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PORQUÊ ESCREVER SOBRE HISTÓRIA DA ARTE FEMINISTA, NESTA ÉPOCA EM QUE AS MULHERES ARTISTAS ESTÃO JÁ PRESENTES NUMA GRANDE PARTE DAS INSTITUIÇÕES ARTÍSTICAS DO MUNDO? - PARTE IIMANUELA HARGREAVES2020-05-21
As imagens produzidas por modernistas como os Delaunay, a vanguarda russa e a Bauhaus, que se tornaram a base de uma ideologia moderna, na qual a mensagem veiculada da mulher é equivalente a um papel mais alargado de consumidora, é apenas válido para algumas mulheres, ricas e privilegiadas. Apesar de um imaginário visual que celebra a mulher trabalhadora sexualmente livre, não existem mudanças estruturais no estatuto das mulheres na Alemanha de Weimar, e em Paris, apesar de uma aparente libertação, as mulheres apenas têm direito de voto em 1946. Em Portugal só após a Revolução de Abril de 74 adquirem plenos direitos de cidadania, uma vez que o quadro jurídico então adaptado garante o respeito pela igualdade de tratamento de homens e mulheres. E o Modernismo enquanto prática artística de inovações formais e estilísticas é em grande parte desenvolvido por meio de um pressuposto erótico que toma o corpo da mulher como objeto de experimentação. É tomado por Picasso nas prostitutas nas “Demoiselles de Avignon”, em Matisse nas Odaliscas, em Modigliani nas “Madjas”, em Gauguin nas suas primitivas, e nos Surrealistas como forma de explorar as fronteiras sexuais do inconsciente. Creio que em Manet, a representação da sexualidade feminina, tal como Chadwick sublinha, tema de dependência absoluta na arte Ocidental, não é disfarçada ou idealizada pela mitologia ou temas biblícos, torna-se evidente numa prostituta, e essa evidência é libertadora. Em “Olympia” e no “Dejeuner sur l’herbe”, as prostitutas são mulheres emancipadas, que nos olham sem nenhum constrangimento sexual, assumindo um estatuto na sociedade, meretrizes de uma burguesia endinheirada. Numa perspetiva moderna, Manet solta amarras que existiam há muitos séculos, e por outro, não utiliza a objetificação repetida do corpo sexualizado como meio de experimentação. Há por vezes dificuldade em distinguir as formas de olhar, observar o tema da subjetividade feminina, e a identificação do corpo da mulher com as várias simbologias a que está ligado. Existe conquanto uma atitude dos artistas modernos em fundir o sexual ao artístico, sendo a figura feminina apresentada como um objeto sexualmente subjugado à criação do homem, Como já referido, essa realidade vai sofrendo alterações ao longo do século XX, à medida que as mulheres vão ganhando autonomia financeira, social e política, sendo progressivamente parte integrante da sociedade de consumo. No princípio do século XX, Suzanne Valadon e Paula Modersohn-Becker foram as primeiras artistas a trabalharem consistentemente com a forma do nu feminino. Valadon, também modelo, beneficiou desse conhecimento para a experimentação dos seus nus, rejeitando a apresentação estática e atemporal que dominou a arte ocidental, dando ênfase ao contexto, momento específico, e ação física. Os seus nus, especificamente ligados ao ato do banho, embora sensuais contrapõem-se ao arquétipo da figura da fertilidade feminina, dominante em alguns círculos da “avant garde”. Em “The Blue Room” (1923), a mulher retratada lembra no contexto de um quarto densamente decorado, uma Odalisca, esvaziada do sentido voyeurista sexual para conforto do macho viril, tal como era representada por Matisse. Em Paula Moderhson-Becker os seus auto retratos nus, refletem uma tentativa de inserir as convenções artísticas existentes e a sua forma de encarar a imagem da mulher. A simplificação da forma mitiga a sensualidade normalmente associada à representação do corpo da mulher na história da arte Ocidental, a imobilidade, a monumentalidade e as grandes superfícies, tendem a criar uma imagem universal do nu feminino transcendente ligada à feminilidade, à fecundidade e à criatividade da artista. Emília dos Santos Braga (1867-1949), discípula de Malhoa, foi a única mulher que neste início do século passado em Portugal, se dedicou a par do retrato, da pintura de género, e da pintura histórica e religiosa, à representação do Nu feminino. A pintura “Fumadora de ópio” de 1912, apresentada na Secção Portuguesa da Exposição Nacional de Belas Artes de Madrid, premiada com a Comenda de Afonso XII de Espanha, nu lânguido e sensual, representa um ideal