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NUNO CERA
Nuno Cera foi o primeiro convidado do programa de residências artísticas em Macau promovido pela associação Babel. Com início em Setembro deste ano, o artista passou um mês a viver e a trabalhar em Macau, apresentando no próximo ano os resultados numa exposição que combinará também trabalhos anteriores. Esta residência tem como objectivo criar novos olhares sobre Macau, promovendo o intercâmbio internacional. Margarida Saraiva, curadora do programa de residências e responsável pela Babel, conversou com Nuno Cera sobre este e outros projectos recentes.
por Margarida Saraiva | Novembro de 2018
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MS: O que te levou a Macau?
NC: Estive em Macau pela primeira vez na altura da transferência de administração, em 1999. Nessa ocasião passei um mês em Macau a explorar e a fotografar a cidade, em especial o então recente aeroporto. Agora surgiu uma segunda oportunidade, na sequência da primeira residência artística promovida pela BABEL, apoiada pela Fundação Oriente, que me permitiu trabalhar e viver durante um mês no território. De facto, a estadia revelou-se muito interessante, porque pude testemunhar e captar com este regresso as mudanças “drásticas” que se deram ao nível da paisagem urbana. Estive há 18 anos em Macau e agora tenho a possibilidade de fazer uma comparação. Macau é uma cidade que se transformou imenso com os novos territórios ou com toda a zona do Cotai e dos Casinos que na altura não existia. Também acho que existem grandes mudanças sociais, politicas e que o capital tomou a liderança. De qualquer forma Macau sempre foi um sítio com uma energia e características muito especiais. Honestamente acho que o que me levou a Macau foi a curiosidade e interesse em perceber a interligação e as marcas entre a história do território e o passado Português.
MS: Tive oportunidade de ouvir recentemente uma declaração tua sobre o que é uma residência artística. Dizias: “Quando se faz uma residência artística a situação é sempre um pouco artificial, porque não é propriamente a tua vida, ou seja, é a tua vida, mas estás numa situação específica, isso faz com que estejas num grupo de artistas, que funciona quase como uma família, algumas vezes, outras vezes não, mas que te ajuda bastante a te integrares num certo circuito”. Tens feito várias residências em ocasiões diferentes da tua vida e em lugares diversos. Queres contar-me de que forma se aproximaram ou distanciaram umas das outras? Queres referir alguma que tenha sido particularmente importante para ti enquanto artista?
NC: Acho que já não faria uma declaração dessas, parece-me vinda de um jovem artista à procura da felicidade, mas continuo a pensar que as residências são sempre uma experiência específica. Que depende, obviamente, do local e das condições, mas também do momento específico de um certo percurso artístico. Ou seja, a conjugação entre o que procuras numa residência e o que consegues encontrar e produzir é a questão central e faz com que todas as residências sejam diferentes. Acho que com a idade agora sei melhor o que pretendo e perco menos tempo. Gostei mesmo muito da residência em Macau, de poder estar um mês a fotografar e a filmar, concentrado numa acção, produzir arte. O estímulo do desconhecido no meu trabalho é sempre importante e forte.
A residência que teve mais impacto na minha vida foi sem dúvida a da Fundação Gulbenkian no Künstlerhaus Bethanien em Berlim. Um ano de residência, de 2000 a 2001 que se prolongou por 7 anos de vida em Berlim. A bolsa e a residência foram fundamentais para o meu crescimento artístico, por poder ter, finalmente, as condições financeiras e de tempo para produzir e dedicar-me ao meu trabalho. Foi também um tempo em que consumi muita arte e filmes experimentais dos anos 70 e 80 o que teve um reflexo no que faço e como faço. As relações pessoais, entre a comunidade artística estrangeira de Berlim também foram muito importantes para um certo sentido de pertença e de comunhão (até penso que a minha declaração que tu recuperas na questão esteja relacionada com esse tempo e com a experiência alemã).
MS: No âmbito desta residência de um mês, a proposta que te foi dirigida foi a de um regresso ao FUTURELAND, projecto que desenvolveste entre 2008 e 2010, passando por Istambul, Cairo, Dubai, Los Angeles, Cidade do México, Xangai, Hong Kong, Jacarta, Bombaim. Mas depois há obras de 2015 e imagens também de Lisboa e de Berlim… Como concebes o Futureland? Como um projecto concluído no tempo e no espaço, ou como um projecto contínuo, sempre renovável, e capaz de constituir um arquivo de som, fotografia e imagem em movimento, que permite um regresso constante, explorando os ciclos do tempo e do espaço?
