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O DESIGNER COMO PRODUTORJOSÉ MANUEL BÁRTOLO2009-04-13O título deste artigo remete-nos, no contexto da reflexão sobre o design, para dois outros ensaios que o precedem, The designer as producer de Ellen Lupton (1) (1998) e The designer as producer de Victor Margolin (2) (2001) e, na perspectiva mais abrangente da teoria crítica, para o emblemático ensaio de Walter Benjamin O autor como produtor (3). Interessa-nos, em particular, perceber como as transformações do contexto social da prática do design dão lugar a novas formas de os designers se assumirem como produtores sociais. A análise não é orientada para a questão, do domínio da história do design, de saber se a atenção prestada pelos criadores culturais ao retorno complexo que resulta do seu envolvimento social poderá transformar as categorias formais do design (um pouco à semelhança da análise feita por Andrew Blauvelt num artigo recente (4)); interessam-nos mais as formas como os designers participam na mediação de novos significados sociais, ou seja, interessa-nos actualizar o papel político do designer, indissociando-o do que podemos designar por acção no interior do actual “campo expandido” do design (5). Na sequência da queda do Muro de Berlim e da derrocada do Império Soviético muitos viram irromper o fim da política. Acreditou-se que teríamos entrado numa época para além do socialismo e do capitalismo, da ideologia e da utopia, numa condição pós-ideológica. Assistimos hoje a um, aparente, regresso à política ou, no mínimo, as leituras sociais já não apontam para o fim da política mas sim para a exclusão da política do quadro categorial do estado nacional e para a transformação do anterior esquema diferenciador do que se entende por “acção política” e “não-política”. Estaremos a entrar num período onde à Realpolitik sucede agora, o que Bruno Latour, designa por Dingpolitik (6), num contexto onde a “política directa” tende assumir um crescente protagonismo. No quadro da actual acção “sub-política” (7) qual o papel do designer? Qual o seu “estatuto produtivo”? Em O Autor Como Produtor, Benjamin recorre a Brecht para defender a ideia de que a produção cultural deve gerar trabalhos que “não devem ser tanto vivências pessoais (ter carácter de obra) mas antes ser orientados para a utilização (transformação) de certas instâncias e instituições” (8) sublinhando a diferença entre “o simples fornecer de um aparelho de produção e a sua transformação”. O objectivo é tornar “os leitores ou espectadores em colaboradores” desse processo de transformação social. O que se identifica, em projectos tão diversos como os “shared spaces” de Ben Hamilton-Baillie ou no movimento Bubble Project (9), é que os métodos utilizados para renovar a participação activa do design na política são consistentes com as convenções da vanguarda modernista: confronto com as estruturas sociais vigentes e transformação das contradições do quotidiano na matéria-prima de criação projectual. Contudo, nestes projectos contemporâneos assistimos à definição de novas estratégias, visando tornar os projectos mais colaborativos, estratégias que indiciam uma intenção, politicamente pragmática, de converter, cooptar e criticar as instituições a partir de dentro, e já não de uma forma distanciada. Ao modelo institucional vigente, a acção de vanguarda não opõe agora uma utopia alternativa, de transformação global da sociedade, mas antes uma acção distópica que procura produzir, localmente, transformações efectivas na organização social. A passagem do designer da posição de autor para a posição de colaborador na construção do conhecimento social implica, porém, diversas modificações do próprio modo de se entender a prática do design: Em primeiro lugar, actualizando-se a prática do design numa sociedade plural e multicultural, o design não pode ser conduzido por uma teoria comum (uma certa definição de good design) mas exige antes uma “prática de tradução” que torne as diferentes acções mutuamente inteligíveis e permita aos “actores sociais” dialogarem sobre as opressões a que resistem e as aspirações que os animam. É por via da tradução e do que, segundo a expressão de Boaventura Sousa Santos, podemos designar de “hermenêutica diatópica” (10) que uma necessidade, uma aspiração, uma prática numa dada cultura pode ser tornada compreensível e inteligível para outra cultura; Em segundo lugar exige uma transformação do quadro epistemológico do design, a passagem de um modelo de peritagem para um modelo de conhecimento edificante, passagem