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CASA ORNATA - CONVERSA COM DANIEL BAUMANNMAFALDA TEIXEIRA2025-12-08
Afirmando-se como uma pintura expandida, que se desdobra continuamente, a exposição Casa Ornata da artista alemã Kerstin Brätsch (1979) em exibição na Casa São Roque – Centro de Arte (Porto), explora a relação do meio pictórico com o corpo do espectador - psíquico, físico, social e mental – permitindo-o aceder a estados hipnóticos e situação caleidoscópicas. Disruptiva e contracorrente, as composições coloridas e grandiosas de Brätsch, dominadas pela abstração, exploram a natureza da pintura na era digital, revelando-nos uma visão transformadora da artista sobre a mesma. Evocando fluxos de energia, forças cósmicas, desejos inconscientes ou estados mentais, o universo visual sensual e lúdico da artista aparenta um constante estado de transformação, que nos leva a questionar sobre o que é uma pintura e quais os seus potenciais limites. Adicionando profundidade e complexidade à sua prática artística, Casa Ornata coloca em diálogo a obra de Brätsch com a história da arte, da arquitetura e os elementos decorativos do palacete, numa lógica de interação e de integração. A propósito da exposição conversámos com o historiador de arte suíço Daniel Baumann (1967) curador da mostra e da Casa São Roque.
DB: Relativamente às exposições, surge sempre a dúvida se devemos ou não atribuir um título; às vezes, o nome do artista é suficiente. Kerstin teve a ideia para o título, creio que por diferentes razões. Primeiro, quando se está no Porto observamos as casas com azulejos e o importante papel que a ornamentação desempenha na arquitetura portuguesa. Segundo, todos querem que a pintura seja muito mais do que ornamentar uma casa. Acredito que Kerstin atribuiu o título como uma homenagem ao Porto, mas também como uma provocação à ideia de pintura enquanto pintura, sem querer ou tentar ser muito mais do que decoração ou ornamento. O título joga com esses tópicos: homenagem e reflexão da artista sobre sua própria prática e trabalho.
DB: Esse espaço de exposições [New Jerseyy gallery] era gerido por quatro pessoas, e eu era uma delas. Tratava-se de um espaço de arte independente, muito pequeno onde fazíamos doze exposições por ano, de modo muito rápido. Conhecíamos a Kerstin e a Adele, e convidámo-las para uma exposição que se tornou numa colaboração bastante divertida e aventureira. Criámos alguns bolos com formas de obras de arte; um deles era uma figura de chocolate de Giacometti que se ia derretendo. Tratava-se de uma brincadeira com a ideia de "grande arte", de a celebrar, mas também de nos rirmos com o facto da arte ser considerada sagrada ou entendida como algo excecional, quase não-humano. Ao trabalhar na CSR, percebi como organizavam e montavam as exposições no espaço da casa: de forma clássica, escolhendo as obras, pendurando-as na parede ou instalando-as no ambiente. Eu próprio fiz o mesmo, quando em abril montei a exposição com obras pertencentes à coleção do Pedro [Coleção Peter Meeker - Obras de 1988 a 2024] porque, primeiro, queria conhecer a arte portuguesa e, segundo, queria entender como o espaço funcionava. Pensei no potencial do palacete; a CSR é muito singular, não se trata um espaço de exposição convencional. Precisava de uma exposição diferente, de alguém que transformasse a casa em algo mais. E quem poderia fazer isso? Kerstin Bradshaw! Eu conhecia-a e tinha visto recentemente em Berlim, a instalação BAUBAU que concebera para crianças, no Gropius Bau. Achei que seria interessante trazer algo semelhante para a CSR, pelo aspecto psicadélico e a casa burguesa (...) bem, a CSR possui o jardim de inverno, que tem também um quê de psicadélico. Quando Kerstin visitou o palacete, ficou imediatamente entusiasmada. Decidiu, para cada compartimento que papel de parede faria sentido. Eu deixo os artistas trabalharem, é o que costumo fazer, e se entendo que posso contribuir ou colocar uma boa questão, faço-o, caso contrário, confio que os artistas desenvolvam o seu trabalho. A única coisa que disse a determinado momento foi: Kerstin, vamos deixar uma sala em branco, sem papel de parede. Vamos mostrar as pinturas e desenhos sem o papel de parede, exatamente como são. Esta é uma sala muito pequena e bonita, com boa iluminação; vamos mantê-la vazia e pendurar algumas das obras, para que as pessoas possam realmente apreciar a tua arte. Não a escondas neste ambiente visualmente impactante.
