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PROPELLER, UMA HÉLICE EM MOVIMENTONATÁLIA VILARINHO2017-07-26
O que acontece quando se juntam cinco fotógrafos e professores de fotografia com vontade de criar algo completamente diferente no panorama das publicações do género em Portugal? Uma revista que é muito mais do que uma revista. O número zero da propeller foi apresentado no passado dia 22 de Junho em Lisboa e é diferente. O papel é diferente, a capa é diferente e toda a apresentação exterior joga com o interior de modo a criar uma identidade muito própria. Não se pode esperar um objecto que se folheia facilmente. Não é. A propeller chegou para agitar consciências e ideias e escolheu como primeiro tema a pornografia. A escolha não poderia passar por um caminho fácil. A propeller é um projecto da HÉLICE, escola de fotografia composta por Duarte Amaral Netto, João Paulo Serafim, Rodrigo Tavarela Peixoto e Valter Ventura. Os quatro compõem o Conselho Editoral da publicação, que foi entregue a Sofia Silva para coordenar. Mistura-se fotografia de autor com conteúdo académico, um dos objectivos da publicação. Para Sofia Silva, “o objectivo primeiro é fazer uma revista de fotografia de autor, promover trabalhos novos e arriscar, pensar temas diferentes e assumir este risco de publicar trabalho novo”. Neste número zero, os trabalhos de Sasha Kurmaz, Pedro Medeiros, Tânia Simões, Paula Rae Gibson, João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira, Bruna Prazeres, André Cepeda, Mané e António Júlio Duarte cruzam-se com os textos de Marta Sicurella, Vítor Belanciano e Manuel José Damásio. Pelo meio, uma conversa com Alfredo Jaar e uma mesa redonda sobre pornografia, estética, ética e feminismos. Que não se pense que o tema da pornografia seja tratado de forma evidente, como um assunto fechado sobre si. Os autores foram desafiados em função do seu corpo de trabalho ter algo a ver com o tema e há aqui trabalho novo e trabalho de gaveta. Assume-se um carácter experimental e um risco - “se vais buscar um trabalho já feito e arrumas as coisas todas estruturadas tende a não haver risco”, explica a coordenadora. Por opção editorial, não há sinopses dos trabalhos. No entender de Sofia Silva, vivemos um nicho onde tudo tende “a ser muito mais sobre o valor nominal da obra, de quem é, do que sobre o trabalho”. Aqui não se explicam trabalhos, deixa-se espaço para que ao pegar na propeller cada um seja invadido por aquilo que cada imagem ou texto lhe transmitir. Contra a ideia de arte como algo que serve fins determinados e pela arte como criação de uma nova linguagem e articulação do novo. Contra textos explicativos que condicionam o olhar de quem vê, pela experiência de olhar a obra como uma “mancha que provoca uma experiência estética”. Daí a opção também por um tema que não seja trabalhado de forma fechada sobre si. O objectivo é deixar que toda a forma “seja qualquer coisa que se aproxime do pornográfico”, afirma a coordenadora. O tema é tratado de forma política. A pornografia levanta inúmeras questões acerca do seu limite moral e algumas delas são tratadas na mesa redonda sobre pornografia, estética, arte e feminismos. Não é estranho que esta conversa surja logo a seguir ao trabalho de Paula Rae Gibson, a obra que na propeller mais incide sobre a sexualidade feminina. E esta parece ser uma das facetas mais demarcadas deste número zero. Entre obras como a de Sasha Kurmaz, com uma forte objectificação feminina, e a de Bruna Prazeres, com a imagem mais forte de toda a publicação - de uma vagina cosida - trata-se do tema da pornografia de uma forma heterogénea, com uma multiplicidade de visões e mensagens, mas sem nunca deixar passar em claro o problema político da forma como as mulheres são tratadas nas imagens que assumimos como pornográficas. Na conversa com Alfredo Jaar, o artista chileno define a pornografia como a exploração sexual de qualquer corpo humano com propósitos puramente comerciais. No seu entender, a imagem pornográfica provoca um dano filosófico na sociedade ao criar um modelo da forma como se devem tratar as mulheres. Mas nem só de uma visão da mulher na pornografia vive a propeller. A