deste lago submerso perdido no tempo.”[1] Para levar a cabo essa investigação, Letícia Ramos desdobra o projecto VOSTOK em vários elementos: um filme, um livro, um disco e uma performance. Cada elemento trata diferentes aspectos do mesmo universo ficcional, numa conjunção entre factos científicos e produção artística. A artista faz uma descrição sumária dos constituintes do projecto: “A curta-metragem Vostok [2], de 8 minutos de duração, foi realizada em 16mm a partir de maquetes e modelos da Antártida e do Lago submerso VOSTOK, que simulam a viagem de um submarino através desta paisagem. O som do filme foi gravado ao vivo e junto aos cenários do filme em performace intitulada “Ensaio para gravação de orquestra”. O filme foi finalizado em película 35mm e HD, sendo possível sua apresentação tanto em salas de cinema convencionais, em programas e festivais de cinema, como em exposições contínuas.” Há também o livro de artista “VOSTOK _ um prólogo”, onde se podem ver imagens fotográficas das maquetes que simulam os ambientes aquáticos da Antártica. Quem conhece o percurso da artista sabe da relação constante entre materialidade e visualidade, reflectida na construção de aparatos específicos para a captação de imagens, um facto recorrente no seu processo de trabalho. A forma como a imagem é criada é tão importante como a imagem resultante. Há uma co-relação entre aparato e imagem, que se moldam e influenciam mutuamente. Tal como Marey e Muybridge construíram aparatos técnicos para conseguir ver o movimento invisível, no trabalho de Letícia Ramos há também este processo investigativo, laboratorial, que liga o extremamente material ao que ainda não existe como imagem pictórica. Em VOSTOK, ao contrário destes projectos anteriores, Letícia construiu antes os cenários, não as máquinas, capazes de criar essa paisagem inacessível. Letícia Ramos foi buscar as “imagens da ciência” que informam o nosso imaginário. Imagens habituadas a domesticar o irrepresentável, que são fruto de uma simplificação, clarificação e esquematização do caos dos processos da natureza. O mundo criado por Letícia em VOSTOK é um mundo de grão fílmico e de preto e branco, como nos primórdios dos aparatos cinematográficos e com referência ao imaginário da ficção científica dos anos 1950, dominado pela hard science, pelas maquetes e cenários de mundos e tecnologias ainda desconhecidos. As descobertas, as invenções, o cientista como agente de mudança, o mundo dependente das inovações, o futuro criado em estúdio, modelado em cartão, suspenso em fios, reflecte-se nas imagens primárias e ao mesmo tempo poéticas de Letícia Ramos. Uma poética que deriva do fascínio da junção entre o absolutamente concreto com o incrivelmente abstracto. As imagens da ciência que nos dão a ver o imperceptível aos sentidos, que nos dão acesso a mundos conhecidos apenas pela tecnologia. A imagem existe antes de se materializar. O que Letícia propõe é a construção dos mecanismos para a materialização dessa imagem imaginada, dessa imagem que paira etérea à procura de uma forma que a transcreva num suporte. O processo artístico de Letícia é esse jogo entre a imagem invisível latente, à espera de se tornar algo concreto, e a materialidade pesada dos aparatos fotográficos ou cinematográficos, um regresso à materialidade do filme, ao registo concreto da luz na película. Um processo de descoberta de formas, um processo investigativo, aberto a que novas imagens se revelem.
Assim como “o mapa cria a paisagem”, o filme de Letícia cria um mundo real, submerso e invisível, preso nas profundezas da Antártica, isolado por 4 mil metros de gelo.
Notas [1] Texto de introdução ao projecto VOSTOK, disponível em: http://leticiaramos.com.br/vostok_teaser/ [2] O filme VOSTOK foi mostrado no Museu Colecção Berardo no ano passado, aquando da exposição “Nós sempre teremos Marte”, integrada no BES Photo 2014, do qual a artista saiu vencedora. Será novamente exibido, em Solo Show, no CAPC de Bordeaux, de 19 de março a 17 de maio deste ano. [3] ERB – Estação Rádio Base, são antenas de telecomunicação colocadas nos edifícios.
[a autora escreve de acordo com a antiga ortografia] |