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A CIVITAS DE TODAS AS PRESSASJOÃO BORGES DA CUNHA2022-08-31
Este estado de coisas sofre uma exacerbação quando se põem em marcha os expedientes da estética. E aqui, toda a fisonomia urbana acaba a ser bem vincada e levada a reconhecimento, matéria para uma tarefa árdua de codificação que resulta numa estampagem em série. A imagem é a grã-oficiante. O cliché, seu filho dilecto. Mas não basta, porque não há atmosfera, não há sopro, não há cintilação, não há alinhamento visual, não há voz, não há Stimmung, a que deixemos de se ser sujeitados para perceber a graça autêntica da cidade. Autenticidade e folclore dão-se as mãos. A experiência de cada um é reenviada a estações obrigatórias de um apreciacionismo militante, no que se assemelha a um exercício de psicagogia. Naturalmente, com os seus excluídos. Entre nós, o exemplo acabado. Lisboa e a sua luz. Quem não a viu, não viu Lisboa. Quem não a vê, nunca será lisboeta. A indústria da identidade urbana é inclemente. Esta discussão tem âmbito actualizado no contexto da afirmação turística dos destinos globais, sobretudo daqueles que entram numa mercancia de mitos e de representações– ou de ideologias em oferta [1]. Mas há ainda relevo nela quando se olha para a ementa das grandes cidades na carta da representatividade. Territorial; populacional; democrática, também. Berlim, em dois mil e vinte e dois, continua a desafiar todas as lógicas: a da identidade, a da autenticidade, e, se descontarmos a sinédoque geopolítica de Berlim-falou-com-Paris/ Berlim-fala-com-Washington/ Berlim-espera-falar-com-Moscovo, a da representatividade, também. De resto, apesar do Stadtluft macht frei, não há ar de Berlim. Apesar do Tiergarten, não há rótulo para Berlim. Apesar de Wenders-Handke, não há céu sobre Berlim. Apesar do Check-point Charlie, não há vidros no chão de Berlim. Na verdade, não está provado que haja Berlim. Berlim e as suas armadilhas. Estar recortada por um projecto imperial, dir-se-á, é aquilo que oferece a Berlim o seu cunho identitário. Disto decorreria um aspecto geográfico que se assemelha a uma extensa conquista territorial, a partir de um centro (Mitte) cuja macrocefalia significaria também um projecto de controle e de poder. É uma caracterização verosímil mas nada verdadeira. Berlim penou para afirmar-se como capital de um império, e só em 1907 é que veio a beneficiar de uma administração municipal centralizada, e ainda sem congregar a totalidade dos ministérios da Alemanha-de-Bismarck [2]. Munique entendia-se muito melhor com Viena (a kaiserlich-königlich) do que esta povoação prussiana de onde os reis fugiam para ir para Potsdam. E mesmo sob o Drittes Reich, o chanceler não lhe encontrava a graça, nem a achava à altura do regime. O gigantismo berlinense provém de um processo que é uma afronta ao urbanismo, não enquanto disciplina estimável, mas enquanto ideologia que pugna pela bondade universal do artefacto cidade, sempre que trabalhado por modelos desenvolvimentistas e intervencionistas – isto à mercê de vícios mentais como o da explicação irradiante centro-periferia e o da compartimentação zonal. Em Berlim, a grande Berlim, foi um conjunto de catorze povoações, de súbito hipertrofiadas, que tiveram de agregar-se e ceder o nome a uma outra, a qual, por sorte, lhes ficava equidistante. Em 1910, Neukölln tinha o dobro de população jovem das vizinhas Treptow e Tempelhof, mas prosseguiram juntas em fuga àquilo que mais assolava a natureza alemã: os particularismos [3]. Berlim, unificação e reunificação são uma história antiga. Disto resultou um caso de geografia e economia urbanas que, agora, tanto causam sobressalto como fascínio, colocando questões pesadas à justiça espacial e ao direito à cidade, e às quais a vertigem da mobilidade não dá resposta. Mas sustentando, também, formas de cidadania que entroncam no cosmopolitismo emancipatório. A ideia de que ter um passaporte berlinense não é ter um título de transporte, mas um documento de identificação – ser um berlinense – povoa os sonhos libertários de quem procura vacant land. Os slogans impõem-se. Berlim, mosaico. Berlim e as suas lutas. Berlim, liberdade. O nexo mais saliente na tradição e na experiência berlinense, uma vida onde nada se faz esperar (mito implacavelmente perigado pelos atrasos ferroviários que agora teimam em tornar-se proverbiais), é aquele que liga paisagem urbana e panorama político. Político, por certo, sem a desafectacção ideológica a que a linguagem gestionária sujeitou o termo, como quem fala de políticas urbanas para arranjar espaços verdes. Não é debate fácil de ter nos dias que correm, mesmo que ainda à conta de um muro que, fisicamente, já caiu há mais tempo do que o tempo que existiu. O político, em Berlim, traz a pegada de um experimentalismo em carne viva que celebrou o sujeito-objecto da modernidade extrema. Não é ele o worker do parlamentarismo, nem o citoyen das barricadas, nem o pathfinder das pradarias. Esse sujeito-objecto são as massas. A massa eleitoral de um regime de sombras. A massa indignada dos espartaquistas que entram pela cena em Tambores na Noite de Bertolt Brecht [4]. A massa arruaceira do Corpo de Voluntários (Freikorps) que interromperam a Oresteia encenada por Erwin Piscator na Großes Schauspielhaus de Hans Poelzig [5]. A massa de visitantes que, neste exacto instante, invade a Museumsinsel e em honra dos quais se transgrediu toda a doutrina do restauro crítico e todos os escrúpulos da