de beleza de uma época já em extinção. A evocação de Rubens, pintor que admirava a par de Murillo e Velasquez, manifesta-se na carnação de uma mulher abandonada à morbidez do opiáceo. Pintora profissional, com atelier próprio no qual também ensinava, professora de Maria Eduarda Lapa, Mily Possoz e Maria Helena Vieira da Silva, criou a sua própria independência financeira, atraindo uma clientela burguesa frequentadora dos salões artísticos, que lhe permitiu circular livremente no meio artístico, visitar exposições e museus fora de Portugal. Emília rejeitou deliberadamente a nudez clássica mitigada pela história religiosa e mitológica, e concebeu-a de forma corajosa liberta destas amarras, de forma atrativa e sedutora, tendo mais facilidade em usar modelos do que os homens seus pares, por vezes as próprias artistas que frequentavam o seu atelier. Esta liberdade permite-lhe apesar do conservadorismo formal e sem os requisitos de um modernismo em ascensão, ganhar lugar na história da pintura do Nu feminino em Portugal. O seu trabalho carece de estudo aprofundado já que não existem obras da pintora em museus, mas dispersos por colecionadores particulares. Nas duas primeiras décadas do século, são inúmeras as artistas que entram nesta grande panorâmica da arte moderna, a maior parte com ténue consideração crítica positiva. Gwen John e Camille Claudell, associadas entre si pela ligação a Rodin como mestre e amante, viram as suas carreiras subordinadas ao mito do amor romântico no qual o papel de musa prevalece sobre o de artista. Käthe Kollwitz (gravurista), Marie Laurencin, Florence Stettheimer, e Romaine Brooks, a primeira pintora que elabora um novo imaginário visual para a lésbica do século XX, teve a primeira exposição individual na galeria Durand Ruel em 1910. O quadro “White Azaleas or Black Net”(1910), pertence a uma série que rompe com o nu tradicional voluptuoso da arte Ocidental, pela representação da erotização da mulher lésbica, que contribui para desestabilizar as categorias tradicionais da masculinidade e feminilidade. No contexto da fotografia, Claude Cahun, fotógrafa da indeterminação de género, materializa essa convicção nos anos vinte, por meio da fotografia, numa série de auto retratos encenados, na escrita, e no teatro. No panorama artístico português, o take off acontece entre as décadas de 20 e 40. Mily Possoz (1888-1967) de ascendência belga, natural de Lisboa, e lá residente, nascida num meio privilegiado, cedo viajou por Paris, Alemanha, Holanda, Bélgica, onde se familiariza com o modernismo. Na sua permanência em Paris, de 1922 a 1937, pinta jovens mulheres que se passeiam e tomam de assalto a cidade, ou em ambientes de cumplicidade que tocam o erotismo; os interiores sugerem imagens de intimidade, gatos, crianças, mas também as figuras populares, e as paisagens de Sintra onde viveu. A ausência de homens é quase uma constante, são personagens secundárias num mundo feminino em conquista de território. Explora a cor, o traço simplificado mas seguro no desenho, a gravura é o principal meio de subsistência durante parte da sua vida integrando o grupo Jeune Gravure Contemporaine em Paris. No seu trabalho confluem influências de Chagall, Fujita, do qual se tornou amiga durante as suas estadias em Paris, Marie Laurencin, Dufy, da gravadora Hermine David, bem como de Kiki de Montparnasse, artista e modelo. Sarah Affonso (1899-1983), concluiu os estudos na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, tendo sido aluna de Columbano, também passou por Paris onde frequentou aulas de modelo vivo na Academia da Grand Chaumière, fora das contingências academistas. De lá traz um traço modernista, através da síntese das formas, e uma “poética da ingenuidade”, praticada por vários artistas desta época independentemente do género, meio de contrariar o pormenor e o rigor do período clássico, bem expresso nos inúmeros retratos que pintou de familiares e amigos. O desenho é um meio preferencial a que atribui grande importância, a par da pintura e de outras artes decorativas, a ilustração, o bordado e a cerâmica, tal como fizeram o Movimento Arts&Crafts no século XIX, e depois a escola da Bauhaus, na integração das artes decorativas em propostas de arte global. Ofélia Marques (1902-1952), autodidata nas artes, foi a primeira licenciada em Portugal (Filologia Românica), e mulher do artista Bernardo Marques, que terá exercido influência