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OS PÁSSAROS DE BUCHENWALDNATÁLIA VILARINHO2016-08-29
“Devo eu descrever o tempo, descrever os pássaros, os cheiros, as flores, os insectos? Nesta terra da Turíngia, nesta floresta de faias, aquela onde Goethe se vinha refugiar, como mostrar o que não pode ser representado sob a superfície da imagem?”
Conta-se que os pássaros desapareceram por completo da floresta de Buchenwald enquanto o forno crematório do campo de concentração se manteve activo e só voltaram quando o campo fechou e as pessoas começaram lentamente a perceber o que afinal se passava na Alemanha em pleno século XX. Christine Henry parte da associação entre pássaros e liberdade para criar um conjunto de peças cuja mensagem nos é difícil de digerir. É difícil digerir a realidade e aceitar que o horror, como diz a artista na folha de sala, “é uma tragédia inventada pelos homens”. À entrada, uma grande instalação evoca aquilo que seria a praça da chamada, onde os prisioneiros eram deixados horas ao frio e à chuva, apenas para deleite nazi. Nela, estão vinte e cinco aves, pássaros que representam a vida humana e a grande variedade de culturas afectadas nesse tempo. São todos diferentes. Em cada um, uma identidade. Em cada um, alguém que está virado de frente para a floresta de Buchenwald, representada na parede em três fotografias a preto e branco. Estas pequenas peças, de tamanhos variáveis, construídas com recurso a madeira, crochet e outros materiais, despertam emoções díspares. São figuras desoladas, mas também destruídas e assustadoras. No meio delas, tábuas de madeira que evocam beliches. No meio das tábuas, peças soltas, esqueletos numa vala comum, representam o que ficou para trás. Ao lado desta instalação, um carrinho de mão com uma grande cabeça de pássaro e outras, mais pequenas, entrelaçadas em arame farpado. O horror feito objecto. Num pequeno canto, separado da zona de entrada, somos assaltados por uma bancada de madeira com dez barras de sabão feito a partir de cinzas e sebo. Ao lado, uma imagem do forno crematório de Buchenwald. O horror feito arma. É-nos disparado um número de prisioneiro, cravado num quadro com um pássaro que habita este pequeno canto. É percorrendo esta exposição de Christine Henry que o horror nos vai invadindo, a pouco e pouco. A passagem da grande instalação à entrada para o pequeno canto das barras de sabão desenha já em nós um desconforto crescente. E é quando entramos no último espaço que o horror se torna documento, que percebemos que o histórico é pessoal. É aqui que o cruzamento entre a história de Emile e a obra de Christine culmina. Estamos numa sala com um amontoado de pássaros no chão. São corpos empilhados. Nestas pequenas peças de madeira, que a artista usa para construir os pássaros que estão na sala, estão corpos empilhados. As várias cabeças de pássaros são intercaladas nas vitrines com vários exemplares de “A Morte Lenta”, obra que Emile Henry escreveu depois de sair de Buchenwald. Há páginas abertas, a história está à frente de todos. Por baixo, estão mantas dobradas. Numa parede, seis telas com membros de pássaros, em fundos negros. Os pássaros que fugiram de Buchenwald e voltaram, um dia, quando o ambiente se tornou respirável. Christine Henry esteve por várias vezes prestes a visitar Buchenwald. Por uma razão ou por outra, quando visitou o campo, já Emile falecera. Habitaria BIRDS um espaço diferente se tivessem um dia falado sobre a sua visita? Sobre as suas percepções acerca do espaço? Acerca daquilo que se estende para lá do espaço? Para quem visita, BIRDS é tocante pelo registo pessoal, mas é sobretudo um testemunho fortíssimo, que nos abala por completo na sua mensagem social, política e humana. Está aqui Emile, mas como o próprio escreveu em “A Morte Lenta”, está muito mais: “muitos amigos me têm pedido que escreva o que vi e vivi, e se o faço agora alguns meses depois da minha libertação, é objectivamente, limitando-me apenas a descrever os factos sem os comentar, ou fazendo-o o menos possível, pedindo ao leitor que não veja nestas linhas a minha história pessoal mas a de milhares e milhares de crianças, de jovens, de homens feitos, de velhos e de mulheres, pessoas de tôdas as condições sociais, de tôdas as religiões e de todas as raças, que suportaram, pelas suas ideias, sofrimentos que a história moderna nunca registou”.
Natália Vilarinho
::: A exposição BIRDS pode ser visitada no atelier da artista, em Loulé, entre 5 de Agosto e 30 de Setembro de 2016. |