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O 25 DE ABRIL NO MIRA, HOJE E SEMPREJOANA MENDONÇA2022-04-30
“Debaixo das cidades, a revolução”. Com este título se apresenta a exposição que celebra, uma vez mais, o 25 de abril de 2022 no Espaço Mira, em Campanhã, na cidade do Porto. Esta é uma exposição que resulta da procura por uma narrativa que reflita o que significa celebrar abril hoje, proposta pela dupla de curadores residentes (e resistentes), José Maia e João Terras. Segue uma linha de programação que sempre incluiu abril (desde 2013), mesmo quando a pandemia de COVID 19 não permitia manter as portas do Espaço Mira fisicamente abertas. Explorando formatos alternativos, como o online, a mail art, as conversas com o público através da plataforma zoom, o Espaço Mira manteve durante 2020 e 2021 uma programação diversificada, numa comunicação constante com os públicos, não numa lógica de desenrascar uma situação desesperada, mas antes numa abertura cada vez maior dos seus espaços a um público que vai crescendo num sentido mais plural. Qual é o significado de fazer hoje uma exposição em contexto de celebração do 25 de abril? O que representa para o momento que vivemos agora, em que estamos a desabrochar de um acontecimento coletivo que nos mudou para sempre? Na perspetiva destes curadores, o que se avizinha é auspicioso: estamos disponíveis para nos olharmos e nos melhorarmos enquanto seres humanos, cada vez mais empáticos e relacionais; temos cada vez mais representatividade de minorias em exposições de arte nos museus, galerias, e até em cargos de gestão e direção criativa. O que assistimos pode ser considerado como resultado de um investimento a longo prazo de uma geração (a minha, agora nos quarentas) na formação dos públicos que hoje temos, através do contacto com os nossos familiares e amigos, através de uma projeção no futuro dos nossos filhos, do que queremos para eles - e não queríamos para nós. Os casos onde isso não acontece são denunciados, trazidos para a praça pública, debatidos nas plataformas artísticas e culturais: cada vez temos mais dificuldades em ficar calados.
Carla Cruz e Ângelo Ferreira de Sousa. Exposição Debaixo das cidades, a revolução, Espaço MIRA.
Ora vejamos o caso do Projeto de Carla Cruz e Ângelo Ferreira de Sousa, sob o nome Associação de Amigos da Praça do Anjo (AAPA), nascida das cinzas da escultura de José Rodrigues, um anjo do sexo feminino - roubada alguns anos antes, segundo consta, pelo material valioso (bronze) de que era feita. A praça do anjo referia-se ao antigo Clérigos Shopping, que, embora localizado em zona nobre da cidade invicta, permaneceu abandonada durante anos até à sua recente restruturação inserida no investimento turístico a que toda a cidade do Porto tem pertencido. Assistimos ao vídeo assim que entramos no Espaço Mira, ladeado de cartazes realizados pelos manifestantes nas diversas ações concebidas pela AAPA, em que foram sendo produzindo objetos memorabilia do que se pretende mostrar e reivindicar, mas essencialmente construir memória: através de um livro, publicação que compila os anos de existência da associação, marcada pela ausência da “anja”, ou seja, através da introdução na academia de um discurso crítico, sustentado e fundamentado do estado da arte, a que não se fica indiferente. O vídeo com a história do nascimento e das diversas ações realizadas pela AAPA está inserido na mostra de arte online que ainda decorre nas diversas redes do Espaço Mira, e que acompanha a exposição “Debaixo das Cidades, a Revolução”. Além do vídeo da AAPA, esta mostra apresenta todos os dias um novo trabalho, passando por Maria Miguel Von Hafe, Nelson Duarte, Vicente Mateus, Ece Canli, Inês Tartatura Água, Pedreira, Sara Rodrigues e Rodrigo Camacho /Landra, Filipe Morais /Réptil, Leonor Parda, Mariana Barrote e Rebecca Moradalizadeh. Alguns destes artistas estão ainda integrados na série de performances realizada no dia 23 de abril, numa maior aproximação ao público, agora sim, fisicamente, e até já sem máscara.