através da qual o designer deixa de ser reconhecido como “perito” ou “especialista” a quem compete dar resposta à necessidade de um cliente ou consumidor (esquema produtor/consumidor) para passar a ser reconhecido como um “agente social crítico” que colabora activamente, e no exercício das suas competências, com os seus parceiros não-designers na procura de uma transformação efectiva de determinados aspectos da realidade. Designer e não-designer funcionam, dentro deste modelo, como “parceiros epistémicos” na construção política e social, devendo o designer assumir uma “objectividade forte” (11), para usar a expressão de Sandra Harding, que não convida à neutralidade, objectividade que permite dar conta eficazmente das diferentes e porventura contraditórias perspectivas, posições, motivações, que se confrontam numa dada situação social, que permite, numa palavra, ao designer o exercício da mediação. Em terceiro lugar exige uma alteração da própria estratégia de acção, o que pode ser formulado falando de uma passagem da acção conformista para a acção emancipatória. A ideia, contemporânea, de “design relacional” – num sentido próximo do sentido da “estética relacional” de Bourriad – recupera a ideia e a prática da transformação social emancipatória. O já referido Bubble Project é disso um exemplo; perante o carácter ditatorial dos mass media contemporâneos, o nosso protagonismo como emissores é marcadamente limitado. Mas se não temos controlo sobre a construção da mensagem podemos assumir um maior controlo sobre a sua recepção, podemo-nos tornar receptores críticos e activos e, dessa forma, localmente subverter as mensagens globais. Os designers do The Bubble Project não são “produtores de conteúdos” são “instauradores de discursividade”, para usar a expressão de Foucault, catalisadores. Num artigo recente (12), Rick Poynor explora a noção de “design relacional” para sugerir a forma como os parâmetros do design se estendem, actualmente, para lá do objecto estético ou funcional passando a incluir uma modalidade mais vasta de envolvimento na vida pública. A característica principal deste “design relacional” não é exclusivamente visível na presença material do design, não se circunscrevendo apenas a uma tipologia de produção, sendo antes o processo de construção do diálogo entre as percepções, as reacções e as intervenções dos diferentes actores de uma mesma prática social. No interior destas práticas o designer é menos um produtor de conteúdos e mais um modificador de contextos. De acordo com Max Bruinsma, “este entendimento tem profundas consequências para o design. Altera a noção de design como organizador de factos para a de design como gerador de ocorrências. Por outras palavras, o design já não pode ser visto como algo de “objectivo” ou “neutro”, deve ser entendido como “o sedimento das acumulações”. Utilizo aqui o termo “sedimento” para evocar o olhar que o geólogo lança a uma formação rochosa antiga. Para nós, é um velho penhasco, mas o geólogo vê nele o resultado de milhares e milhares de anos de processos físicos, de uma dinâmica específica da natureza” (13). No interior das prática sociais, o designer deve ser capaz de operar com esses “ciclos de acumulação”, funcionando, na expressão de Willem van Weelden como um “editor” capaz de se posicionar com a sua “objectividade forte” perante os processos sociais. Weelden considera que “a prática do político de hoje assemelha-se à do designer de informação, pelo menos num ponto: a rotina diária de criar um compromisso viável. A principal preocupação de um designer de informação é a tarefa de interpretar e comunicar complexidades, abstraindo informações de um imenso reservatório de dados em bruto e representando-as visualmente (...) este “tour de force” não é possível sem alguma espécie de compromisso, simplificação e escolha, nem sem deixar uma assinatura editorial no design” (14), no entanto esta assinatura não resultará tanto de uma construção autoral mas de uma acção participativa, dinâmica e democrática de construção do processo comunicacional, na qual o designer se envolveu como mediador ou catalisador da própria acção. Na sua análise da produção, Walter Benjamin considerava que “é decisivo que a produção tenha um carácter de modelo, capaz de, em primeiro lugar, levar outros produtores à produção e, em segundo lugar, pôr à sua disposição um aparelho melhorado” (15). No design contemporâneo, em projectos como Criar Raízes desenvolvido em São Pedro do Sul ou no Design em Comunidade desenvolvido no Piódão, a acção tem um carácter