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A ESCAVAÇÃO DE NARRATIVAS: THE EXILE OF OUR LONGING FOR NON-SACRIFICIAL FREEDOMSÓNIA BORGES2011-04-13The Otolith Group. Thoughtform MACBA - MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA DE BARCELONA 4 FEV-29 MAI 2011 >>>>> A escavação de narrativas: the exile of our longing for non-sacrificial freedom (1) Imunes aos filtros, estancamento e contenção formal e oficial do arquivo, à estandardização do pensamento, à matriz narrativa ocidentalcêntrica, aos confinamentos culturais e artísticos, às relações de poder desiguais e a estados de subordinação, The Otolith Group (2), colectivo londrino fundado em 2002 por Anjalika Sagar e Kodwo Eshun, procura conferir visibilidade, expor as ansiedades e as tensões geradas pela globalização e o mundo pós-colonial − A moment when the potential to decolonise one’s dreamspace may in turn cultivate the preconditions for change (3). Endereçando-se à história, na qualidade de esfera pública e de espaço de resistência, mediante uma prática artística assente na produção de conhecimento, impregnada de subjectividade, e na exploração das possibilidades dos regimes de representação na formulação de narrativas através dos time-based media, este colectivo resgata narrativas paralelas, parcelares, omissas, invertidas, equivalentes ou projectadas, visando contrapor os modelos de pensamento dominantes. Executando uma performance da arqueologia do conhecimento, conceito foucaultiano que incide sobre as condições históricas de enunciação do conhecimento e de modelos de subjectividade, e de uma arqueologia histórica que, segundo Okwui Enwezor (Documenta 11, 2002), é protagonizada pelo filme documental, The Otolith Group elabora ensaios para extrair as potencialidades do presente e do futuro e uma revisão e reactivação do passado, o que Giorgio Agamben designa como past-potential futures. The Otolith Group. Thoughtform (4) é uma exposição que se converte numa cápsula espacio-temporal, pelo extravasamento, contaminação e redimensionamento de diferentes combinações destas proposições, que, por um lado, se projecta sobre a metodologia de trabalho do colectivo (5), sobre o lastro do seu pensamento, cuja forma agrega canais singulares ou múltiplos, imagens, sons e texto (marcas de subjectividade), que se interpenetram com estórias e com auto-referenciais dos artistas, e que, por outro lado, contém as fontes, os registos e as evidências da abordagem ou incursão no arquivo, do arquivo experienciado, manipulado e ou intervencionado artisticamente, como operations of exhumation (6), porque, de acordo com Sagar, (...) you have a duty to your archive because your archive intersects with multiple political histories. That archive (…) as visual culture, it remains largely unknown (7). Fixo numa narrativa contínua, elíptica e não neutral, o espaço expositivo corresponde a uma antecâmara de despressurização da exposição, que serve de transição entre o espaço e a obra, um modo de suspensão físico que se centra no processamento do conteúdo a nível mental, pois trata-se de uma construção interna, um adentramento na forma do pensamento − (...) to engage in a particular way of thinking: to think through matter-image, matter-sound, matter-memory, matter-narration, matter-emotion; everything can have a plastic quality to which our mind can give form (8). Pretende-se estabelecer uma interconexão com todo e qualquer objecto que emane uma capacidade de auto-contenção e de inscrição de significação plural, o texto subjacente ao ser da obra, na acepção de Roland Barthes, em From Work to Text, sendo que essa interconectibilidade é negociada entre o espectador e as obras e destas entre si, mediante o desdobramento de múltiplos tempos (o tempo interno, o tempo da obra, o tempo da exposição e o tempo dos acontecimentos) e de espaços (o espaço da exposição, o espaço mental, o espaço da acção). A chave dessa interconectabilidade reside numa das primeiras obras de The Otolith Group, a instalação Otolith Timeline (2003), que delimita graficamente os limites temporais do arquivo pessoal do colectivo, faculta elementos que permitem estabelecer ligações entre a sua produção artística e os registos dispersos no espaço expositivo (como por exemplo, o filme The Visit of Tereshkova to Our City, sem autor, de 1968, a série de posters de ficção científica baseados na banda desenhada de Jack Kirby, de 1978), bem como da sua intersecção com a biografia intelectual (9) dos artistas. O nexo cronológico linear, situado entre os séculos XX e XXII, é traçado sob uma linha intergeracional, encadeada com eventos específicos, com repercussões a nível mundial, por exemplo, a história da navegação espacial