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MAFALDA MIRANDA JACINTO
Mafalda, nascida em Lisboa em 1989, pensa a ansiedade da vida contemporânea nas suas mais variadas expressões; a solidão e o FOMO mas também a comicidade e a magia. Fá-lo privilegiando o discurso visual, em que o texto também aparece, e incorrendo pela multidisciplinariedade - que vai do seu trabalho de comunicação, ao teatro, aos desenhos... A Artecapital, motivada pela curiosidade perante a sempre-em-movimento Mafalda, pessoa e criadora, conversou com ela via videochamada. Conversa que se apresenta no texto que se segue.
Por Catarina Real
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“THINGS I KEEP LYING TO MYSELF ABOUT: This time, he will really love me I don’t want to have children I will live forever I will have more money one day I will live in a house with all my friends when I am old I am only attracted to men I like to suck dick Art will change the world I don’t do it for recognition I am not really addicted to alcohol I am not enough.“
Mafalda Miranda Jacinto, citado do guião de Sugar Coating (2018)
CR: Achei muito engraçada a prontidão com que partilhaste as tuas referências, porque normalmente as pessoas ou têm alguma reticência em delimita-las ou não sabem mesmo fazê-lo. Podes-me falar um pouco sobre elas, ou do que elas têm para se tornarem uma influência?
MMJ: Efectivamente essas referências acabam por ser aquelas a que eu regresso sempre.
Os Forced Enternainment, até mais na figura do Tim Etchells; sobretudo pelo trabalho que têm desenvolvido na escrita e que me tem vindo a interessar cada vez mais. Eles têm um trabalho tão vasto!, que há muitas coisas que me interessam com recorrência, para além do texto. Da primeira vez que me apaixonei por eles foi porque vi em cena um espectáculo duracional, mais tarde vim a descobrir uma exposição do Tim Etchells sobre som e a partir daí fiquei muito focada na maneira como ele usa a linguagem e a desconstrói. Depois acede-se ao Instagram do Tim Etchells e é outra coisa(!), é assim um museu visual, um dicionário de palavras. A Miet Warlop, assim como o Philippe Quesne, são os grandes nomes que tenho como referência dentro do que - embora não goste de categorizar as práticas - se pode chamar de teatro visual. No trabalho deles é evidente o interesse na visualidade, a construção de um cenário e de uma imagem em movimento.
Eu comecei a interessar-me neles, e também a descobrir os meus interesses artísticos, quando morava em Londres. Comecei a perceber que eu, enquanto criadora, sou também muito visual. E quando eu me refiro ao Tim Etchells, por exemplo, a quem tenho prestado particular atenção ao trabalho de escrita, vejo uma referência muito forte à palavra enquanto imagem. Acho que é isso que me liga a eles: eu também vejo as palavras e o texto como imagens. Tudo o que sejam truísmos ou afirmações curtas ou palavras em composição, eu tomo-as como imagens.
A Miet Warlop tem linguagem visual extremamente colorida e com um grande sentido de humor e era também isso que me atraía colocar em palco. Trazer o surrealismo da realidade, colori-lo, apanhar uma imagem, colori-la, e por tudo em palco.
Falando também do Edouard Levé, que descobri mais recentemente; ele tem um livro muito bonito com que ando obcecada, que se chama Auto-Retrato. Nesse livro ele faz uma descrição do auto-retrato. E toma o auto-retrato como tu pressupões que seja uma pintura ou um desenho, mas ele escreve-o. Com palavras, frases, a que não dá seguimento, por recortes. Como “Eu gosto de comer uma maça todas as manhãs.” ou “Já me disseram três vezes eu amo-te” ou “Já disse uma vez que amava alguém” ou “ Não gosto de pessoas generosas.”. Ele descreve-se ao íntimo, mas com frases a que não dá seguimento. Acaba por criar assim uma descrição com muita minúcia, com qual me identifico muito. Consigo-me rever em muitas das coisas que escreve. Ele trabalha nesse segmento da literatura, do texto, em que uma frase te chega para explicares tudo o que te rodeia, e isso interessa-me. Essa síntese. Remete-me também para o trabalho dos Forced Entertainment, em que uma frase, ou uma palavra por vezes, é suficiente para a minha mente voar para aqueles sítios que propõem. É da descoberta do Edouard Levé que surge também um solo que fiz, em que repliquei este método de escrita - que não é método nenhum, mas mais uma paranóia de desenvolvimento - de listas de tudo, listas de tudo o que me descreve.