de modelo, agora desligado de ambiciosas aspirações socais susceptíveis de serem aplicadas globalmente, mas mais próximo do que, Charles Esche designa por “modest proposals” (16), que visam naquele lugar e naquele tempo ser capazes de gerar alguma inovação social. Nesta perspectiva da “condição política” do designer, veja-se um caso particular de produção, se se quiser uma versão específica do designer como produtor, que podíamos designar de designer como programador cultural. No contexto português, em que o design gráfico verdadeiramente interessante está ligado a motivações culturais e, na sua maioria, a trabalho para “clientes culturais” é interessante analisar como o design não funciona apenas como um elemento de promoção de conteúdos definidos pelo “gestor cultural” mas, antes, é activo na definição desses mesmos conteúdos, dando-lhes identidade, “espessura” e, frequentemente, “localizando-os” no interior de uma cultura heterogénea e marcada pelos seus nichos de mercado. O “posicionamento” e, de uma forma mais ampla, a construção da identidade cultural das instituições e dos produtos culturais é hoje, em grande medida, construída pelos designers que, quase sempre em bases sólidas, trabalham com essas instituições. Os exemplos do trabalho de João Faria para o Teatro Nacional de São João no Porto, de Martino&Jaña para o Centro Cultural Vila Flor em Guimarães, de Jorge Cerqueira para o Balletteatro no Porto, de Barbara says... para o Oporto ou, mesmo em moldes diferentes, dos R2 para a Fundação Calouste Gulbenkian, são claros em relação à capacidade do designer mediar a política cultural, numa compreensão da comunicação actual que, como defende Willem van Weelden, “tem menos a ver com o cravar de mensagens definitivas e mais com a oferta de uma escolha de percepções, ou seja, com as interpretações” (17). O design, produzido no quadro de práticas colaborativas de participação social, torna-se um intermediário na produção de significado em curso. O designer de comunicação, não se limita a transmitir uma mensagem, própria ou alheia, mas a criar um terreno para a transmissão e troca de mensagens, ao passo que o “receptor” se tende agora a reverter em “emissor” e, apropriando-se delas, a tornar-se “co-autor” das mensagens que circulam no nosso espaço político. A relação decisiva entre a experiência participada da produção do design e a participação política reside no accionar desta capacidade de apreender, reconhecer, partilhar e propor ligações. José Manuel Bártolo Professor e Investigador em Design e Cultura Visual NOTAS (1) Ellen Lupton, “The designer as producer”, in Steven Heller (Ed.), The Education of a Graphic Designer, Nova Iorque, Allworth Press, 1998, pp. 159-162. (2) Victor Margolin, “The Designer as Producer”, ICSID News, February, 2002 (3)Trata-se do título da conferência proferida por Walter Benjamin no Instituto para o Estudo do Facismo, em Paris, em Abril de 1934; utilizamos aqui a tradução portuguesa de João Barrento, Walter Benjamin, A Modernidade, Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, pp. 271-293. (4) Andrew Blauvelt, “Towards Relational Design”, Design Observer, 11.12.2008, www.designobserver.com/archives/entry.html?id=38845 (5) Rosalind Krauss, “Sculpture in the Expanded Field”, October, Vol.8, 1979, pp.30-44. (6) Bruno Latour, Politics of Nature: How to Bring the Sciences Into Democracy, Cambridge, MA, Harvard University Press, 2004. Latour recorre ao conceito de “coisa” (Ding) de Heidegger para empregar o neologismo Dingpolitik. “Ding” assume, para Latour, um sentido híbrido entre o que é humano e não-humano, natural e artificial, ideológico e tecnológico, colectivo e individual. (7) A ideia de “acção sub-política” é trabalhada por Ulrich Beck. Veja-se Ulrich Beck, The Reinvention of Politics, Cambridge, Polity, 1997. (8) Walter Benjamin, Op. Cit., p. 282. (9) www.thebubbleproject.com (10) Boaventura de Sousa Santos,A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência, Porto, Afrontamento, 2000. (11) Sandra Harding, Whose Sciense? Whose Knowledge?, Cornell University Press, 1991. (12) Rick Poynor, “Strained Relations”, Print Magazine, Fevereiro, 2009, www.tinyurl.com/cpcc9k (13) Max Bruinsma, “A rebelião das mobs: A cultura do envolvimento”, in Catalysts! , N. 1, Setembro 2005, p. 42. (14) Willem van Weelden, “Ser Redactor: A cultura da informação”, in Catalysts! , n. 1, Setembro 2005, p. 26. (15) Walter Benjamin, Op. Cit., p. 288. (16) Charles Esche, Modest Proposals, Istambul, Baglam Press, 2005. (17) Willem van Weelden, Op. Cit., p. 28. |