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AMBIENTE RETINIANO DE FRA ANGELICO A ØYVIND KOLÅ | PARTE 1PEDRO CABRAL SANTO2021-12-29
[Esta é a primeira parte do artigo Ambiente Retiniano – De Fra Angelico a Øyvind Kolå. A segunda parte pode ser lida aqui e a terceira aqui]
É um facto que os mecanismos fisiológicos afetos à perceção visual se desenvolveram em função da sobrevivência dos organismos no seu meio ambiente. Todo o sistema visual se encontra em permanente alerta, seja para regular funções orgânicas elementares, seja para despoletar a reação a eventuais situações de perigo. Em função dessa exigência, o dispositivo visual desenvolveu uma enorme maleabilidade face a múltiplos estímulos – luz ou ausência desta, movimento lento, rápido, muito rápido, etc. Trata-se de operações aparentemente simples, mas que foram fruto, ao longo do tempo, de uma complexa evolução dos órgãos. Quando existe irradiação de luz, esta é imediatamente detetada através de uma reação automática, inconsciente, e o mesmo se passa em relação à deteção de movimento ou mesmo à necessidade de centrar um objeto no nosso campo visual, para o isolarmos e o reconhecermos através da sua forma, escala, cor ou textura. A neurociência tem-nos elucidado como, na perceção visual, as imagens se formam, em grande parte, já na própria retina, constituindo aquilo que se designa por campo ou ambiente retiniano. Este específico ambiente no qual as imagens se apresentam será apenas um passo um conjunto de operações intrincadas, que implicam toda a complexidade do sistema neuronal. Mas, na sua expressão imediata, contemplar/perceber imagens, expondo-as diretamente na retina, significa explorar fisiologicamente o campo visual, mapeando no córtex visual a sua projeção na retina. Isto ocorre sobre o pano de fundo da relação (em permanente movimento) entre o organismo e o ambiente, a qual o aparelho percetivo pode limitar-se a simplesmente duplicar e confirmar. No entanto, nesse contexto, o mínimo facto relevante vai ser imediatamente registado e induzir uma reação. O campo retiniano forma um ambiente singular no contexto do nosso complexo sistema visual, e pode-se considerar o ponto de partida para a contemplação do mundo. Assim, tendo em conta o presente contexto, a maior ou menor acuidade com que observamos um objeto prende-se com a curiosidade e a atenção sobre o mesmo e as suas implicações para a própria sobrevivência. Num primeiro momento, tudo aquilo que é selecionado, e simultaneamente o que é simplesmente ignorado, depende já de uma semiótica do organismo, e do modo como os seus processos simbólicos estruturam a perceção. Este fator está presente em todo o acto de ver e, em particular, em qualquer relação que se estabeleça com a imagem, mental ou pictórica, começando na própria sensibilidade do olho. Essa dimensão puramente ótica do simbólico revela-se fundamental para a arte moderna. Na medida em que esta valoriza, e procura, a rutura no simbólico – sem que de modo algum possa verdadeiramente aboli-lo – é muitas vezes através da redução aos seus componentes elementares que ela vai prosseguir, estrategicamente, esse objetivo. Assim, vamos ter múltiplos processos de redução: impressionismo, simbolismo, cubismo, surrealismo, expressionismo, minimalismo. Em qualquer caso, essa redução faz-se ou investindo diretamente a dimensão sensível e material, na sua sensibilidade e materialidade, ou investindo o próprio simbólico, de tal modo que este não pode ficar intacto – como é o caso do simbolismo ou do surrealismo – ou ainda provocando o curto-circuito das duas dimensões – como faz frequentemente o expressionismo. De qualquer modo, a imagem passa a estar em questão, de tal modo que o ótico, na sua imediatez, é diretamente convocado, mesmo que seja, como em Duchamp, para o negar – em nome do cérebro e dos seus processos simbólicos, que, como nos ensina a neurociência, estão já presentes no olho, na retina. A forma como a luz é capturada passa, assim, a constituir um primeiro fator decisivo para percebermos o mecanismo que preside à leitura de uma imagem. A luz chega ao olho em diferentes comprimentos de onda e intensidades, e é justamente na diferenciação desses comprimentos de onda e dessas intensidades, e da sua distribuição espacial, que consiste a sensibilidade do olho. Para realizar a diferenciação de um modo seletivo, possibilitando a formação de imagens a partir do que pode surgir como caos indiferenciado, o olho dispõe um conjunto de mecanismos que calibram a sua sensibilidade, preparando e mesmo antecipando o tratamento da informação pelo córtex visual [3]. Em primeiro lugar, os fotorrecetores – em especial os cones e os bastonetes [4]. No entanto, o ambiente retiniano não é povoado apenas pelos fotorrecetores. São conhecidas mais de oitenta tipos de células na retina humana, desempenhando diferentes funções especializadas no processamento da