na opção da sua carreira artística. Nas suas viagens ao estrangeiro visitou museus e galerias, e terá contactado com as propostas expressionistas que marcaram a sua produção marginal de grande força anímica. Trabalhou principalmente o desenho, suporte onde traduz essa obra de pendor expressivo; as cenas de cafés e de jogo lembram o primeiro expressionismo germânico de Grosz e Dix, e os desenhos eróticos, ainda que de forma algo remota, evocam os nus lânguidos e sensuais de Romaine Brooks, na sua exposição de um universo íntimo homossexual feminino. Tal como várias das suas congéneres e seguindo uma tradição secular na obra da mulher artista, trabalhou o retrato, os auto retratos, bem como as caricaturas de amigos e um registo mais ligado ao público infantil, colaborando com a imprensa ilustrada e de escritores. Seria esta a sua produção oficial, a outra marginalizada à semelhança de vários artistas do nosso modernismo que se duplicaram neste reverso, foi a mais significativa, e inédita, no conjunto de obras desta geração de artistas portugueses. Em 1940 é-lhe atribuído o prémio Amadeo Souza Cardoso na pintura por via do retrato. No entanto em 52 a sua vida termina pelas suas mãos, não encontrando porventura forma de conciliar a sua forma de estar no mundo com a estreiteza imposta pelos ditames da política social e cultural do Estado Novo. Na geração seguinte Isabel Meyrelles (1929- ) é das únicas artistas que em Portugal seguiu o Surrealismo, tardiamente assimilado no nosso país, no entanto com forte expressão nos anos 40, em Cesariny, Cruzeiro Seixas, Dacosta, António Pedro, Vespeira, Cândido Costa Pinto, Fernando Lemos, Fernando Azevedo, José Augusto França, Moniz Pereira, Alexandre O’Neil, entre outros. A sua poesia cruza-se com a escultura, e debruça-se sobre temas que dominavam o imaginário surrealista: a alusão ao fantástico, o humor e o amor, a ficção, os objetos alegóricos da vida e da criação. Existe de facto um desfasamento na forma como o Surrealismo celebrou de forma apaixonada a ideia da mulher e a sua criatividade, o corpo feminino torna-se o significante por excelência, no qual o desejo é projetado, e assim rescrito, tomado de assalto, fragmentado em polaridades que confluem e colapsam numa nova realidade criativa. A quantidade de mulheres que se envolveram neste movimento noutros países é muito significativa, mesmo sendo protagonistas num papel complexo. Qual a razão desta ausência em Portugal? Cremos que em pleno Estado Novo, num regime que preconizava a hegemonia do homem, a mulher dificilmente usufruía da liberdade necessária, mesmo dentro do grupo surrealista, para assumir esta complexidade de papéis, que foi arcada por Leonor Fini, Leonora Carrington, Dorothea Tanning, Eillen Agar, Kay Sage, Remedios Varo, Frida Kahlo, Toyen, entre outras. A permanência de Isabel Meyrelles em Paris durante largos anos, e a sua condição económica privilegiada, permite-lhe criar algum distanciamento das limitações que pesavam sobre a criação artística das mulheres. A abstração e arte figurativa coexistem no pós segunda guerra, e há um deslocamento da arte das mulheres para fórmulas sociais mais alargadas, e para a arte “mainstream” durante este período. O “Federal Arts Project” (1935-1943) nos Estados Unidos e outros projetos que se lhe seguiram apoiaram a luta das mulheres no reconhecimento profissional. Artistas como Louise Nevelson, Lee Krasner, Isabel Bishop, e Alice Neel, foram de início apoiadas por estes programas. Em Portugal um “equivalente” programa levado a cabo por António Ferro, tem por objetivo constituir uma fachada cultural do Estado Novo, que é na sua essência masculina. No entanto, é significativa a presença de dez mulheres entre os quarenta e três artistas elencados na ficha técnica do maior evento de propaganda de Salazar, a Exposição do Mundo Português de 1940: Adelina Berta de Oliveira, Estrela Faria, Irene Lapa, Maria Adelaide Lima Cruz, Maria Clementina Carneiro de Moura, Maria Keil, Mily Possoz, Sarah Affonso, Regina Santos e Vitória Pereira. Na sua maioria pertenciam a um meio sociocultural privilegiado, com acesso ao ensino artístico desde muito cedo, e nos casos de Sarah Affonso, Ofélia Marques, e Clementina, casaram com artistas, o que nos anos 30 em Portugal não se traduzia necessariamente em benefício, pois o olhar tendencialmente ia para o homem. Mily, Clementina, Sarah, e Estrela, tiveram oportunidade