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MARTA MESTRE
Marta Mestre é curadora, actualmente a residir no Brasil. Com formação em História da Arte, passou por várias experiências na pesquisa e na curadoria, antes de embarcar num percurso fora de Portugal, primeiro como curadora assistente no MAM – Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, e recentemente ligada a novos projectos na Escola de Artes Visuais Parque Lage. 5 anos depois de estar a viver e a trabalhar fora de Portugal, a Artecapital foi falar com a curadora, em jeito de marco, sobre a experiência "brasileira", o panorama artístico português, a recepção da arte latino-americana e a curadoria como um trabalho de negociação e construção de sentidos.
Por Liz Vahia e Victor Pinto da Fonseca
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LV: Antes de integrares a equipa curatorial do MAM-Rio, fizeste um estágio naquela instituição como curadora assistente ao abrigo do programa Inov-Art (programa de estágios internacionais da DGArtes). Para ti, e partindo do teu caso pessoal, qual foi o impacto deste programa na posterior vaga de internacionalizações e desenvolvimentos de carreiras fora de Portugal?
MM: A tua pergunta faz-me regressar a 2009, 2010, quando Portugal estava num momento político e económico muito diferente do atual. Lembro-me que nessa época ninguém falava especificamente em “crise” tal como se veio a falar nos anos sucessivos, e lembro-me que os apoios à cultura, à formação e à investigação académica, mesmo com as suas lacunas endémicas, existiam e mantinham uma certa vitalidade na criação, na produção e na circulação das artes. Esse aspeto “nacional” estava mais ou menos assegurado, estava regulamentado e inclusive as autarquias assumiam um maior compromisso do que hoje na gestão compartilhada da cultura. Dou-te um exemplo: trabalhei em Sines, como curadora no Centro de Artes (projetado pelos arquitetos Aires Mateus), espaço dedicado à programação e circulação das artes que, à semelhança de vários outros, foram construídos por todo o país, mas que fizeram parte do último grande ciclo de dinheiros europeus e investimentos locais. O dinheiro que havia nessa altura já não existe e as políticas culturais que estavam em curso foram interrompidas.
Penso que na sequencia deste ciclo mais interno e “nacional” que referi, uma etapa que teria sido consequente, porque desde há muito considerada “vital” sem nunca ter sido efetivada, era a internacionalização das artes, ou seja, a possibilidade de entendermos a participação enérgica dos artistas, museus, coleções e mercado de arte portuguesa nos lugares do mundo onde o pensamento contemporâneo está a ser promovido, deixando de estar atrelada ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, e passar a ser uma prioridade do Ministério da Cultura. Mas, como sabemos, isso não aconteceu, o Ministério foi dissolvido e, como dizem os brasileiros, “perdemos o bonde”.
Então, de certa forma, aquilo que o programa Inov-Art se propôs, e que seria a qualificação de profissionais no campo da cultura através de experiências de trabalho fora do país foi, em certa medida, cumprido, mas não fez parte de políticas de internacionalização. Lembro-me que a Beatriz Batarda, no protocolo de entrega das bolsas na residência do PM, em 2010, virou-se e disse: “Vão... e não voltem”, o que deixou os políticos presentes de sorriso amarelo. Desde essa data até hoje, continua a ser difícil contabilizar o número de artistas, arquitetos, curadores, performers, académicos, etc., que saiu de Portugal e não regressou. Não sei como será para os outros, mas não penso que se possa usar a palavra “internacionalização” na primeira pessoa, do tipo, “eu internacionalizei-me”, pois isso seria demasiado presumido próximo ao que se vive. Processos de internacionalização da cultura só poderão ser realizados de maneira sistémica, coletiva e num quadro de desenvolvimento próspero. Caso contrário estamos tão somente a perpetuar as mesmas estorietas que sempre ouvimos contar, dos artistas portugueses que tentaram a “internacionalização” às suas custas.
VPF: Pareces-me perfeitamente à vontade no Rio de Janeiro, inteiramente incluída no universo artístico brasileiro. Encontraste a aventura que procuravas ou a decisão de emigrares foi, em si mesma, a aventura?
MM: Aconteceu que a “aventura” apareceu no meio caminho... O que inicialmente seria apenas um estágio no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, acabou por tornar-se um convite para trabalhar, e acabei por ficar mais tempo.