informação visual (e, em alguns casos, não visual), e organizando-se em diferentes vias neuronais conduzindo ao cérebro. As células ganglionares constituem um elemento chave deste processo, recebendo toda a informação proveniente dos fotorrecetores, e enviando-a para o cérebro. São os diversos tipos de células ganglionares que separam a informação visual, especializando-se em diferentes características, tais como luminosidade, contraste, movimento, cor ou espacialidade. E cada tipo de célula ganglionar constitui, por si só, uma rede de campos recetivos que recobre o espaço retiniano, canalizando para o cérebro um tipo específico de informação. Desse modo, cada ponto da retina parece ser representado por diversos canais especializados de informação, correspondendo, cada um, a um diferente tipo de célula ganglionar. Contudo, ainda não há acordo sobre a forma exata, e as diferentes modalidades, que assume o processamento da informação. Quantas vias neuronais existem, que informação veiculam, e como se relaciona essa informação com o conteúdo percetivo [5]? A conceção atual do processamento visual resulta, em qualquer caso, da confluência de diversas linhas de investigação: primeiro, a ideia, avançada em 1966 por Christina Enroth-Cugell e John G. Robson, de que todo o sistema visual opera a partir de um conjunto de filtros espaciais [6]. Segundo, a ideia, avançada em 1969 por Gerald E. Schneider, de que existem duas grandes vias neuronais, uma respondendo à pergunta «onde está?» (Where is it?), a outra respondendo à pergunta «o que é?» (What is it?) [7]. Terceiro, o desenvolvimento de novas tecnologias que, nas últimas décadas, nomeadamente nos domínios dos marcadores e da retinografia, têm feito avançar o conhecimento da anatomia e do metabolismo da retina e das vias neuronais que lhe estão associadas. Por fim, Margaret Livingstone e David Hubel propuseram, em 1988, uma síntese destas três linhas de investigação que se revelou muito influente [8]. O modelo proposto identifica duas vias neuronais: a via M (magnocelular, associada às células ganglionares M, ou parasol), e a via P (parvocelular, associada às células ganglionares P, também conhecidas por anãs), com características de processamento e conteúdos associados, respetivamente, ao sistema «Where» – rapidez, baixa resolução espacial, acromatismo, sensibilidade ao alto contraste – e ao sistema «What» – maior lentidão, alta resolução espacial, sensibilidade à cor, sensibilidade ao baixo contraste. Este modelo do processamento visual é muito atraente, pela sua simplicidade – e ainda hoje é, com diversas revisões, o mais largamente aceite e difundido. No entanto, desde o início, alguns dados não encaixavam bem. Com o tempo, as discrepâncias foram-se acumulando, em particular no que se refere às perguntas fundamentais: como se constroem as sensações visuais concretas? E até que ponto se efetua a troca de informação entre os dois sistemas? Não corresponderá o processamento da informação na retina mais a um modelo de múltiplas vias neuronais paralelas (já que estão identificadas múltiplas células ganglionares M e P distintas, morfológica e funcionalmente)? O modelo necessitava, provavelmente, de uma revisão de fundo. Um dos principais problemas levantados diz respeito à visão da cor, e consequentemente à função e funcionamento da via parvocelular (P), que no modelo de Livingstone e Hubel era responsável pelo detalhe espacial fino (o What), mas também (em parte) pela cor. A base da moderna ciência da visão cromática surgiu em 1957, quando Leo M. Hurvich e Dorothea Jameson descreveram matematicamente a visão cromática [9], nos termos da relação entre fotorrecetores e processamento neuronal prevista por Johannes von Kries [10]. No entanto, falta, mesmo hoje, determinar os processos fisiológicos que sustentam o processamento da cor [11]. A perspetiva dominante nasceu em 1966, a partir de um artigo Russell L. De Valois, Israel Abramov e Gerald H. Jacobs, que identificava quatro grupos de células espectralmente oponentes presentes no processo LGN de uma espécie primata, apresentando assim respostas espectrais compatíveis com as previsões de Hurvich e Jameson [12]. Quando Russell L. De Valois, e Karen K. De Valois apresentaram, em 1993, a revisão desta proposta [13] – tendo como objetivo principal o acerto dos eixos definidos pelos pares oponentes no espectro – já se verificava a sua convergência com o modelo avançado em 1988 por Livingstone e Hubel. O resultado é que uma parte da informação cromática processada na retina (aquela que é proveniente dos cones L e M) é comprimida – juntamente com informação acromática – na via P, através de dois tipos de células ganglionares anãs (L-M e M-L), enquanto que a outra parte (aquela que é proveniente dos cones S) é transmitida pela via K (koniocelular), através de um tipo de célula pequena bistratificada com oponência S-(M+L) [14].