João do Vale. Exposição Debaixo das cidades, a revolução, Espaço MIRA.
Na exposição, e em vizinhança da AAPA, encontramos uma evocação à cidade que não sabe quem é, através da pintura de João do Vale, numa espécie de paisagem reflexo de pulsão natural - mas organizada através de uma estrutura demasiado urbana. Encontramos o Álvaro Lapa ali, na sua matéria, na espessura da tela quase caixa, na paleta cromática escolhida por João, na sua narratividade sem palavra, mas com tanto para dizer. Com a pintura em grande escala de Maria Paz, viajamos até uma referência ao corpo feminino, assumida através de cores vibrantes, que facilmente poderíamos confundir com o brando estado de receber flores - mas estas viram-se contra o masculino, o arquétipo opressor, libertando-se perante um mundo que é e será das mulheres e dos seres híbridos onde o futuro nos prevê fazer chegar. Ainda numa fase inicial da nave central da galeria, conseguimos vislumbrar um desenho no chão, resultado da luz e sombra da obra de Mariana Barrote, realizada através do corte (físico e gestual) de uma superfície estável, com um lado positivo e negativo, ou melhor um lado preto e um lado branco. Através deste objeto, a artista constrói uma metáfora crítica, onde o público se perde com a beleza dos desenhos (na vertical e na horizontal), com a pintura expandida que transcende a peça em si, mas segue uma necessidade narrativa de esconder as coisas menos bonitas no meio da história, fazendo lembrar as pinturas da Paula Rego, onde as fábulas revelam personagens deformadas, alteradas perante as suas depravações. Se olharmos para trás, deixamos de ver o desenho no chão, quase como uma referência a Orfeu, que assim perde o que mais ama.
Sofia Lomba, Mariana Barrote e Maria Paz. Exposição Debaixo das cidades, a revolução, Espaço MIRA.
Numa aproximação pela grande escala ao trabalho de Mariana Barrote, está o labirinto de desenhos negros sobre branco de Sofia Lomba, num conjunto de peças que apela também ao (ser) feminino pela delicadeza da seda que escolhe, e onde sentimos um conjunto de formas orgânicas suaves quase abstratas. Revela-se assim de forma clara a alusão ao sexo feminino, à fecundação e à ideia de semente. A semente que é literalmente o símbolo da fecundação vegetal, é também misturada nas formas orgânicas que tanto nos parecem vegetais como humanas dos desenhos de Sofia Lomba, e cria a ponte para o vídeo de Sara Rodrigues e Rodrigo Camacho /Landra, colocado num plasma horizontal no chão. Neste vídeo, a dupla de artistas conta a história da bolota, desde a sua intensa presença na alimentação humana, até um abandono em detrimento de outros alimentos, resultantes das viagens intercontinentais e da mudança de hábitos alimentares. Aqui, a dupla aproveita-se de uma crescente curiosidade em torno da alimentação saudável - que se verifica recentemente - para inserir as plantas alimentícias e outras espécies comestíveis que crescem de forma espontânea nos terrenos, e que habitualmente ficam subaproveitadas. No vídeo, além da explicação de como tratar a bolota para a poder comer, assistimos também a um ritual estético de apreciação deste alimento que nos remete muito para a ideia de origem, e de aproximação à terra - e a que assistimos olhando para o chão - e um estar natural: um frasco que nos é apresentado na entrada do Mira serve como apelo aos sentidos (contendo bolota triturada), e o seu cheiro leva-nos facilmente para o cacau devido à proximidade olfativa. Como uma “cereja no topo do bolo”, e numa metáfora alimentar como bem calha, a dupla Sara Rodrigues e Rodrigo Camacho apresenta ainda uma performance que oferece ao público a prova do chá a partir de bolota, confecionado pelos próprios - no dia 23 de abril - em que a exposição se expandiu ao Mira Artes Performativas, e à Associação Malmequeres de Nôeda, com um conjunto de ações performativas que foram em si mesmas ações de liberdade individual e coletiva. Junto a este vídeo, no Espaço Mira encontramos a