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ESTAMOS AQUI PORQUE VOÁMOS - OU O GESTO CONTÍNUO DE MARIA JOSÉ OLIVEIRARITA ANUAR2021-08-11
Ainda não sabemos, mas esperamos. Olhamos e medimos, com a intuição, a distância que nos separa dos corpos silenciosos que lentamente vão sendo acordados pelos ecos (das vozes, dos pássaros e dos sinos), que ressoam numa antiga capela preservada no actual Museu Municipal de Faro. Sentimos, ao estar na presença das obras de Maria José Oliveira, um aproximar que simultaneamente se evade, escapando-nos, como uma «corrente de ar» que vai, mas que regressa. Ou um pássaro que nos oferece um voo rápido e furtivo. Poderíamos falar de pressentimento, o que sentimos sem Saber. Um «porvir» com raízes num lugar que habitamos, mas que também nos habita. Em Estamos aqui porque voámos somos conduzidos por Maria José Oliveira aos lugares de sangue, aquele que nos nasce em toda a parte. Nas profundezas da terra, a água também é plasma, o plasma que nutre as raízes imemoriais com as quais convivemos desde o início dos tempos. Estamos vivos.
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Ao ritmo da vida, na escuta da terra e perante a sua mutabilidade praticamente invisível mas perscrutada pelo tempo, e pelo corpo, Estamos aqui porque voámos diz-nos sobre isto de se estar vivo, de se ser vivo. À entrada da capela, Coluna Vertebral ou o princípio do mundo (2019), apresenta uma «coluna» composta por elementos de natureza heterogénea. A coluna de Maria José Oliveira possui no topo um ovo e uma lâmpada, algo que também encontramos na obra Universo e luz (2017). O ovo é uma questão actual. Um princípio. Parece que este problema, do ovo e da galinha, permanecerá connosco até ao fim. Lembrando o conto de Clarice Lispector, “Quando morri; tiraram de mim o ovo com cuidado. Ainda estava vivo. — Só quem visse o mundo veria o ovo. Como o mundo, o ovo é óbvio.” [1]. O princípio do mundo é também o que lhe dá a morte, mas a morte pode ser entendida como um princípio vital. A morte como matéria viva, é o fundamento dos que fazem dos restos, dos ossos, diamantes. Tesouros. No fim da vida, o corpo liberta gases, e se a luz é a potência que inflama o princípio desta coluna vertebral, ela lateja também no fim. Com o Ar. Tudo isto parece desenhar uma elipse achatada, e a luz e o ovo podem afinal partilhar alguma afinidade. Ao percorrer com os olhos a coluna, encontramos objectos de uso quotidiano (facas, uma chávena, molas, pedaços de madeira, fios, letras inscritas em pedaços de madeira, pincéis). Todos os objectos estão atados com corda, cravados uns nos outros, formando uma linha vertical, da qual, na extremidade inferior, surge a espinha de um peixe, sucedida por uma pequena cauda. Ao partir da coluna para pensar a génese do mundo, Maria José Oliveira coloca na fisionomia das espécies e no mundo natural, o eixo sob o qual assenta a origem do mundo. Esta ideia ecoa as teses de Charles Darwin. Com o seu trabalho, Darwin destruiu a crença em torno da origem divina, e no lugar desta, colocou o processo natural de selecção e transformação das espécies do qual deriva a sua vida, mutabilidade e sobrevivência no tempo. A coluna vertebral de Maria José Oliveira reverbera igualmente o contributo de Donna Haraway. A autora interdisciplinar, também bióloga, em Staying with the Trouble, Making Kin In The Chthulucene (2016), trata a hipótese do cruzamento das narrativas entre espécies naquilo que designa por «narrativa multiespécie». Trata-se para Haraway de cruzar humano e não humano, uma perspectiva que visa subverter a narrativa do humano como espécie soberana, dona da história e do mundo. Curiosamente, a capa do livro de Haraway, é um esqueleto heterogéneo, composto por partes da ossatura humana, articulada com seres vivos de outras espécies. Os objectos que compõem a coluna vertebral de Maria José Oliveira confluem várias narrativas, aquelas inscritas no uso e na vida dos objectos, também partes da vida da artista. Há por isso uma multiplicidade de media, mas também de tempos. Os tempos que atravessam as histórias que levamos na coluna e nos ossos. Quantas serão as narrativas que carregamos?
