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“Primeiro estranha-se, depois entranha-se” – foi assim que, em 1928, Fernando Pessoa descreveu a Coca-Cola, durante a sua passagem pela vida de publicitário. A mesma frase poderia ser usada para descrever a cidade de Nova Iorque – coincidência ou não, ambas americanas. Primeiro “estranha-se”... talvez a escala, as migrações diárias, os cheiros, o ruído – o ritmo; mas ao encontrarmos-nos nesta cidade, ela realmente entranha-se fazendo parte de nós e destruindo, ou pondo em causa o Mundo que pensamos conhecer. Ainda que esteja presente em inúmeras referências literárias ou cinematográficas, o facto é que é preciso mesmo vivê-la, para se perceber como a comunicação social pode ser um grande filtro à nossa percepção.

Em termos artísticos, a cidade de Nova Iorque representa também a quebra com o passado e com a tradição, anteriormente sedeada em Paris. Sensivelmente, anos antes de Fernando Pessoa ter escrito a frase anterior, vários foram os artistas do “Velho Mundo”, notavelmente do “centro”, Paris, que se deslocaram para a periferia, Nova Iorque, para se refugiarem do serviço militar (que significava participar na Guerra – a Primeira Mundial). Marcel Duchamp foi um desses artistas. O seu trabalho, bem como de outros artistas seus contemporâneos, em ruptura com a arte aceite na sua altura influenciou artistas e até mesmo coleccionadores –com a criação da Société Anonyme (dedicada essencialmente à comercialização de arte moderna e que também estava envolvida em criar a sua propria colecção. Esta outra faceta deste artista contribuiu para a sedimentação da arte moderna na vida cultural da cidade tendo sido solicitado como consultor de instituições, como o MoMA ou de coleccionadores, como Peggy Guggenheim (que viria a criar numa das maiores colecções de arte moderna do século XX, nomeadamente com obras dos movimentos Cubista, Surrealismo, Futurismo e Expressionismo Abstracto). Duchamp foi tambem consultor de algumas edições do Armory Show – onde expôs o famoso “urinol”.

Por outro lado, a instabilidade europeia, com as suas guerras e governos frágeis, ou de orientação nacionalista, acabou por tornar Nova Iorque um destino carregado de esperanças de uma nova vida, para outros “refugiados”. Durante este periodo, seria normal que houvesse maior agitação artística e boémia nos locais onde Duchamp e outros seus contemporâneos, recém-chegados da Europa ou cidadãos locais, desenvolviam a sua actividade – neste caso na Greenwich Village. Também nesta altura há uma forte associação ao Jazz (ainda existem muitos clubes de Jazz nesta zona, como o Blue Note, por exemplo). Por outro lado, o movimento beatnik, com os seus poetas e escritores (como Allan Ginsberg e Jack Kerouac) despontava no Upper West Side, centrado na Universidade de Columbia. Após a Segunda Grande Guerra, num clima de prosperidade económica e cultural, as novas ideias trazidas anos antes por Duchamp seriam “apropriadas” por uma nova geração de artistas que procurava também fugir à arte instituída no seu tempo, como por exemplo Robert Rauschenberg. Nova Iorque, era já uma realidade como “centro” e tinha uma dinâmica própria, onde as várias artes se encontravam e contaminavam mutuamente. Um bom exemplo disto foi a associação entre Rauschenberg, Jasper Jones e Merce Cunningham. A nova arte captou a atenção de museus, como o MoMA, para artistas que estavam a trabalhar na cidade, nomeadamente no SoHo, de onde muitas indústrias estavam a sair em busca de mais espaço (gentrificação de origem industrial) ou por abandono da actividade, devido a uma crise que se fez sentir nessa época.

O SoHo tornou-se então um centro dentro do cidade atraindo tanto artistas, como galerias que viram na concentração e visibilidade desses artistas, uma oportunidade de negócio. De facto, não eram muitos os espaços na cidade que fossem tão amplos (lofts) e com preços aceitáveis, como nesta área. Ainda assim, a Greenwich Village mantinham-se como outro centro artístico (retratado, por exemplo, num filme de 1960, cinema verité, chamado “The anatomy of Cindy Fink”), mas em declínio devido aos custos imobiliários sobrevalorizados. É interessante a forma como o custo imobiliário influenciou a criação de zonas de contacto privilegiadas para o desenvolvimento de práticas artísticas celebradas em Happenings ou na origem de movimentos artísticos do pós-guerra (como por exemplo, o movimento Fluxus, que se desenvolveu também, na sua generalidade, na zona do SoHo).

Embora se descreva, na maioria das vezes a vida artística na cidade de Nova Iorque como um todo, os factos históricos – como os descritos anteriormente, ou outros da história mais recente, demonstram que a cidade não é assim tão homogénea – para mais a cidade ampliou-se (ou absorveu) para lá dos limites de Manhattan, ocupando as margens entre o Norte e o Este, respectivamente Bronx, Queens e Brooklyn, sendo actualmente constituída por 5 boroughs (incluindo ainda a remota Staten Island).

Cada um destes locais tem uma dinâmica própria, que resulta na maioria das vezes, da vontade dos indivíduos que os habitam e que sugere um estilo de vida urbano; em se apropriarem deles conferindo-lhes uma nova identidade em contraste com o “formalismo” urbano existente. Reflectindo um pouco a história artística de Nova Iorque, a dinâmica urbana aparece assim de mãos dadas com o desenvolvimento de “movimentos” artísticos mais ou menos localizados, que culminam na criação de espaços “alternativos” - sejam associações de artistas ou mesmo pequenas galerias; não sendo de estranhar o reconhecimento e “apoio” de agentes com interesses imobiliários nessas zonas, a alguns desses espaços – muito em parte, ajudado pela experiência histórica da arte e dos artistas como agentes da gentrificação. O SoHo, por exemplo, é hoje em dia uma das zonas urbanas e comerciais mais caras da cidade, onde existem muitas flagship stores de marcas conceituadas (onde talvez a mais famosa seja a da Prada, desenhada por Rem Koolhaas).

Os textos que se seguirão a este procurarão descrever cada um desses locais ou zonas marcando uma certa temporalidade e associação a estes movimentos de gentrificação originados pelas migrações de artistas oferecendo mais pormenor e ajudando a “cartografar” a cidade, quebrando a ideia de uma Nova Iorque uniforme e imponente, com o seu famoso skyline de arranha-céus famosos, onde “habitam” alguns dos artistas e galerias mais famosos mundialmente.


Pedro dos Reis