CR: E a influência dos que te rodeiam? O que é e o que significa pertencer a um colectivo como o Rabbit Hole?
MMJ: A Rabbit Hole teve, e tem, uma importância que demorei a perceber. Foi uma forte ajuda para não só me relacionar mais intimamente com a performance mas também continuamente alargar os meus horizontes. É com muito carinho que recordo o que a Rabbit Hole tentou fazer desde o início. Eu estava nesse início mas estava muito não comprometida, pelo menos não a cem por cento. Participei e ajudei no que pude e hoje em dia tenho muito orgulho naquilo que a Rabbit Hole fez entre 2013 e 2014. Falo de festas, propostas, plataformas condensadas em micro-ciclos, micro-festivais, que começaram a ser feitos na ZDB e, como havia pessoas de todas as áreas - da performance ao cinema, passando pela música -, tornavam-se tardes (das 15h até ao fecho) com apresentações e conversas que se desenvolviam até acabarem nestas queer parties, que agora não se vêem tanto. Actualmente há a proposta do projecto Mina, mas que é uma derivação das festas da Rabbit Hole. Na altura eu sentia que - e posso estar errada - era uma possibilidade nova em Lisboa, para onde podias ir vestido como quisesses, e onde ninguém te julgava. Tinhas uma liberdade para fazer o que quisesses. A Rabbit Hole abriu-me muitos horizontes e foi lá que me cruzei com pessoas e áreas com que não me tinha ainda cruzado. Permitiu-me ficar muito mais sensível a determinados conceitos ligados à cultura queer e ganhar uma abrangência de rede que me fez crescer, enquanto artista e pessoa.
Todas as referências a que fui beber vêm daquelas pessoas que são ainda o meu núcleo de amigos, e que continuamente me ensinam coisas. Em todas as relações que tenho isso acontece, mesmo não sendo clara a explicação sobre como as relações afectam directamente o que faço. É também essa a razão pela qual mantenho as relações que mantenho, porque existe sempre uma troca directa em que sinto que a outra pessoa me está a dar alguma coisa e que eu estou a dar de volta outra coisa. Não só artisticamente. Se tenho alguma relação é porque essa troca directa existe e se aplica quer no meu trabalho de comunicação, na minha existência enquanto pessoa ou como criadora.
CR: Que são realidades que estão muito juntas também.
MMJ: Sim, sim, claro. Isso acontece nem que não seja porque eu misturo tudo. Tudo me afecta; relações, paisagens... Eu também gosto muito de fotografar, nos meus desenhos as minhas relações pessoais estão expressas claramente. E levo tudo para o meu universo, para a minha utopia pessoal, para a minha paisagem.
CR: Orientando-nos agora para propostas concretas, e começando pelo projecto mais antigo a que consegui ter acesso... Como funcionou a proposta em “Red Room” (2014)?, as pessoas aderiram e geraram-se de facto, encontros? Havia sempre um performer presente?