DB: Kerstin decidiu onde colocar os kites, os desenhos, os papéis de parede e as grandes obras em papel. O que considerei interessante, o que aprendi com esta exposição, é que tudo, embora não pareça, tem a ver com pintura. É uma forma diferente de pintar: primeiro pensamos que é uma instalação, um desenho, ou apenas livretos, um papel de parede, mas no final, tudo se resume à pintura e ao ato de pintar de diferentes maneiras. Às vezes com outras pessoas - colaborando com técnicos, com amigos - às vezes fazendo parte de algo, quase como uma performance. Há um aspecto comunitário. Às vezes nasce da simetria, desse teste psicológico, do teste de Rorschach. Acredito que todos estes trabalhos giram em torno da seguinte questão: como podemos pintar nos dias de hoje? Como podemos superar a antiga ideia da pintura sobre tela, a história heróica do homem que criava belas pinturas com molduras elegantes? Não temos nada disso na exposição. Não temos molduras bonitas; não temos telas bonitas. Até mesmo as molduras de acrílico fazem parte da obra, não estão apenas a emoldurar, são parte integrante do desenho, são uma obra em si. Geralmente, as pessoas pensam que a pintura é uma prática muito séria, para grandes pintores com pincéis enormes, destinada a grandes museus e colecionadores ricos. Kerstin desenvolve uma forma de pintura que é para todos: acessível, lúdica, séria e, na realidade, bastante boa. Embora acredite que esconda um pouco a qualidade da sua obra. Kerstin pinta de uma maneira que não encontro em muitos lugares. Traz a pintura às pessoas - é o que penso - e é completamente diferente. (...) Kerstin, na verdade, troça do poder o tempo todo, mas ainda assim o seu trabalho é sério. Serve as pessoas, o público, não importa de onde venham - educação, origem - podemos encontrar algo ali. As pessoas encontram todos os tipos de coisas diferentes, porque tem humor, porque é lúdico.
DB: Quando pensava na obra de Kerstin, nunca pensava em pintura propriamente dita, mas ao fazer esta exposição na Casa São Roque, percebi que tudo gira em torno da pintura. E se falamos de pintura – como disse Kerstin – temos que falar de luz. Pintura, cor, tudo tem a ver com luz; dependendo se temos a luz da tarde, a luz do dia. A Casa São Roque não é um museu, onde a luz é sempre a mesma e nunca muda. Na maioria dos museus, há uma única luz. Na Casa São Roque, há luz viva. Há todos os tipos de luzes diferentes. Kerstin brinca com essa ideia de luz, inclusive ao colocar películas coloridas nas janelas: no espaço do andar de cima, as janelas são rosa-avermelhadas. Se muda a cor, a pintura fica diferente. No andar de baixo, adicionou turquesa e na cave amarelo. Poucos pintores mudam a iluminação no espaço, porque isso basicamente faz com que troce das próprias pinturas, alterando-lhes a aparência. Se as colocar sob luz rosa, essas pinturas parecem diferentes e Kerstin não tem medo disso. E, novamente, ela não está a afirmar que a pintura é sagrada, que tem um valor, mas sim que é uma entidade viva. Penso que é por isso que a luz é tão importante, porque para a artista a luz adiciona vida à arte, à pintura. Acredito que seja por isso que o faz isso.
DB: Quando Kerstin decidiu colocar papel de parede em toda a casa, sugeri que se mantivessem um espaço vazio, como um espaço expositivo clássico, porque acredito que se aprende com os contrastes, ao compararem-se duas coisas. É possível ver a diferença que isso faz na arquitetura. Como ficaria esta casa com papel de parede e como ficaria sem o papel de parede, com a parede branca? Em segundo lugar, também sugeri colocar as pinturas sobre uma parede branca para que pudéssemos realmente apreciá-las. O contraste era importante. Não se trata de uma coisa ou outra, mas sim de ambas, de um diálogo, uma extensão.
