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COMO TRANSFORMAR O CAOS EM DANÇA?VERONICA CORDEIRO2023-03-22
Oswald de Andrade, Manifesto Antropófago, 1928.
Este é um caos-desvio-movimento-dança transhistórico, transcultural, transdisciplinar. Um caos de arquivo e uma demanda de roteiro, de origem e destino, de identidade e visualidade. Diz-se que Glauber Rocha detestou cada minuto da rodagem de sua obra magistral, Terra em transe (1697), porque sabia que era um filme profético. E eis que, mais de meio século atrás, o poeta e jornalista Paulo Martins, protagonista do filme, diz ao candidato religioso à presidência: “As nossas riquezas, as nossas carnes, as vidas, tudo. Vocês venderam tudo!” Será este, o nosso último sol? Quantas re-encenações da violência das novas origens repetiremos até termos vendido, de facto, tudo? Tupi, or not Tupi, that is no longer the question. O que fazer? O que sentir? No decurso das suas pesquisas de doutorado e pós-doc, Ângela passou a última década morando entre o seu Portugal natal e o Brasil, adentrando no gigante dos trópicos num movimento cada vez mais centrípeto – da academia para o sertão do Nordeste e da fotografia para as luzes e as sombras da floresta amazónica. Mais de dez anos de experiências transatlânticas foram construindo um corpo imagético ora documental, ora antropológico, e crescentemente impulsado por um olhar afetivo, sensível e poético. A partir de Terra em transe, Glauber Rocha converte a sua “Eztetyka da fome” (manifesto escrito em 1965) na “Eztetyka do sonho” (1971), ao compreender que, para além da exaltação paradoxal da violência, a única linguagem de transformação possível é aquela que se transforma intrinsecamente, que apela ao sem sentido para revelar o absurdo do real: uma linguagem onírica, mágica. Da violência estomacal à alegoria, da confrontação discursiva direta ao hibridismo das formas de ver, usar, sentir, o tropicalismo dos anos 1960 e 1970 no Brasil retoma o pensamento antropofágico de Oswald de Andrade e com revolta e resistência nos dentes e pulsão criativa a explodir de subversão e tesão, marca um antes e um depois na história cultural brasileira. Arte e vida se fundem, o campo da representação assume um novo papel e uma nova definição: “Seja marginal, seja herói”, escrevera Hélio Oiticica no bólide dedicado ao bandido conhecido como Cara de Cavalo, embaixo da imagem de seu corpo baleado, no chão.
© Ângela Berlinde
Em Transa_ Baladas do último sol, Ângela abre-se à experimentação para criar uma obra híbrida e multidisciplinar que recorre à fotografia, à literatura, à banda desenhada, à pintura e ao cinema, incorporando diversos recursos artesanais, digitais, analógicos e escultóricos, construindo um trajeto inspirado pela estética do afeto mas, também, possivelmente, inverso à sua obra anterior “Coração de Índio”. O olhar da artista é retrospectivo e experimental, o que implica um movimento perceptual dual de dentro para fora, e de fora para dentro. Nessa cartografia híbrida, móvel, o ecossistema dominante é o do espaço “entre”: entre-tempos, entre-técnicas, entre-etnias, entre-espécies, entre-linguagens, entre-formatos, entre gritos e sussurros, realidade e ficção, tristeza e exaltação.
Fotolivro TRANSA, Baladas do último sol, de Ângela Berlinde. 77 fotografias, 10 cadernos Bd, uma pagina quadrática. Edição limitada de 300 cópias, assinadas pela autora.
Na exposição que se abriu à cidade de Braga, de 21 de Janeiro a 11 de Março, juntamente com o lançamento do livro, na galeria do Museu Nogueira da Silva, a artista aprofunda estratégias formais e conceituais para dar significado à travessia. Um elemento crucial desta obra é a invocação da figura de Iracema, a virgem dos lábios de mel do romance de José de Alencar, mulher indígena da tribo Tabajara que representa a pureza, a confiança e a entrega da terra virgem. Além de incluir bandas desenhadas de uma história em quadrinhos da célebre Lenda do Ceará, na exposição a presença de Iracema faz-se sentir de maneira inesquecível a partir de um gesto perspicaz e subtil: uma lágrima cristalizada denota a tristeza de abandono em seus olhos, detalhe de uma imagem escura, de fundo negro, apropriada de um fotograma do filme de Carlos Coimbra (Iracema, 1975).