MMJ: Sim, havia sempre um performer presente. Aconteceu no Condomínio, em Lisboa, uma iniciativa excepcional que já não existe. Como acontecia numa casa, as propostas aceites teriam de fazer sentido nesse contexto. Na altura, e ainda agora, sentia necessidade de reconectar as pessoas. Sinto que é um problema da humanidade, a falta de conexão, e que essa escuta activa e a possibilidade de parar é uma necessidade. A minha proposta envolvia um quarto, um espaço íntimo, e imaginei-o vermelho. A cor vermelha está muito presente, não sei bem porque motivo, mas é uma cor forte e em que me revejo. Podias entrar nesse quarto vermelho e dançar a música que quisesses com um performer que lá estaria. Cada performer tinha o seu tempo, e íamos trocando. Ficávamos lá dentro à espera que entrasse alguém. Houve uma boa recepção, a sala nunca esteve vazia e voltaria sem dúvida a fazê-lo.
CR: E geraram-se, de facto, encontros?
MMJ: Sim, também era a dançar... o que facilitava. Não estava imposto o diálogo. As pessoas só estavam ali e só tinham de se preocupar com o acto de partilhar uma dança com alguém, não se preocupando sequer com o facto de estarem ou não a ser observadas. A relação era simplificada porque era de um para um. Era simples. E conseguias deixar a outra pessoa à vontade. Não se tratava de serem performers mas sim de serem outras pessoas também a partilhar aquele momento, e que poderiam ter tanta timidez quanto as pessoas que entravam. Lembro-me que entravam pessoas mais tímidas, por quem ia puxando e era maravilhoso (!), ou crianças muito entusiasmadas por estarem ali ou outras pessoas que já vinham disponíveis para entrar na proposta.
Eu faria uma sequela deste projecto. Talvez passando da dança para um regime ainda mais íntimo, de conversa. Se fizer uma sequela, quero promover isso. Retirar a pessoa do tempo dela, da ficção do tempo dela, e conseguir pôr estas duas pessoas no tempo presente, próprio, na sua calma, sem pensarem em problemas exteriores. Não quero soar a um cliché, mas acho tão necessário, promover esta escuta activa. E promover o presente. E contra mim falo. [riso]
CR: Uma escuta mútua, ou algo próximo da terapia?
MMJ: Mútua, preferencialmente. Quanto à terapia, não sou terapeuta, e não queria cair aí. No fundo fi-lo e faço-o porque eu é que quero parar. [riso] Faço para mim. [riso] Queria parar um bocadinho e queria resgatar o ter este tempo para mim. Por isso é que a quarentena até me fez bem, desacelarei.
CR: Quanto a “Asparagos” (2016), achei novamente muito curioso apontares como o trabalho de viragem na tua prática, porque estas afirmações mostram-te muito certa ou certeira quanto a ti própria. Talvez possas falar um bocadinho sobre essa viragem e encontro dos teus interesses mas também, aproveitando que é um trabalho de final de curso, falar um pouco sobre a experiência de estudar na Goldsmith e o que isso te trouxe.
MMJ: Eu estudei Ciências da Comunicação, seguido de Marketing. E já estava há algum tempo a querer ir estudar fora. Não queria fazer a escola de teatro - até hoje não sei se o problema não era não querer fazer audições - e então fui para a Goldsmith, que não tinha audições. E, de facto, os cursos em Londres são muito caros, mas tens outras infraestruturas a que aqui não tens acesso. A possibilidade de teres estúdios, salas de ensaio, teatros, apoio técnico... Câmaras, gravadores, projectores... Tinhas também auxílio com o desenho de luz das tuas propostas, alguém para te ajudar com os figurinos... E eu queria aprender tudo. Cheguei a ir ter com a pessoa que nos ajudava com os figurinos só para aprender a costurar. Era uma outra realidade. Eu fiz o mestrado em Performance Making. Quando estás no mestrado tens de ir descobrindo o teu caminho sendo que tens cinco performances para fazer, a maior parte colectivas. E estás por tua conta, tens de ser tu a fazer. Não tenho muita referência dos professores dessa altura, mas a prática de te obrigarem a fazer... foi a partir dessa obrigatoriedade de fazer que consegui ir encontrando os meus interesses. Apesar de estar mais sozinha, num certo sentido, tens todas as infraestruturas que te suportam: uma biblioteca enorme, computadores com todos os programas, técnicos de todas as áreas... Existe as possibilidades de aprenderes todas as coisas ali, se fores à procura do que te interessa, e explorando o que podes usar.