DB: Foi, novamente, uma ideia da artista. Descendo as escadas, ao ver os painéis de madeira com a cornija, decidiu colocar ali os livretos. Começou a fazê-los [os livretes] antes de se tornar artista (...) apenas fazia desenhos num pequeno caderno, como um diário, e continua até hoje. São o mais íntimo que faz, embora sejam abstratos, não escritos. A artista trouxe-os consigo na mala, por serem tão pessoais, parte da sua identidade e expusemo-los no último piso, quase como uma retrospetiva. São 25 anos de trabalho, num espaço muito pequeno.
DB: Estou verdadeiramente a descobrir a arte portuguesa de forma bastante diferente. Quando me encontro em Lisboa ou no Porto, visito as Galerias Municipais porque ambas [Porto e Lisboa] têm programas ativos com jovens artistas portugueses. Visito galerias de arte, vou à Culturgest, tanto em Lisboa como no Porto, vou ver as exposições de Serralves. [Neste momento da entrevista, Baumann mostra-nos um livro - Arte Moderna Portuguesa no Tempo de Fernando Pessoa, 1910-1940 - e confessa: Acabei de ir a uma livraria de livros em segunda mão em Basileia e encontrei-o, para poder aprender mais sobre a vossa história. Outro livro sobre o qual o curador falou connosco foi Caldas 77 – IV Encontros Internacionais de Arte em Portugal, e de como ficou fascinado pelos Encontros Internacionais de Arte em Portugal, promovidos por Egídio Álvaro durante os anos setenta.] Aprendo sobre arte portuguesa de forma muito geral. Sou historiador de arte, visito museus, galerias, todos os lugares, ando pela cidade e observo a arquitetura. Uma descoberta recente que fiz, que não foi num museu, nem numa galeria, nem em qualquer outro tipo de instituição cultural, foram uns cartazes nas ruas do Porto. Tinham algo escrito, estavam pintados por cima e cada um era diferente do outro, cartazes individuais. Fotografei-os a todos porque gostei deles e foi assim que descobri, nas ruas do Porto, a Oficina Arara. Fui visitá-los no seu espaço, o Miguel Caldeireira explicou-me a sua história, bem como o interesse por artistas que estão fora do sistema. Esse é um antigo interesse meu, olhar muito além do convencional, da instituição, da academia e talvez do sistema artístico, porque todos os tipos de pessoas fazem arte e muitas não são conhecidas. É preciso andar pela cidade para descobri-las. Acredito que é nesse tipo de lugares que encontramos grandes artistas. Devo dizer que gostei muito de vir para o Porto, de descobrir todo este mundo- desconhecido para mim - de trazê-lo à tona e de falar sobre ele. Há tantas coisas interessante a acontecerem, mas poucos sabem disso, em Portugal, sim, mas fora de Portugal, ainda são poucos. Agora é preciso que mais pessoas venham e é isso que nós [Casa São Roque] procuramos fazer.
DB: O que observamos agora, é a vinda de artistas estrangeiros para Portugal e em breve teremos artistas de todos os lugares. Destaco Dozie Kanu (1993), um artista americano radicado em Lisboa com uma carreira internacional. Outro, de quem se fala muito e cujo trabalho conheço é Bruno Zhu (1991). É um artista português, cresceu em Portugal, mas é de família chinesa. O mundo inteiro está a mudar rapidamente. O primeiro motivo pelo qual vim para Portugal foi a descoberta da Ana Jotta (1946) e do seu trabalho, entretanto já conheci muitos outros artistas. Ainda estou no início da minha pesquisa mais ampla e investigo várias coisas. Até agora, tem sido um prazer visitar o vosso país e conversar com as pessoas. É muito vibrante, devo dizer. É um bom momento para estar aqui!
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Mafalda Teixeira Daniel Baumann |



