de estudar no estrangeiro, que constituía uma importante mais valia pela oportunidade de entrar em contacto com o trabalho das vanguardas artísticas europeias, pouco conhecido em Portugal. Estrela Faria (1910-1976), tal como Mily, teve uma carreira internacional, em 37 ganha uma medalha de Ouro na Exposição Internacional de Paris, onde colaborou na decoração do interior do pavilhão de Portugal, e em 38 uma bolsa do Instituto da Alta Cultura para a mesma cidade. Em Paris frequentou a Academia de La Grande Chaumière, a Colarossi e a classe de pintura “a fresco” nas Beaux-Arts. Trabalhou na Exposição do Mundo Português (1940), e para aí realizou dois painéis de pintura mural representando assuntos populares para a sala de Cinema do Pavilhão de Arte Popular e quatro gigantescos retratos destinados ao Pavilhão das Colónias. Em 45 ganha o prémio Columbano, com “Cabeça de Rapariga”, retrato de grande densidade expressiva, e em 50 participa na XXV Bienal de Veneza. Residiu, com interregnos, em S. Paulo e ali participou na I Bienal em 1951, na II em 1953, e na III em 1955, vencendo então o Prémio de Pintura da Secção Portuguesa. Em 1953 executou um belíssimo mural, alegoria do cinema, para a parede do átrio do cinema Alvalade, que na reabilitação do edifício, depois de ter sido danificado, sofreu restauro em 2008. Entre Outubro de 1955 e o ano seguinte, esteve no Rio de Janeiro a decorar o Banco Ultramarino Brasileiro, e em 1964, foi uma das decoradoras da sede do Banco de Moçambique, na atual Maputo, produzindo um revestimento de parede em mosaico de vidro, de teor geometrizante e com efeitos óticos, que acompanha a escada helicoidal do interior do edifício. O seu dinamismo e plasticidade de ser artista, imprimem-se numa multiplicidade de técnicas e modos de fazer, tendo nos últimos anos conquistado aquilo que há muito desejava, ser professora na Escola de Belas Artes de Lisboa. Um processo determinante inscreve-se entre as décadas de 50 e 60, com a internacionalização das carreiras de Vieira da Silva, e Paula Rego, mais tarde seguido por Helena Almeida e Lourdes de Castro. Vieira na abstração, e Paula Rego de início com uma linguagem de caráter expressionista, próximo de uma “bad painting” herdeira de Dubuffet, casadas com artistas estrangeiros, saem fora do contexto nacional e dos ditames da política salazarista do Estado Novo, que impunha à mulher um lugar de confinamento ao lar, subjugada ao casamento ou à autoridade paternal, no caso de Vieira numa jornada que passa pelo Brasil e Paris, e Rego em Londres. Vieira da Silva (1908-1992), tal como Helen Frankentheler nos Estados Unidos, foi a única artista que nos anos 50, consistentemente descartou o género como tema. Frankentheler não foi a primeira artista a manchar a tela, mas foi a primeira a desenvolver um vocabulário formal completo desta técnica. Apesar de ter o apoio de Clement Greenberg, só depois dos pintores Keneth Nolland e Morris Louis adotarem a sua técnica, ela foi considerada “inovadora”. Vieira da Silva e Paula Rego deslocadas de Portugal e mais próximas dos centros artísticos europeus, vão ter mais facilidade em escapar às limitações subjacentes à receção/produção da arte feita por mulheres. O aparecimento do mercado galerístico em Portugal ainda que de forma ainda débil, vai permitir uma maior abertura de gosto e de apostas comerciais. E por sua vez a fundação Gulbenkian nesses anos irá desempenhar o papel de Ministério da Cultura para os(as) artistas portugueses não fazendo diferenciação de género, financiando a sua deslocação para os centros artísticos internacionais. Entre as artistas que beneficiaram de bolsas da Gulbenkian, além de Vieira da Silva, que muito cedo partia para Paris naturalizando-se francesa em 56, Salette Tavares, Graça Pereira Coutinho, Paula Rego, Lourdes de Castro, Helena Almeida, Menez, Clara Menéres, e Ana Vieira entre outras, emigradas na sua maioria em Paris e Londres. As exposições destas artistas residentes no estrangeiro terão constituído um canal privilegiado de ligação com as tendências estéticas contemporâneas, num país de escassa informação e com restritas condições de trabalho.
Manuela Hargreaves
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Bibliografia CHADWICK, Whitney – “Women, Art and Society”. London: Thames & Hudson world of art (third edition), 2002. Documentos Eletrónicos
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