Tive também muita sorte porque me cruzei com uma alma gémea, a Anthi, uma grande amiga, grega. Somos muito parecidas, tínhamos os mesmos interesses e a mesma postura, e na altura do projecto final - como também há alguma motivação a que os projectos sejam colectivos e porque associado à execução do projecto final tens um budget por aluno (o que significa que duas pessoas têm o dobro do orçamento) - tomámos a decisão de o fazer em conjunto. Juntámos com os nossos pontos de partida. Eu queria fazer um projecto que começava com uma mesa. A Anthi queria que existisse comida. Então começamos a explorar os dois objectos, que faziam sentido juntos. Partimos de duas personagens que estão à espera, num jantar, dos seus convidados que nunca aparecem. Essa espera, um pouco becktiana, é recorrente nos projectos que tenho feito com a Anthi. As personagens estão sempre à espera, nada acontece e não há um ponto de viragem. Às tantas estávamos a trabalhar num projecto que se distanciava muito da palavra, mesmo não tendo sido uma intenção inicial. As personagens ficam muito tempo sem falar, não têm diálogos uma com a outra, porque se encontram num estado de aborrecimento total e quase se torna um espetáculo cuja sequência ocorre apenas pelas imagens. É uma constante de imagens de como estas personagens utilizam o tempo enquanto estão à espera de alguém. Relaciona-se também muito com a solidão, que é uma coisa que, a bem ou a mal, encontras sempre nos meus projectos. E também a ideia de desejo, fruto da pertença a esta geração, que quer sempre muitas coisas e que está em luta permanente porque não as consegue alcançar. É o que acontece com estas personagens que querem que aconteça muita coisa, mas a quem não acontece nada.
CR: Ainda dentro deste espectáculo, na sinopse que o acompanha aparece a referência ao FOMO como a, entre aspas, doença do séc. XXI. Há uma ansiedade, e talvez esse aborrecimento das personagens também, que me parece constante no teu pensamento, nas tuas imagens. Qual é a tua relação com este FOMO?
MMJ: Ainda na Goldsmith, cheguei, nas minhas pesquisas, a uma Ted Talk do Barry Schwartz, que escreveu muito sobre o paradoxo da escolha. E mal li aquilo, fez-se luz. O paradoxo da escolha diz uma coisa muito simples que é: o capitalismo, ao maximizar a liberdade, veio maximizar a escolha. E o indivíduo é deixado ao abandono para ter de lidar com todas as suas escolhas. Vais ao supermercado, o templo capitalista por eleição, e só queres uma lata de feijão. Só aqui, tens de escolher entre trezentas marcas de latas de feijão. Ele fala muito do momento de paralisação face à indecisão da escolha, por não saberes qual lata escolher. Mas sobretudo o que te afecta é: compras uma lata de feijão qualquer, e vais para casa. E em casa começas a pensar que se tivesses comprado outra, de entre as outras 299 que podias ter escolhido, estavas melhor. E isso traz-te insatisfação e frustração porque tens de viver com a possibilidade de a outra escolha, que poderias efectivamente ter feito, ter sido melhor do que aquela que fizeste. E isto vale para todas as escolhas, em todas as vertentes da vida. Constantemente. Eu pensei muito nisto. Eu, que sou muito mais orientada para o futuro, percebi que, para mim, isto era uma doença. E que gere em demasia a nossa vida. A nossa vida social, profissional... todas as áreas. Eu sinto-me muito afectada. Nas relações sociais acho o FOMO mais grave, vejo muitas pessoas sozinhas, e presas nesse paradoxo. Relaciona-se também com o facto de vivermos numa sociedade que se torna cada vez mais individualista. Sinto que há uma geração que é extremamente ansiosa e em grande parte vem disso.