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O canto dos pássaros flutua no ar, e no exterior da capela, um ninho de aves permanece no topo de uma das torres do museu. A água e o sangue não vivem sem o ar. Mas houve quem quisesse ir mais longe, mais alto. Ícaro desejou qualquer coisa que não é sua, por natureza. O Erro de Ícaro (2021) apresenta uma diversidade de objectos depositados sobre um banco (moldes de sapatos, espalhadores de calor, o desenho de um pé, restos de cera, penas). Em conjunto, estes objectos levam-nos a especular sobre o erro de Ícaro. “Não ter medo”. De acordo com Maria José Oliveira, o «erro», ao partir da experiência, é uma afirmação. É possuir a certeza do que se é, criando e arriscando no contacto com o mundo, com a matéria que ele nos fornece. Se Ícaro cometeu um erro, certamente não foi ter desejado voar. A intersecção entre orgânico e inorgânico, ou o que vem da terra, e o que vem das mãos - como as asas de Ícaro moldadas por seu pai -, apresenta-se em obras como Flutuar para voar (2021), e Território (1995/2021). O gesto da mão, e o seu ofício fazedor, intersectam- se com elementos com origem no mundo natural - concha de choco, espinha de peixe -, que nos convidam a penetrar no avesso das coisas vivas, no seu interior. A memória é preciosa e as mãos guardam-na, tocando aquilo que nela não é conciliável com as formas do corpo. Com ele, preserva-se o vestígio de algo que agora é eterno, e por isso, vivo, como Cíclade, osso adivinhatório (2020/2021).
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O que é isso de ser vivo? Como uma corrente de ar amiga e familiar, António Ramos Rosa, natural de Faro, escreveu, em Gravitações: «Habitar a terra é ser o olhar e a luz» [2] É preciso Saber para olhar?
Saber ler, 2021
Saber ler (2021) parece convidar-nos a ler com o corpo. O automatismo da leitura é desafiado pelo exercício oposto - ler ao contrário exige esforço. Talvez porque também sabemos o mundo com o corpo, e que essa sabedoria é um saber outro, um saber orientado pela «razão corporal», como diria Merleau-Ponty, a artista coloca uma colher debaixo dessa inscrição. A colher na boca é também ela uma memória, outra vida - aprendemos a comer com as mãos, e depois com a colher -, colhendo, mais tarde, o fruto desse alimento. Hoje sabemos ler, mas diz-nos Maria José Oliveira, que é preciso respirar. Com os olhos.
Desenho do neto Francisco para o desenho da avó Zé, 1974/ 2019.
A luz «irriga as coisas em vez de as iluminar» [3], diz ainda Ramos Rosa. A luz que actua nas coisas dá-lhes vida. Brilha-lhes no sangue, oferecendo-lhes mutabilidade. Desenho do neto Francisco para o desenho da avó Zé (1974-2019), é um gesto de afecto. A transmigração, do coração e do sangue, pousados na folha, traçam um «micro cosmos» irrigado pela força da mão que desenha a dois ritmos, a duas vidas. A noção de «transformação» presente no trabalho de Maria José Oliveira, sublinha a ideia, como diz a própria artista, de que “todos os materiais são bons para trabalhar”. É a movimentação da matéria que funda a actividade da artista e que qualifica a sua abertura ao mundo em permanente devir. Trata-se de liberdade, de experimentação, de fazer, mas também de contemplar o mundo a coser-se ou a desenhar-se a si mesmo.
Sal sobre o efeito do tempo, 2021.
Em Sal Sobre o efeito do tempo (2021), a artista apresenta um montículo de sal sobre tela crua. O tempo torna-se matéria criadora, aquilo que José Gil refere como o «trabalho artesanal do tempo», manuseado por Maria José Oliveira. A tela crua, cortada na forma de um círculo, foi parte de uma intervenção de land art executada pela artista. A tela crua exposta aos elementos naturais num período extenso, inscreveu nela as manchas do mundo (provocadas pela acção das folhas, da madeira dos troncos, dos ramos, da terra, da chuva, do vento). Sal sobre o efeito de tempo é um trabalho que reenvia a essa mutabilidade que o mundo natural produz, e que nesta obra é aliado a uma matéria com uma carga ancestral. Também o sal atravessou tempos. Tendo tido diversos usos, o sal foi moeda de troca, conservante, curativo, alimento. O sal atravessa inclusive, a nossa própria pele, o nosso tecido, e assim parece que o eco destes objectos, a sua ressonância, está também dentro de nós.
Rita Anuar
Notas [1] Clarice Lispector, «O Ovo e a Galinha», em Todos os Contos, Rio de Janeiro: Rocco, 2016, p. 303
Estamos aqui porque voámos
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