publicação abre com Man Ray, com uma das imagens de “As Quatro Estações”. Foi a partir de “Été”, lê-se no editorial, que se começou a desenhar este número zero. Entende-se porquê, já que nos questionamos porque é que aquela imagem não fere tantas susceptibilidades como poderá ferir uma imagem dita pornográfica. Se a imagem explícita de uma penetração está presente, porque não o choque? A propeller vai mais longe e lança a discussão para os limites da representação fotográfica: porque é que uma cena de sexo explícito tende a ficar aquém daquilo que se define como uma obra de arte? Existe algo na representação sexual que seja impossível de ser esteticizado? O trabalho do fotógrafo Pedro Medeiros, “Sex Pixel”, apresenta imagens pixelizadas de expressões de prazer, submissão e dor. Descaracteriza-se o cenário do filme pornográfico e centra-se a acção nas sensações transmitidas pelos intervenientes. Apesar do carácter directo das sensações, acaba por haver um certo distanciamento pelo destruir da realidade que está à volta, um duplo distanciamento conseguido pela pixelização das imagens. Um distanciamento do pornográfico e do real. O que fica então quando se olha a esta distância e com esta proximidade? Ao olhar as imagens de Mané, podemos dizer que a pornografia está nos olhos de quem a vê. Uma assimilação entre as árvores e os corpos humanos. Uma sexualização da natureza ou a naturalidade do sexo? Afinal o que é que nos choca? A imagem? A sugestão? Num trabalho mais estético do que pornográfico, e que o será porque nos deixa muito espaço para ir para além da obra, há imagens muito gráficas, que enquanto retratos de corpos humanos seriam pornográficas mas que sendo de árvores se tornam puramente estéticas. Podemos dizer que é a introdução do corpo humano que traz a ideia do pornográfico? E será só isso? A publicação termina com RXPorn, trabalho de António Júlio Duarte. São imagens de partes de corpos, em radiografias, todos eles com próteses. Uma relação entre o corpo humano e o mecânico que, se nos lembrarmos da utilização de próteses em alguma pornografia, levanta mais uma vez a questão do limite da imagem pornográfica. Este trabalho, juntamente com o de Mané, leva longe a questão da pornografia. A propeller oferece uma multiplicidade de abordagens, fotográficas e teóricas, num número limitado de 150 exemplares que merece ser comprado e visto. Faltarão algumas visões mais subversivas como a de Beatriz Preciado, que afirma a existência de uma tecnologia sexual que identifica os órgãos reprodutores como órgãos sexuais, em detrimento de uma sexualidade de todo o corpo. Faltará também Judith Butler, quando diz que é um falso pressuposto assumir que todo o sexo hetero é fálico e todo o sexo fálico é hetero. Mas isto não belisca em nada o carácter enriquecedor da publicação no actual panorama nacional. É um produto bom, novo, que traz o novo. Os objectivos foram cumpridos, no entender de Sofia Silva: “é uma abordagem honesta, pouco controlada, não gosto que as coisas estejam muito controladas, limadas e polidas, parece que estão muito fechadas e muito finalizadas. Há um certo desarrumo que é bom. É bom que tenha dado início a conversas e vá dar início a mais conversas”. Com periodicidade bimestral, a próxima edição será lançada a 22 de Dezembro. O tema já é conhecido: a mancha. E há um Open Call aberto a participações. Podemos esperar de novo algo totalmente diferente. A edição é feita pela Stolen Books e os formatos físicos das publicações não são para ser repetidos. Cada número assumirá o formato que o tema pedir, numa lógica mais de livro de artista do que uma revista pura e dura. De salientar o carácter manual da edição de lançamento, onde as fotografias foram impressas em jacto de tinta a laser, montadas em cartolinas e depois fotografadas. Esta mistura de trabalho manual com imagem digital é mais um carácter distinto da propeller: a tentativa de que a publicação, como objecto, ajude a tratar o tema ou esteja de acordo com o que foi a montagem. A propeller veio rasgar conceitos fechados, agitar consciências e abrir discussões. Já se disse que é um projecto diferente?
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