instalação da artista Patrícia Timóteo que, aparentemente encurralada num canto, propõe-se expandir o lugar através da projeção de slides - fazendo uso de um retroprojetor - e de uma superfície plana que parece sair da parede para receber também ele uma projeção. Muito interessada nos formatos e nos suportes como matéria, as peças mais recentes de Patrícia Timóteo parecem questionar o que é forma/fundo e o que é suporte/matéria e tema/teoria. As imagens que cria são construídas a partir do corpo, mas noutros projetos aproximam-se de uma quase teoria da cor, cristalizando o tempo em que são concebidas, numa apologia a um novo realismo a que poderia fazer sentido regressar nos dias que correm. A sua pintura expandida realizada através de luz comunica à distância com a pintura simbólica de Miguel Ângelo Marques, que faz o fecho da exposição num painel múltiplo preenchido de pinturas, que tanto nos parecem estudos de cor como aproximações à história da arte. De forma muito simbólica, e fazendo lembrar um Atlas Mnemosyne warburgiano, vemos elementos que se repetem e nos confrontam, como o fogo, o cavalo, a água, o pé (ou o calcanhar) e que regressam dos nossos sonhos para nos avisar ou cobiçar um futuro risonho. A pintura de Miguel Ângelo Marques apela a uma identidade coletiva, de construção de um conhecimento comum e identificação da repetição - quando ela acontece - que nos poderá avisar, de forma a não cometermos os mesmos erros do passado. A esperança que se faz sentir ao percorrer a exposição no Espaço Mira intensificou-se no dia 23 de abril na série de performances evocativas da liberdade, onde pudemos assistir a Rebecca Moradalizadeh, numa ação de pós-memória, em que a liberdade acontece através da vivência e repetição de gestos ancestrais de preparação do alimento em cima de um tapete no exterior; Sara Rodrigues e Rodrigo Camacho /Landra (já mencionados); Inês Tartaruga Água, cuja performance partiu de uma reutilização de meios analógicos, restos de uma vida tecnológica que já não existe - os CD’s - para a criação de paisagens sonoras, como o som do vento por exemplo. Já no espaço vizinho Malmequeres de Nôeda, Mariana Camacho concebeu uma performance que parte da desconstrução da música popular para se apropriar dela, e com a sua voz particular, fazer-nos viajar por memórias musicais inevitáveis; Vicente Mateus usou também um tapete para colocar a sua bateria que ensaia, estuda e provoca, alterando também o lugar do público, que entretanto se senta no palco; Ece Canli faz uma investigação do folclore ancestral turco, através dos cânticos populares, que nos faz conhecer através da sua voz, e o eco (efeito) que nos parece lugar de imaginação ou delírio, convida-nos a sair do nosso corpo por um instante; Leonor Parda tira-nos da nossa zona de conforto através da palavra dita, força oriunda de testemunhos pessoais, revelando-nos fragilidades, numa composição sonora que interpreta um texto-objeto; e finalmente Filipe Moreira conclui o ciclo de performances com uma apresentação no Mira - Artes Performativas, fazendo-nos lembrar o momento de crise das artes, como se estas fossem um luxo, uma comodidade, enquanto ele próprio se enrola numa teia metafórica e real. Após a viagem de lugares e de sentidos que se construiu nesta exposição com múltiplas direções, será de facto útil destacar que alguns destes nomes que pudemos conhecer são filhos de artistas de gerações estabelecidas, são eles hoje artistas com 20 e tal anos de idade, que começam a desenhar os seus percursos artísticos numa época em que já nada os poderá surpreender. Talvez ainda possam vir a ser surpreendidos com um público que aí vem, e que o Mira contribuiu para que se fizesse nascer, para que esta germinação de novas energias não se compadeça com a apatia do pós-pandemia e que as palavras de liberdade e de esperança ecoem durante tempo suficiente, pelo menos até ao próximo 25 de abril, em 2023.
Joana Mendonça
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