Pedro Cabral Santo
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[1] Ver James J. Gibson, The Ecological Approach to Visual Perception (New York: Psychology Press, 2015).
KOLAS; Øyvind Kolas, FARUP, Ivar ; RIZZI, Alessandro, “Spatio-Temporal Retinex-Inspired Envelope with Stochastic Sampling: A Framework for Spatial Color Algorithms” (Journal of Imaging Science and Technology, 55: 4 (2011). Margaret S. Livingstone, Vision and Art: The Biology of Seeing, New York: Harris N. Abrams, Inc., 2002. Ulrich Middeldorf , “L’Angelico e la Scultura”. Rinascimento, 6: 2 (1955). James J. Gibson, The Ecological Approach to Visual Perception (New York: Psychology Press, 2015). Paul Cobley, Cultural Implications of Biosemiotics (Dordrecht: Springer, 2016). David R. Williams, e Heidi Hofer, «Formation and Acquisition of the Retinal Image» (in Leo M. Chalupa, e John S. Werner (eds.), The Visual Neurosciences. Cambridge: The MIT Press (2004). Christine A. Curcio, Kenneth R. Sloan, Robert E. Kalina, e Anita E. Hendrickson, «Human Photoreceptor Topography» (The Journal of Comparative Neurology, 292 (1990). Botond Roska ; Markus Meister, “The Retina Dissects the Visual Scene into Distinct Features” (The New Visual Neurosciences (John S. Werner, e Leo M. Chalupa, eds.), Cambridge: The MIT Press (2014). Botond Roska, e Markus Meister, «The Retina Dissects the Visual Scene into Distinct Features» (in John S. Werner, e Leo M. Chalupa (eds.), The New Visual Neurosciences. Cambridge: The MIT Press (2014). David Milner, «How Do the Two Visual Streams Interact with Each Other?» (Experimental Brain Research, 235: 5 (2017). Yves Rossetti, Laure Pisella, e Robert D. McIntosh, «Rise and Fall of the Two Visual Systems Theory» (Annals of Physical and Rehabilitation Medicine, 60: 3 (2017). Chistina Enroth-Cugell e John G. Robson, «The Contrast Sensitivity of Retinal Ganglion Cells of the Cat» (The Journal of Physiology, 187 (1966). Mortimer Mishkin e Leslie G. Ungerleider, «Contribution of Striate Imputs to the Visuospatial Functions of Parieto-preoccipital Cortex in Monkeys» (Behaviourial Brain Research, 6: 1 (1982). Margaret S. Livingstone ; David Hubel, «Segregation of form, color, movement and depth: anatomy, physiology, and perception» (Science, 240 (1988). Russell L. De Valois, Israel Abramov, e Gerald H. Jacobs, «Analysis of Response Patterns of LGN Cells» (Journal of the Optical Society of America, 56: 7 (1966). Stewart H. C. Hendry, e R. Clay Reid, «The Koniocellular Pathway in Primate Vision» (Annual Review of Neuroscience, 23 (2000). Ian Verstegen, «John White’s and John Shearman’s Viennese Art Historical Method» (Journal of Art Historiography, 1 (2009). Ulrich Middeldorf, «L’Angelico e la Scultura» (Rinascimento, 6: 2 (1955). Carl Brandon Strehlke, Angelico (Milano: Editoriale Jaca, 1998). Georges Didi-Huberman, «La Dissemblance des Figures selon Fra Angelico» (Mélanges de l'Ecole Française de Rome: Moyen-Age, Temps Modernes, 98: 2 (1986). SHEARMAN, John, “Leonardo's Colour and Chiaroscuro” (Zeitschrift für Kunstgeschichte, 25 (1962). Michael Baxandall, Painting and Experience in Fifteenth Century Italy: A Primer in the Social History of Pictorial Style (Oxford: Oxford University Press (1972).
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