russa, a guerra no Iraque ou da energia nuclear, e uma narrativa ficcionalizada do futuro, da humanidade no espaço intertisticial. A extensão da linha genealógica inicia-se com Gyan-Chand e Anuya Gyan-Chand, avós de Anjalika Sagar, e culmina com Usha Adebaran-Sagar que, no século XXII recupera as gravações do arquivo da bisavó, a artista do colectivo, replicando o mesmo acto que está na génese de grande parte da produção artística patente na exposição, incluindo de Otolith Timeline, o encontro de Anjalika Sagar com o arquivo da avó. Esta obra constitui-se duplamente como eixo, não só porque informa o tempo e a acção como também é a partir do decalque de excertos de si, de micro-acontecimentos, que outras obras surgem. Communists like us (2006), a primeira obra visível na exposição, é uma projecção estruturada em torno da intercomunicabilidade entre a frente e o verso de postais, fotografias e documentos, que resultam de uma visita da avó de Anjalika Sagar à China, e na qual se estabelece um diálogo destacado das legendas do filme La Chinoise (1967), de Jean-Luc Godard, aplicado a um cenário de alinhamento ideológico da China, Índia e União Soviética, a partir do qual se tecem considerações sobre questões transversais a todos os regimes políticos, como as noções de revolução e de emancipação, e das suas distorções − guerra, terrorismo, genocídio −, deixando em plano aberto uma reflexão sobre as possibilidades de redenção de utopias abaladas, mas não inteiramente esgotadas. O centramento de ângulo do espectador, que vigora na obra acima abordada, escapa literalmente na obra Nervus Rerum (2008), onde a sucessão de imagens canaliza o espectador pelas ruas sinuosas do campo de refugiados palestiniano de Jenin, facultando-lhe um acesso limitado, quase interdito e quase de intruso, à imagem plena. Aqui, o espaço público militarizado e a arquitectura, constituem a personagem principal, preservando as pessoas, a sua privacidade e a sua condição de “entalamento” histórico-militar, do olhar do espectador, concedendo-lhes o que T.J. Demos associa ao direito à opacidade, formulado por Édouard Glissant na obra For Opacity. A quase desumanização da imagem é preenchida com a narração em voz off, baseada em excertos dos livros Un Captif Amoureux, de Jean Genet, e do Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, e pela música de fundo. A destabilização encenada no vídeo corresponde, por um lado, a uma forma de espartilhar o poder exercido sobre a população do campo, ao negar-se a concessão de mais poder a essas imagens e, por outro lado, a uma libertação do sujeito real do vídeo, a população, ao isentá-lo da subjugação a uma dupla instrumentalização, mas também a uma libertação do próprio espectador enquanto espectador reflexivo, no sentido tecido por Claire Bishop em Antagonism and Relations Aesthetic, mediante os mecanismos de desorientação e dispersão, ampliado pela extracção da possibilidade de identificação criada pela dispersão do sujeito fílmico. Mas a relação antagónica transcende as obras, porque a abordagem documental de The Otolith Group também nela se filia, começando pela escolha do objecto e do ângulo de incisão da “interferência” artística, a aglutinação de elementos textuais, visuais, literários e sonoros, uma metodologia de conectividade, desterritorializando-os e reterritorializando-os, manuseando a sua permeabilidade, através da montagem e da justaposição e, sobretudo, pela possibilidade de abertura de inscrição de significado, exponenciando a criticalidade subjacente ao ensaio fílmico enquanto obra activa, que Sagar descreve do seguinte modo: (...) The Otolith Group is interested in the use and abuse of audiovisual archive to recover forgotten histories and create false or fictional memories. The creation of imaginative landscapes that move across fact and fiction and between poetics and politics (...) (10), sendo que Eshar sublinha que (...) the essayistic is dissatisfaction, it’s discontent with the duties of an image and the obligations of a sound (11), à imagem do legado de Dziga Vertov, Chris Marker, Black Audio Film Collective, Harun Farocki, Eyal Sivan, entre outros, que constituem alguns dos heróis do ensaio fílmico desta dupla. For us, there is no memory without image./ And no image without memory./Image is the matter of memory. /There is an excess which neither image nor memory can recover – but for which both stand in./That excess is the event./History (12), afirmação com que se entreabre a narrativa em loop da trilogia dispersa por entre as obras Otolith I (2003), Otolith II (2007) e Otolith III (2009), nas quais o território ensaístico se entranha na produção artística do colectivo, desarmando o espectador na sua