© Ângela Berlinde
Alegoria, história e ficção do real invadem o presente e ali ficam, para embaralhar a linearidade da História ocidental e reabrir a história mal contada e resolvida. A fotografia aqui entra como ferramenta de seleção, enquadramento, corte, registro e dispositivo de livre apropriação, ressignificação, transferência espacial e reconstrução pictórica de uma obra que nasce no imaginário europeu colonial na selva colonizada, e retorna, agora, em imagens pictóricas, apontando a flecha do nativo cativo de volta ao seu progenitor, ou, quem sabe, a quem? Eis a questão. Uma obra repleta de ironia, e assim mesmo, imensamente amorosa. Eis uma resposta. A utilização de elementos ornamentais e de pigmentos e minerais em estado natural interrompe a continuidade plana da superfície bidimensional da imagem fotográfica e dirige o olhar ao significado do estranhamento. A lágrima de Iracema nos conduz diretamente ao final trágico de sua história, e assim sendo, à atualidade da condição indígena e ecológica no Brasil. As imagens contidas em caixas que à sua vez contêm pó de urucum, entre outros pigmentos nativos, instauram um jogo com as possibilidades da percepção do olhar, e da imaginação. Mexendo as caixas para os lados, cobrimos mais um lado da imagem e desenterramos outro, e vice-versa. A história está viva e em constante reconstrução. Assim, nesta obra, os elementos que hoje lutam contra a ameaça de sua própria extinção foram transformados em raios X, radiografias das almas que irão sussurrar em nossos ouvidos sobrevoando as terras queimadas e aplanadas da Amazônia, vazias de sua densa fauna e flora tropical, se as coisas continuarem a andar na direção em que estão indo. Claudia Andujar luta há mais de cinco décadas pela proteção do índio e do ecossistema sadio, natural da Amazônia, do Brasil, do mundo. O fúcsia infravermelho de sua inesquecível obra-grito de 1976, a maloca do rio Catrimani rodeada por uma selva tão protetora quanto vulnerável, vem à mente nas imagens que, aqui, Ângela assinala por meio do mesmo bramido estético.
© Ângela Berlinde
Homenagem a esta luta que se faz cada vez mais urgente, a oca infra-vermelha de Ângela recebe um banho de purpurina, a vista aérea do encontro dos rios na grande selva é cor de rosa, e o sol da última balada, fúcsia, também. Rosa também são as aves pintadas sobre uma paisagem preto e branco, as palmeiras do açaí e o papagaio, a casa no rio, a boiada, o limiar tênue entre o fogo e a liberdade. Paixão, vida, tesão, risco, grito, ardor, fogo, o terreno crepuscular entre a vida e a morte, território nativo, terra ancestral, direito de toda a humanidade. Há gestos – porque estas estratégias de intervenção sobre a imagem fotográfica são gestos de identificação, estranhamento e classificação – que trazem à consciência o pensamento acerca da magia e do onírico do segundo e último manifesto de Glauber Rocha. Diante da impotência e da perplexidade com os rumos políticos do Brasil pós-golpe de 64, o horror das ditaduras militares, o transe político e de consciências, a perda total da liberdade, Glauber se dirige a uma nova questão, a mesma que guia a inquietação de Ângela Berlinde em Transa_Baladas do último sol: não faz sentido lutar no campo da razão opressora, mas nos territórios da desrazão, do absurdo e do mito. Só que no lugar da violência transgressora, para atravessar o adormecimento do sentido e da sensibilidade, Ângela apela à gestualidade da estética do afeto e insere uma lágrima de cristal no olho de Iracema, preenchendo de luz tudo aquilo que parece estar sendo jogado às margens escuras do abandono e do esquecimento. A história continuará a insistir: a lágrima de Iracema nos interpela com dor e amor, e nos deixa sem palavras: não poderemos esquecê-la. E que assim seja.
Veronica Cordeiro
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