Mas a escolha do Brasil não foi aleatória, e teve a ver com uma trajetória que eu já vinha a fazer há algum tempo, interessando-me cada vez mais por contextos que constituíram, e por vezes radicalizaram, o discurso da modernidade. A “antropofagia” do modernismo brasileiro e todos os seus desdobramentos no séc. XX é talvez o contributo de maior expressividade e com maior capacidade de disputa para repensar os modelos europeus do século XX. Eu estava interessada em poder estudar mais este “nó” epistemológico.
Foi, portanto, uma trajetória natural mais do que uma linha de fuga, e também um exercício de colocar a minha visão de mundo em constante perspectiva e tradução. Este aspeto faz parte do "nomadismo" necessário ao mundo de hoje, beneficiar de conexões a uma escala maior, globais e com multifoco. E isso é muito bom para sair da condição claustrofóbica de pequeno país.
É de Alexandre O’Neill aquele verso amargurado “Portugal: questão que tenho comigo mesmo”... Hoje já estamos num momento bem diferente daquele que levou muitos artistas e escritores a sair, e a ditadura, felizmente, faz parte do passado. Mas, se as imagens têm, tal como acredito, uma vida póstuma em transformação, então o verso de O’Neill ainda pode funcionar de uma forma invertida: hoje é Portugal que tem questões connosco, “emigrantes”. Seria “logisticamente” inviável, digno até de um capítulo do “Mil e uma noites” do Miguel Gomes se, de repente, todos aqueles que saíram, decidissem regressar ao país. A conta ainda não fecha.
VPF: Por todo o lado os artistas apoiam-se sobre o que conhecem da sua própria existência; o que um artista tem de mais próximo é o seu ambiente imediato, do qual ele provém. No Brasil, parece-me que muita da criação artística surge intuitivamente, de um processo emocional e de sentimentos, da relação entre a vida e a arte (sentimentos suscitados especialmente pelas questões sociais e a economia política).
Esta criatividade consciente mas especialmente intuitiva, que transporta o mundo exterior para a esfera da arte, provém do meio tropical?
Precisamos de nos instalar no mundo tropical a partir do qual estas obras se resolvem para aprendermos a apreciar convenientemente a criação artística no Brasil?
MM: Não é fácil responder à tua pergunta especialmente quando pensamos num país complexo e diverso como o Brasil. Tentando pensar um pouco para lá dos discursos que habitualmente se evocam para substantivar a poética “tropical” da arte brasileira, ou seja, a miscigenação, a democracia racial, o homem novo, a antropofagia, etc., ocorrem-me duas possibilidades de leitura da pergunta que colocas, e que me levam a pensar por que certas poéticas sobre a arte brasileira (e não outras) têm uma maior assimilação lá fora? Penso que é esta a principal questão...
Por um lado mencionaria a leitura que argumenta que no Brasil não houve uma ruptura radical entre expressionismo abstrato e minimalismo, como se deu nos EUA a partir dos anos 50. Esta seria a leitura “culturalista”, que refere que o projeto do modernismo não se concretizou como base ideológica, uma vez que os artistas não se viram a produzir para um modelo industrial, político e coletivo, antes ganharam a consciência de que a escolha construtiva deveria ser um dado ético e individual. Esta leitura vai permitir que a arte brasileira comece a significar-se, interna e externamente, com formas pouco definidas, matéria mole, “quase vazio e pouco cheio”, citando Lorenzo Mammi, a par de uso significativo da cor fora da superfície da tela. Esta não inscrição internacional foi e continua a ser altamente positiva, produziu experimentações de grande radicalidade, que problematizam, de modo inédito, o lugar do corpo, do objeto e da instituição na arte global.
Mas, penso que a tua pergunta é sintomática de uma recepção mais recente da arte contemporânea brasileira, num momento em que ela transita não só como bem cultural consolidado, mas também como “bem de mercado”. Neste sentido, julgo que os anos 80 e o início dos anos 90, são um momento ainda pouco explorado pela historiografia, mas muito importantes para a orientação e a fixação dessa imagem “intuitiva” e “tropical” a que te referes.