reabilitação arquitectónica, dando a ver cúpulas do séc. XVIII construídas a semana passada. As massas impacientes, símbolo da pujança industrial, e que se comportam como numa grande coreografia, acabando a exigir da política uma emoção estética [6]. De má memória. Mas continuada. Foi, aliás, no que acabou por tornar-se a memorialização dos crimes de guerra. Em Berlim, por exemplo, numa sinistra contenda estética entre Peter Eisenman e Daniel Libeskind [7]. A experiência das massas, traduzida de forma aproximada pela imagem do banho de multidões, arrasta com ela a estimulação nervosa que levará à queda numa sensibilidade exausta, mas não menos especiosa. Desenvolve-se a atitude embaciada de quem a já nada interessa, nem sequer as coisas do espírito. E a quem só tocam pequenas excentricidades, desconchavos e aparições [8]. O que é excelso perdeu a chama e procura-se refúgio. É este o retrato do blasé – blasiert –, personagem que estará para Berlim como o dandy para Londres, e o flâneur para Paris [9]. Reconhecê-lo-emos bem no filme de Walter Ruttmann, Berlin – Die Sinfonie der Großstadt (1927), onde a uma transeunte nada incomoda que lhe atirem fumo para o rosto (25’56’’) [10]. Ou nos textos de Joseph Roth sobre a Kurfürstendamm, quando o escritor se entrega à observação minuciosa dessa bizzaria que são os vendedores ambulantes que têm estabelecimento fixo [11]. O blasé recolhe percepções muito calhadas ao olhar etnográfico porque o espanto não lhe entra no reportório. De resto, nada é supinamente desviante, nem subversivo, menos ainda importante. Tudo é assunto tribal. Berlim e as suas tribos. Ganha assim fortuna o argumento de que, por aqui, as grandes obras, mormente as que são votadas à esfera das artes, serão sempre anódinas. Não porque se esteja a braços com um estaleiro expandido – esta cidade mantém-se em ‘reconstrução’ desde que foi fundada –, mas porque não há atenção que se deixe aliciar pelas manifestações de aparato. Ao contrário do que possa suspeitar-se, pompa e Berlim são um namoro na forma tentada. No Reichstag, as coisas correram melhor a Christo ao escondê-lo, do que Norman Foster a mostrá-lo. E parece também não estarem a correr de feição a David Chipperfield no Neue Museum, com falsas partidas a raiar o caricato. O contexto das práticas culturais em Berlim é o de uma atomização feroz que transforma a cena artística numa órbita de partículas avessa a qualquer cartografia ou catálogo. Deu-se aqui desde cedo, e com museografia a condizer, a consabida celebração das vanguardas – oxímoro fecundo, a tradição vanguardista –, tornando a magna-galerização do moderno e do contemporâneo num ofício redundante. Qualquer Tate ou Beaubourg em Berlim resultarão em iniciativas fátuas. A figura de uma câmara de curiosidades – Wunderkammer –, mas uma câmara de curiosidades colectiva, ajudará talvez a entender melhor a blaseicidade [der Blasiertheit] que recorta os sentimentos de um berlinense universal. Pois que já só o que mal se entende tem graça. Fósseis, línguas-mortas, atrevimentos, fulgurações. Duas: a) na Fundação Tchoban, Museum für Achitekturzeichnung, autêntica caixa de música com desenhos de arquitectura dentro – uma arte-menor ao serviço de uma arte maior –, podem ver-se até 28 de Setembro, as pranchas do projecto Neo-Tokyo/ Akira, a cidade tera-distópica. Com técnica de transparências sobrepostas a que os autores chamam “cortes” [Schnitt], são peças de uma precisão geométrica hipnótica e de um cromatismo magnético, a fazer corar as estereoscopias de outrotra e os três-dê de agora [12]. b) a ala dedicada ao período Biedermeier na Alte Nationalgalerie é um imenso festim. Mas apenas para quem tem um apetite sólido e não desdenha refeições pesadas. A fazer reconsiderar tudo o que se sabia sobre kitsch e pernas cansadas. No quadro de Johann Erdmann Hummel, «Die Granitschale im Berliner Lustgarten» (1831) há matéria que baste para avaliar as subtilezas das grands-oeuvres em Berlim. Com a inquietante estranheza de esta colecção circundar a sala onde estão expostas as obras de Caspar David Friedrich. O gosto complica-se. O juízo agarra-se ao chão. Berlim e os seu refúgios. [13] Por ocasião de um festival de cinema em 2013, Juliette Binoche dizia, numa entrevista à televisão portuguesa, que em Lisboa notava-se ter havido um regime autoritário. Mas a vibração com que o fazia, denunciava pensar talvez num regime político de sinal contrário àquele que na realidade foi. Por sorte, em Berlim, julho de dois mil e vinte e dois, com o acesso à rede de transportes no limiar de gratuito, com as conversas sobre a que temperatura irão estar as casas em dezembro, nota-se que houve social-democracia. A bombordo ou a estibordo. No verão em que havia guerra e a seca chegou cheia de pressa, Berlim estava à espera.
João Borges da Cunha
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Notas Para o sentido de Stadtluft macht frei [“o ar da cidade liberta”], v. SENNETT, Richard (1994),Flesh and Stone: The Body and the City in Western Civilization, New York, London: W.W. Norton & Company [p. 151-158]. [1] ideologia, de acordo com o entendimento de Roland Barthes, enquanto investimento de sentidos segundos [BARTHES, R. (2007), Mitologias; Lisboa: Ed. 70]; representações de espaço em Lefèbvre, Henri (1991), The Production of Space; Oxford: Blackwell. Para a entrevista a Juliette Binoche a que se faz menção no último parágrafo v. arquivos do festival Leffest.
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