decifração, mediante a reparametrização da sua relação intrínseca com o mundo e da interdependência que lhe está subjacente, por vezes atroz e desumana, por vezes redentora, reificando os excessos, as excepções ou as potencialidades raras, mas não impossíveis, de uma quimera que ora distopia as utopias, ora se entrega a elaborações utópicas puras. Os três vídeos activam o arquivo ou a sua ausência, perscrutando as lacunas e os intervalos das narrativas, interceptando uma vastidão de contextos − por exemplo, a guerra no Iraque, a Guerra Fria e o movimento dos não-alinhados −, de memórias colectivas intercaladas com memórias pessoais, íntimas e emotivas, fundindo realidade e ficção, poéticas visuais e sonoras, com o intuito de denunciar e expor, em primeiro plano, as idiossincrasias e os desequilíbrios da globalização, o mandato do capitalismo e as formas de poder latentes − Otolith I is about the technology of the master plan and Otolith II is about the technology of speculation and Otolith III is about the technology of pre-emption. And these are all different political ways of capturing futurity and making it safe for capitalism. Speculation is not necessarily visible, so a lot of what we’re interested in isn’t necessarily visible, speculation, master plans, pre-emption, there are abstract modes of power (...) (13) − e, em segundo plano, a própria história do cinema. Se, no caso de Otolith I, o vácuo imanente na micro-gravidade na qual Sagar flutua, a transporta para o passado da avó e para o encontro real desta com a astronauta russa Valentina Tereshkova − momento transversal a toda a exposição −, faculta-lhe, ao mesmo tempo, a fuga para um ponto zero, de ausência de gravidade, da história, o estado de futuro anterior demarcado por Jean Matthee. Em Otolith III, um premake de um filme indiano sobre extraterrestres e sobre a sua condição, filtra-se o presente através de co-narrativas e de um processo de investigação, que se reverte no próprio conteúdo da obra. Já Otolith II entrega-se a um pensamento enunciado previamente em Otolith I Frantz Fanon once said “Every generation must find its own destiny and fulfill it or betray it” (14). O filme mapeia a contemporaneidade indiana mediante uma revisitação do seu modernismo, encarnado na arquitectura em declínio de Chandigarh, a cidade corbusiana e a mega lixeira de Mumbai. Ambas paisagens humanizadas e disfuncionais que colapsam sob o peso da história, revelando as fissuras do sobrepovoamento do Sul, da cidade genérica, como é referido no vídeo, levantando o véu aos processos de gentrificação, à exploração do capital humano e ao entretenimento, e confrontando o espectador com a entropia social, servindo-se de afirmações como esta Sometimes it feels as if they are busy enjoying the last days of feudalism/before it all comes crashing down and their servants kill them in their beds. /In a society like this, isn’t a crime not to be criminal? (15), ou mediante a estagnação da imagem, focada num adolescente que costura uma peça de roupa. A persistência de plano concentra-se não no rapaz, mas no tempo de confecção, no tempo do processo de produção, constituindo-se como o protótipo de encenação protagonizado em Nervus Rerum − (...) Otolith II is more concerned with subtracting images that with affirming images (16), um retrocesso do acesso do espectador à imagem desvelada − The industrialisation of spectatorship relieves audiences of the labour of looking (17). Por detrás desta desordem persiste ainda assim um apelo latente de emancipação. The Secret King in the Empire of Thinking (2011), baseada no universo de Jack Kirby e na fracção de uma estória, é uma obra integralmente preenchida por som e por um mundo ficcionado, um desvio, mas também um indicador da prática expansiva dos Otolith Group e da sua capacidade de apropriação do media. É a voz que sustenta predominantemente, num relato de crónica de viagem, encetando-se uma espécie de expedição do futuro ao passado, de uma história fossilizada, ao material petrificado, assinala a voz, na qualidade de testemunha, em que a descrição pormenorizada da configuração da espacialidade, auxilia o visionamento mental do mesmo. A função do arquivo e dos registos também é alvo de reflexão nesta obra, que se distingue das restantes pela erradicação da imagem, sustentando-se a narrativa unicamente pela palavra. A crítica da escravidão e das alterações climatéricas é preconizada em Hydra Decapita, parte I (2010), que transcende narrativas estereotipadas e geografias herméticas, entregando-se a uma certa dose de fabulação. A multiplicidade de narradores vigora também aqui, correspondendo um deles a um sistema de computador com capacidades de ficcionalização. O