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NONA LIMMEN: A ENCARNAÇÃO DA FEITICEIRASALOMÉ CASTRO2023-02-20
Remontem às memórias da vossa infância e ponderem se pertenceram ao grupo das crianças que idealizou fadas e feiticeiras. Viveram no mundo das varinhas e das poções mágicas, das espadas e dos caldeirões da bruxa repletos de água da chuva, pétalas e folhas? Caso a resposta seja afirmativa, e a vossa criança interior subsista no vosso íntimo, interessar-vos-á explorar a obra fotográfica de Nona Limmen. Se são leitores ávidos de literatura gótica, especialmente do século XVIII e XIX, esta artista holandesa revelar-se-á uma figura incontornável: as suas imagens poderiam povoar tanto O Drácula de Bram Stocker, como O Monge de Mathew Lewis Gregory ou qualquer outro clássico deste género literário. Porém, a verdade é que a lente da sua câmara abrange sessões fotográficas de artistas da esfera gótica, como a cantora Chelsea Wolfe. Repletas de mistério, as suas fotografias evocam verdadeiros cenários místicos de castelos e de florestas envoltos em nevoeiro, onde feiticeiras regulam o poder das tempestades e do fogo, sob o brilho do luar. Se um filme pudesse representar o espírito da obra desta fotógrafa seria The Vvitch (2015), de Robert Eggers. Aí, surgem as mesmas paisagens enigmáticas e sombrias, de árvores retorcidas, envoltas numa aura de folclore e de tragédia iminente. Sacerdotisas pagãs em comunhão com a Natureza, vampiras que habitam castelos arruinados, fantasmas que vagueiam pelas vastas charnecas, quase como uma referência a Catherine Earnshaw de Monte dos Vendavais... Criaturas fruto de lendas mitológicas ou de folclore, de sonhos, memórias ou obras literárias, eis as figuras que povoam as ambiências mágicas criadas por Nona Limmen. O que nos conduz à primeira questão: qual será o significado simbólico da feiticeira? Qual o interesse em representar-se a si própria como tal? O uso deste arquétipo não é novo, diversos artistas de diferentes esferas o têm abordado. Pense-se nos Black Sabbath, que chocaram a sociedade dos anos 70, ou em Anne Sexton, célebre por quebrar diversos tabus, nomeadamente ao identificar-se como bruxa, no poema Her Kind. Independentemente de outros significados, a imagem da bruxa, em ambos os casos, foi utilizada como símbolo daquele que é proscrito pela sociedade porque é diferente: é uma afronta às suas normas e regras, recusando-se a segui-las. Feiticeira, fada ou maga correspondem todas à antítese da imagem idealizada da mulher. Segundo Carl Jung, representam as forças sombrias do inconsciente, os nossos recalcamentos, desejos e medos mais profundos; são o eco da energia irracional e instintiva do nosso ser primitivo e que vai contra as normas e regras impostas pela sociedade. Ora a coletânea do trabalho dos últimos 9 anos, lançada pela fotógrafa em 2021, transmite precisamente a ideia descrita por Jung. Intitulada The Age of Sucubus pretende ser um tributo às crenças antigas e ao inconsciente coletivo. A inspiração por detrás do título e do tema da obra consistiu em Lilith, o arquétipo da mulher inconformista – bode expiatório dos males inexplicáveis do mundo, a súcuba original. Demónio ou a insubmissa primeira mulher de Adão, Lilith personifica a mulher poderosa e rebelde, que conjuga a sua força e sexualidade com ousadia e ternura. Através da imagem da feiticeira, Nona Limmen retorna a um mundo contrário ao nosso, dominado pela racionalidade – regressa a uma certa ancestralidade ou primitivismo, regulados pelas forças da superstição e do mistério. Efetivamente, Jung já diagnosticara um dos problemas da sociedade moderna: ao afastar-se de uma vida em comunhão com a Natureza, o Homem perdeu a “identificação emocional inconsciente” com os fenómenos naturais e estes perderam as suas implicações simbólicas. Contudo, Limmen retorna a essa participação mística e simbólica com os fenómenos naturais – olhemos a fotografia Sword of Justice. A artista evoca o poder do raio e do relâmpago como fruto da ira de um deus ou da sua própria ira de feiticeira, que capta ou emana da sua espada.
Nona Limmen, Medusa.
A arte de Nona Limmen procura ir para lá do véu entre o visível e o invisível, ultrapassar o óbvio e o material e entrar no reino da névoa e das sombras. As sombras, silhuetas, vultos que mal se distinguem na distância são também um tema recorrente em diversas das suas fotografias. Por um lado, poderá refletir a sua crença de que a morte não é o fim, porque o espírito apenas se liberta do corpo, passando a vogar livre num outro espaço e tempo. Por outro lado poderá expressar como, criativamente, através da sua arte, ultrapassou o receio de criança das sombras escuras. O certo é que, para Limmen, o mundo da arte funciona como um refúgio que oferece a liberdade das limitações e inibições terrenas. Fotografias como Endless Dream, evocativa do longínquo reino das fadas, expressam bem a influência de Gustave Doré na obra de Nona Limmen – nomeadamente das ilustrações dos Contos de Charles Perrault. O que acaba por ser expetável, visto que a artista se assume como sua admiradora. Já obras de caráter mais sombrio como Methamorphosis ou Witch of the Woods evocam um mundo lovecraftiano, com a sua atmosfera de transfiguração e de terror perante o desconhecido. Se pensarmos que a fotografia consiste num meio de preservar no tempo qualquer breve momento das nossas vidas, entenderemos as obras de Nona Limmen como pequenos fragmentos de histórias por contar, dos quais só temos um vislumbre. As suas fotografias surgem como uma recriação moderna do imaginário espírita vitoriano – celebrizado pela Spirited Photography –, demonstrando a fusão e o cruzamento entre o mundo visível e o invisível, entre o conhecido e o desconhecido.
Salomé Castro
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain, 1982. Dicionário dos Símbolos. Mitos, Sonhos, Costumes, Gestos, Formas, Figuras, Cores Números, Lisboa: Editorial Teorema. JUNG, Carl G., 1964. O Homem e seus Símbolos, 6ª. Edição, Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira.
Webgrafia Age of the Succubus. A Photography Book by Nona Limmen, s/d. Consultado a: 3/11/2022. Disponível em: https://www.kickstarter.com/projects/ageofthesuccubus/age-of-the-succubus-photo-book-by-nona-limmen |