Com o fim da ditadura, em 1984, o Brasil entra num momento de instabilidade política (governo de transição, movimento “Diretas Já”) e económica (várias tentativas de estabilizar a moeda), e as primeiras eleições democráticas (1989) abrem caminho para a consolidação do pensamento e das políticas neoliberais e para a entrada no mercado macroeconómico. No campo artístico, era necessário dar sinais de otimismo e ultrapassar o tom conceptual e o enfrentamento político dos anos 70, e as galerias comerciais iniciam as suas incursões no circuito internacional (feiras, bienais, museus, curadores, críticos, etc.) afirmando um grupo de artistas cujo trabalho disputasse as demandas do mercado global. Nesse momento circulam, entre outros, dois discursos que são enfáticos para a consolidação destes artistas, e particularmente significativos para a tua pergunta: por um lado o “retorno à pintura”, e por outro a afirmação dos estudos pós-coloniais que reposiciona as narrativas não hegemónicas e normativas, e revê a história enunciada a partir do Ocidente. Não à toa, duas das artistas brasileiras comercialmente mais cotadas hoje no mercado internacional, cada pintura valendo mais de 1 milhão de dólares, Adriana Varejão e Beatriz Milhazes, começam as suas carreiras neste momento.
Aquilo que hoje alguma da crítica de arte brasileira refere sobre as relações entre arte, mercado e produção de significado nos anos 80 e 90, é que a complexidade artística e cultural daquele momento ficou aquém da operação de mercado, e que as instituições culturais, os críticos e os curadores em número e atuação menos expressiva que hoje, não sustentaram uma interlocução crítica de escala internacional. Não penso que polarizar o debate nestes termos seja útil, e deve ser feita, sempre que possível, uma leitura contextual das lacunas, mas é certo que a falta de traduções de textos importantes (o português não é falado nem lido no meio de arte internacional) ou a dificuldade das instituições em veicular outras “narrativas”, facilitou visões parciais. O trabalho de artistas tão diferentes como Nuno Ramos ou Ricardo Basbaum não se caracteriza por esse tipo de adjetivos.
Mas, felizmente, nos últimos 10 anos muita coisa mudou e os museus e as coleções estão cada vez mais consolidadas. As traduções estão aumentando e o número de pesquisadores e variedade de coleções também. Penso que essa visão que referes terá tendência a complexificar-se cada vez mais.
VPF: Portugal e Brasil aparentam continuar distanciados, e os anos sucedem-se. Não me parece difícil verificar que o distanciamento cultural entre os dois países é um prolongamento da visão impossível do ‘fado tropical’! Na tua opinião "o que é que Portugal não tem" para se compatibilizar integralmente com o Brasil?
MM: O que Portugal não tem eu não sei..., mas eu costumo dizer que são dois países que falam a mesma língua, mas não conversam a mesma linguagem. Precisamos de nos traduzir mutuamente... Aliás, esse seria um bom exercício de curadoria, mais do que procurarmos as afinidades.
LV: Vives fora de Portugal há 5 anos, o mesmo tempo que o país esteve sem Ministério da Cultura. Como é que defines o actual panorama artístico português, a partir desse olhar distanciado do outro lado do Atlântico?
MM: Penso que não houve um momento tão difícil para as artes visuais e para toda a cultura em geral desde o 25 de Abril, e que os retrocessos que aconteceram em tão curto espaço de tempo já não serão desfeitos. Falo especialmente na questão de direito ao trabalho e do “precariado” que se formou, usando a expressão de Negri.
Passar de um Ministério da Cultura para uma Secretaria, cujo secretário não teve nestes 5 anos qualquer capacidade política para reclamar recursos, destituindo simbolicamente o lugar da cultura na vida democrática, foi uma grande porrada, sintoma de que nada estava assim tão garantido.
De todas as vezes que vou a Portugal e vejo as agendas culturais cheias, e mesmo quando sinto uma aparente vitalidade do meio, fico hesitante. Não creio que o sem-número de debates, “screenings”, conversas e outro tipo de eventos “informais” estejam, de facto, a sustentar uma cadeia produtiva, e das conversas com colegas portugueses e do que acompanho quotidianamente nos jornais e nas redes sociais, a ideia é de uma cadeia altamente fragilizada, baseada demasiado na troca, no eu-faço-isto-tu-dás-me-aquilo.
Mas, inquestionavelmente, se estivéssemos num mundo ideal, e pudéssemos separar o juízo que fazemos sobre a criação dos seus contextos tangíveis e quotidianos, não tenho dúvidas da excelente qualidade do que fazem hoje os artistas, curadores, editores, arquitetos, cineastas, etc., na sua maioria fora do país e já há muito tempo. E que estas pessoas decidiram trilhar caminhos isolados das políticas de estado, independentemente de termos ou não termos Ministério ou Secretaria da Cultura, e que forjar uma “marca nacional” que não é, de todo, o tema dos seus trabalhos.