CR: Foi também com a Anthi Kougia que criaste Tragedy (2017), Mosquito (2018) e Anthi também colaborou em Endland (2018). Asparagos (2016) foi um momento de viragem no teu trabalho também porque começaste a trabalhar com ela?
MMJ: Claro! Começamos a fortalecer a nossa relação profissional e de amizade desde o trabalho para o Aspargos, em Maio de 2016. A Anthi é muito importante porque partilha das mesmas referências e interesses que eu e, ao partilharmos os mesmo interesses, estamos sempre a caminhar na mesma direcção. A Anthi é uma pessoa muito fácil de colaborar com - e que também me atura muito [riso] - e foi sempre uma pessoa muito generosa e sempre senti que nos complementávamos.
Às vezes era difícil o trabalho, mas apenas porque nós criávamos os espetáculos mas estávamos também sempre dentro deles, enquanto intérpretes. Com a atracção que temos pela criação de um universo de magia, ou do surreal, torna-se difícil participarmos e querermos construir a visualidade. Esse tornava-se o nosso obstáculo, porque de resto, a nossa relação profissional era muito boa. Profissional que também se contaminava muito. Não sei se fazíamos mais pausas ou se trabalhávamos mais, até hoje ainda não sei. [riso]
CR: E, fico-me a perguntar, qual é a diferença entre uma criação partilhada e uma colaboração?
MMJ: Pode haver diferenças mas para mim, de repente, não tem nenhuma em particular. Colaboração poderá ser quando tu tens uma ideia e convidas alguém a auxiliar-te na execução dessa ideia. Quando é uma construção tua em que alguém te vem ajudar. Uma co-criação poderá ser um início de trabalho conjunto, com toda a partilha de responsabilidades e trabalho.
CR: Era apenas uma pergunta fruto da minha curiosidade, visto que a Anthi aparece nas fichas técnicas de diferentes projectos como colaboração ou como co-criadora.
MMJ: Entra-se apenas nesse domínio da ficha técnica. E é muito difícil para mim fazê-las!, estou sempre a encontrar formas novas de escrever os papéis que as pessoas tomam. Não sei bem para quem escrevo, para quem haverá interesse vê-las. Não há produção, não há dinheiro envolvido... a ficha técnica que fiz para o “Sugar Coating” atingiu proporções ridículas: pessoas que me emprestaram umas cuecas aparecem na ficha técnica, nos agradecimentos.
CR: É para “Sugar Coating” (2018) que vamos também, o teu último projecto e único projecto solo. Achei bonita esta ideia de revestimento de açúcar como uma tentativa de embelezar o futuro. Que ao mesmo tempo descreves como o tempo em que estamos à espera para morrer e também como a jornada impossível de atingir o horizonte... A escrita de listas e de inventários parece-me uma ferramenta eficaz para se ir aguentando essa espera. E pergunto-te se essa escrita está próxima dos desenhos que partilhas em Red Pills.