arquivo encriptado desta obra centra-se num habitat líquido, fundado nos mitos da Atlântida, designado de Drexciya, uma homenagem ao duo de música electrónica fundado em Detroit em 1993, − Effectively what we have moved is an electronic cult into another system (18) −, e nas referências ao Massacre de Zong de 1781, retidas pictorialmente em Slaver Throwing Overboard The Dead and Dying, um quadro de Turner de 1841. São os descendentes destes escravos “desviados” que sofrem um processo de mutação, que os transforma nos seres espirituais de Drexciya. Captado ao nível da superfície em close-ups, o mar, o veículo da diáspora forçada, se parece, momentaneamente, transbordar para fora da tela, transfigura-se visualmente noutros momentos em códigos, símbolos ou dígitos, enquanto bem capitalizável, quer nos resquícios da globalização quer na actualidade − Water is one of the main points of contention between Israel and Palestine. It’s going to be, in terms of the environment, a very contentious issue for a lot of people living in the global South (19). Se a exposição se aloja na Índia, expande-se a partir deste referencial geográfico para traçar a genealogia do pensamento ou a sua antecipação em diferentes contextos, quer pela incursão e a convergência de diferentes universos geográficos, por exemplo, partindo da Grécia em Inner Time of Television (2007) − instalação criada em co-autoria com Chris Marker −, ou ainda pelos impactos e confluências artísticas assinalados na impressão em vinil intitulada One Out of Many Indophilias (2006), quer pela sinalização de estados de excepção, identificados por Giorgio Agamben, simbolicamente apreendidos, por exemplo, no campo de refugiados de Jenin, quer ainda pela pluralidade de registos e de narrativas ex-cêntricas e descentralizadas, que se autocontaminam, acentuando a assincronicidade da exposição. Neste espaço discursivo, simultaneamente privado e público, o consenso e a indexação de sistemas de pensamento são repudiados − The colonial expansion of Europe entails a homologation of historical time. The only history is the one written by the coloniser; the hegemonic powers draw the line along which the facts are told (20) e subvertidos, para dar lugar a uma reconfiguração de formas de pensamento, mas sem as vincular a uma validação, uma vez que no contexto amplo das imagens, o ciclo que cada imagem contém, a sua intensidade de tráfico, emana a sua própria história, aquém da história em que se insere, ainda que possam ser tangenciais − podendo o mesmo ser extrapolado para a dialéctica das narrativas que lhes está subjacente −, num conteúdo nunca completamente assimilado e transponível, apenas subtraído da sua ambiguidade e da capacidade e persistência de travessia, termo de autoria de Barthes no documento acima referido, por parte do espectador. Sónia Borges NOTAS (1) Herbert Marcuse citado por Kodwo Eshun in The Exile of Our Longing. Notes Toward a Position, URL: www.vertigomagazine.co.uk/showarticle.php?sel=bac&siz=0&id=333, consultado a 10.03.2011. (2) O otólito corresponde a uma estrutura anatómica composta por cristais, alojada no ouvido interior, que estabelece o equilíbrio do corpo, em termos de gravidade e de orientação. (3) ESHUN, Kodwo, The Exile of Our Longing, Notes Toward a Position. (4) Título extraído do livro Thought Forms, publicado em 1901 por Annie Wood Besant e Charles Leadbeater, que consiste numa reflexão sobre o pensamento. (5) Sem esgotar inteiramente a sua prática artística que se reparte entre a produção artística, a curadoria, a instituição de plataformas discursivas sobre a arte contemporânea, produção teórica, realização de workshops, etc. (6) In COLIN, Anna, PETHICK, Emily, The Otolith Group - A Long Time Between Suns, Sternberg Press, 2009, p. 80. (7) Ibidem, p. 80. (8) The Otolith Group. Thoughtform, folha de sala do Museu de Arte Contemporânea de Barcelona, p. 2. (9) Conceito de autoria de Okwui Enwezor (Documenta 11, 2002). (10) In Description de projet/project description + anjali sagar /otolith group, URL: www.htmlles.net/07/soumissions07/artistes/sagar.html, consultado a 14.03.3011. (11) In The Otolith Group Talks to George Clark, URL: www.apengine.org/2010/02/the-otolith-group-talks-to-george-clark/, consultado a 14.03.2011. (12) Otolith I (2003). (13) Kodwo Eshun in The Otolith Talks to George Clark. (14) Otolith I (2003). (15) Otolith II (2007). (16) Kodwo Eshun in The Otolith Group - A Long Time Between Suns p. 96. (17) Ibidem, p. 96-97. (18) Anjalika Sagar em entrevista de Derek Walmsley ao The Otolith Group sobre Hydra Decapita, in The Wire, 321, Novembro 2010, pp. 28-31, p. 31. (19) Anjalika Sagar in ibidem, pp. 31. (20) The Otolith Group. Thoughtform, p. 2. |