Estou bastante feliz que este ano serão apresentados quatro artistas portugueses na Bienal de S. Paulo, selecionados pela curadoria de Jochen Volz (Lourdes Castro, Carla Felipe, Priscila Fernandes e Gabriel Abrantes). Isso será muito importante para renovar a ideia de arte portuguesa contemporânea que recorrentemente se tem no Brasil, e que fica reduzida aos nomes que habitualmente circulam.
Ângelo de Souza, que em 1975 ganhou o prémio internacional da Bienal de São Paulo, e cuja obra tece diálogos muito propositivos com o tom experimental da arte brasileira dos anos 60 e 70, mereceria uma maior divulgação do seu trabalho aqui, e vejo-o como um bom ponto de partida de novas interlocuções que incluam artistas e curadores portugueses mais jovens. Ana Hatherly idem.
VPF: É interessante ver a liberdade que os artistas sul americanos - presentes na cena internacional - mostram ter, e como expandem o universo da arte contemporânea; como eles escrevem a sua própria história e participam - activamente - na história de arte mundial depois do fim do século XX.
Concordas que a América Latina é actualmente um laboratório de criação artística contemporânea e o Brasil parece ser de todos estes países aquele que mais se move e interesse desperta na cena artística internacional? O label "América Latina" no contexto actual da arte significa uma classificação de poder e qualidade?
MM: Nos anos 60 falava-se em arte “latinoamericana”, nos anos 80 e 90 em arte “na América Latina”, e a partir dos anos 2000 aparece a designação mais compósita de “Made in Latino-América”. A evolução do próprio “label”, como apelidas, dá conta do crescente interesse pela arte produzida nesta parte do globo, mas parece-me que é também um sintoma do conflito de interesses entre coleções privadas, mercado, publico, discussão histórica e crítica, e artistas. Aliás muitos destes nunca se sentiram fortalecidos no label “latinoamericana”, que continuo a achar demasiado rasteiro relativamente ao quanto a questão já foi complexificada, desde Hélio Oiticica a José Luis Romero, de Aracy Amaral a Cildo Meireles.
É Hélio Oiticica quem, numa entrevista dada a Lygia Pape e publicada em 1972, logo após ter regressado de Nova Iorque, diz achar o termo “latinoamericana” uma coisa “reaccionaríssima”, que mantém os “artistas separados numa minoria fabricada”. Na mesma entrevista refere: “que o Brasil tem mais a ver com os Estados Unidos do que com os outros países da América Latina . Ou com algumas tradições europeias. Por exemplo, a Alemanha está mais perto do Brasil do que o Peru, sob um certo aspecto”. Artur Barrio não se considera latino-americano, nem brasileiro, nem português. São artistas. Nenhum “label” é atestado de qualidade.
LV: Como defines a tua atuação curatorial?
MM: Entendo a minha atuação no campo artístico envolvendo um espaço de negociação entre formas conhecidas e formas desconhecidas, que engloba não só trabalhos de natureza artística, mas também pessoas, protocolos expositivos, textos, orçamentos, instituições públicas ou privadas, narrativas, etc. Uma prática bastante aberta e de caráter “público”, sem muitos formatos orientados ou pré-determinados.
Já em Portugal, mas especialmente aqui no Brasil tenho notado que o meu trabalho se tem feito maiormente em instituições de natureza pública, ou seja, centros culturais, museus e escolas de arte, e gosto particularmente de trabalhar sobre a ideia de construção coletiva de sentidos. Não encontraria este desafio se atuasse exclusivamente para o mercado.
Penso a curadoria como um trabalho de pesquisa sobre a história da cultura, e sempre me interessaram artistas e produções pouco conhecidas, pouco vistas, sobre as quais é necessário jogar luz.
Recentemente tenho desenvolvido uma atividade intensa com alunos de arte. A convite de Lisette Lagnado, diretora da escola de artes visuais Parque Lage, desenvolvo o programa “curador visitante” que procura criar um ambiente crítico entre a escola e o meio de artes. A par disso também estou a trabalhar com arquivos de artistas brasileiros dos anos 80 e 90.
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Notas
[1] “Se tudo é humano tudo é perigoso”, participação dos artistas Pedro N. Marques, Eduardo Guerra, Erika Verzutti, Adriano Costa, Julieta Aranda, João Maria Gusmão e Pedro Paiva, Tiago Carneiro da Cunha, Jimie Durham, Leon Ferrari, etc. Curadoria de Marta Mestre, Lab. Curatorial/ SP-Arte, São Paulo, 2012.