MMJ: O “Sugar Coating” foi o primeiro projecto que fiz a solo e que segue uma linha muito autobiográfica. Sou eu a fazer inventários da minha vida, da minha própria utopia. E tudo começou nessa utopia: inicialmente queria falar de utopia, não a utopia política ou social, mas a ideia de utopia privada. Queria falar do meu próprio universo. A utopia, e a minha utopia, liga-se a essa fantasia, a uma coisa fantasiada, muito visual e cheia de magia. Ao mesmo tempo que lia Edouard Levé comecei a ficar com vontade de fazer exercícios de escrita no mesmo sentido, muito autobiográficos e pessoais. Não sei bem como cheguei às listas. Quando era ainda adolescente tinha medo de me esquecer ou tinha receio de, por exemplo - isto são as minhas fantasias que escrevia em diários - , se um dia alguém me entrevistasse [riso] eu não soubesse o que dizer. Se o Daniel Oliveira me entrevistasse eu teria de saber o que dizem os meus olhos e as minhas cinco comidas preferidas. Juntei a leitura do “Auto-Retrato” à minha vontade, vinda da adolescência, de não me esquecer das coisas, e começou assim um projecto de inventariado de coisas que gosto, alcançando uma espécie de poesia íntima. Comecei a encontrar na autobiografia e na listagem a minha terapia de autoconhecimento, de que aprendi a gostar: agora já sei o que gosto e o que não gosto. Há também muita ironia e sarcasmo presentes. O que gosto, o que não gosto, em que sítio da casa costumo chorar mais, ou em que altura do dia, coisas que acho esteticamente interessantes ou desinteressantes, tarefas para amantes... Esse tipo de jogos que fui colocando a mim própria. Todos eles começaram a fazer sentido para o solo do “Sugar Coating” , que acabou por estar muito próximo dos desenhos que faço. É muito transparente. Eu coloco-me dentro de uma caixa, mas a caixa é também transparente, e há uma revelação constante de coisas íntimas. Cheguei a ter feedback de amigos próximos que me diziam que este era o primeiro projecto em que me viam reflectida. Tal como o dizem dos desenhos. Dizem-me que nos desenhos me revêm. E eu gostei desse feedback quanto ao "Sugar Coating".
Estou sempre a brincar com a tragédia da vida. Acho que a vida é sempre uma coisa bastante solitária. E as coisas trágicas a mim trazem-me à ironia. Desamores... ou cair no chão! Tudo dá para rir. A vida é muito crua e surreal ao mesmo tempo, e é disso que me vou alimentando para não ser - vou dizer uma asneira - absolutamente depressiva. Tem muita piada, muita coisa. E então tento usar essa ironia e sarcasmo, os mesmos que existem na vida. Os desenhos e este projectos vêm dos mesmos sítios mas vejo que os desenhos são mesmo muito privados, e muito femininos, enquanto que o “Sugar Coating” tem outras áreas de abertura.
Na altura, quando estava a fazer o “Sugar Coating”, mandei um email ao Tim Etchells, que me respondeu!, e me deu duas referências, uma delas era um autor, Joe Brainard, que só faz listas que começam com a conjugação “I Remember”. E eu acabei por fazer uma das minhas listas em diálogo com esta e começava com o “I Forget”. E era ongoing. Se eu olhar para o guião outra vez, há muita coisa que me apetece mudar. Mas claro, podes criar coisas ad eternum e cada lista pode ter itens infinitos.
CR: E como pergunta final, achas que o problema da humanidade vem de não conseguirmos ouvir o nosso próprio corpo [como referência ao teu guião]?
MMJ: Sim, em parte. Só não consigo dizer-te na totalidade o que é que entendo por corpo, ou o que é que a ideia de corpo pode abarcar. Quando penso na ligação entre a mente e a matéria... acho que não paramos muitas vezes para pensarmos em nós próprios e para conseguirmos encarar a realidade de forma clara. Vivemos muito presos a ficções, temos muitas preocupações que nos ocupam muito tempo, e sempre foi muito difícil para mim deliberar o que é que eu quero. E eu acho que era muito importante conseguir responder a isto em primeiro lugar e conseguir fazer este trabalho de pensar nisto, de pensar no que é bom para mim. Porque o que é bom para mim será sempre o que eu quero. Às vezes escolho coisas que são erradas porque não estou a ser capaz de me ouvir.
Na aceleração corrente e naquilo que a sociedade nos exige é difícil a escuta, estamos em constante pressão. Por isso estou também a aproveitar a quarentena para existir com mais calma.
CR: Queres acrescentar um nota final sobre projectos para o futuro?
MMJ: Projectos para o futuro... Uma amiga minha - a Joana Sousa - veio-me aliciar para tentar escrever uma série a partir dos meus desenhos. Nunca escrevi para televisão, mas estou a tentar e está-me a animar! Às vezes canso-me com facilidade de estar só numa coisa, gosto de estar em constante aprendizagem, e esta é uma coisa nova.