NC: Futureland foi um projecto que tinha como conceito inicial ser uma investigação artística sobre o impacto do crescimento urbano nas pessoas e no ambiente, assim como retratar a ligação entre arquitectura, espaço público e sociedade. Num primeiro momento construí um atlas visual, subjectivo mas também narrativo e documental das condições espaciais e arquitectónicas de nove cidades espalhadas por diferentes continentes. Existia também no catálogo algumas entrevistas que funcionavam como testemunhos de cada cidade. Num segundo momento, e por ocasião da exposição Demo:Polis na Akademie der Künste em Berlim em 2016, achei que fazia sentido adicionar duas cidades que me estavam mais próximas e nas quais tinha vivido, Berlim e Lisboa. Ou seja, para responder à tua pergunta, sim, Futureland é um projecto contínuo, que pode englobar mais cidades em diferentes momentos, estabelecendo novas relações entre tempos e locais. Penso que o projecto até ganha com a passagem do tempo, tornando-se assim, também, um documento do passado.
Futureland também tem um lado flexível podendo ser exibido de várias formas e em diferentes contextos.
MS: Como projecto videográfico, o Futureland (2008-2010) apresenta-se quase como uma megacidade contínua global, onde há imagens que se repetem: o excesso de construção, a sua falta de qualidade, a poluição, os transportes, a riqueza, os arranha-céus, o vidro, o aço, o betão, em contextos onde, por vezes, a natureza resiste devastada. Os movimentos oscilatórios da câmara deambulam ao sabor da necessidade de observar a cidade, a rua, a arquitectura, o interior, os habitantes e, por segundos, também as suas vozes. Sob a ironia do título do projecto, Futureland, entre o micro e o macro, tudo se cruza e sobrepõem, numa abordagem imprevisível, subjectiva, quase vertiginosa, uma espécie de caos no qual há sempre tensão.
De que forma se articula ou não esta proposta com o trabalho que agora desenvolveste em Macau, Hong Kong e Cantão?
NC: O trabalho que agora desenvolvi no âmbito desta residência deverá intitular-se The Blur City, ou seja, A Cidade Desfocada.
Neste momento de preparação da exposição de Maio de 2019 na Fundação Oriente em Macau, vou voltar a olhar para o material fotográfico de Futureland e mostrar algum material inédito. Espero que a relação entre a apresentação de Futureland e a nova exposição The Blur City revele relações desconhecidas entre locais e tempos.
O título da exposição, remete para a ideia de Macau ser uma cidade desfocada. Tem duas identidades em confronto, e afasta-se um pouco de uma identidade original. O trabalho deverá focar-se na convivência entre os diferentes mundos que habitam a cidade e a relação entre a natureza e o urbano na sua dualidade e contraste.
Vou destacar o confronto entre os diferentes momentos das construções que ocupam o território, as fotografias abordam em particular o facto de o novo e o velho estarem ao mesmo tempo muito próximos e muito distantes. Verifica-se simultaneamente uma certa decadência que se liga à passagem do tempo e da história, uma certa sujidade, que tem um valor que por vezes pode ser bastante estético e nostálgico. A cidade possibilita uma experiência quase distópica, não real, que transmite a sensação de uma identidade que não é muito óbvia. Sobretudo se considerarmos toda a zona do Cotai, com o “strip” dos casinos. Eu não podia deixar de destacar toda aquela artificialidade, todo o capitalismo e essa atracção pelo consumo, que me interessa em especial, até pela contraposição com outros locais que existem na cidade.
Aproveitei também a residência para fotografar edifícios que vão ser renovados ou destruídos, designadamente o Hotel Estoril, o prédio D. Leonor e outros espaços com marcas de arquitectura portuguesa. Para contrastar com a cidade velha, fotografei também edifícios e ambientes recentes, como o Grand Lisboa e o Morpheus, para ter alguns interiores de casinos e pormenores de luxo e dos espaços exclusivos. A exposição será um jogo de escalas entre o macro e o micro, entre o detalhe e a paisagem.
Em Hong Kong e Cantão tive experiências urbanas muito intensas, foi muito interessante ver como Cantão funciona à escala das infra-estruturas e como a sociedade chinesa se relaciona com isso. Em Hong Kong, a circulação de pessoas foi um dos aspectos que mais me impressionou, nomeadamente pela necessidade de vários tipos de passagens para se chegar aos locais numa cidade vertical em que se anda muito em plataformas. Há sempre aspectos que identificam cada uma destas cidades, mas há cada vez mais elementos comuns, como se fossem uma gigante cidade global.
Apesar de incluir nesta exposição trabalho das três cidades, era importante para mim que o trabalho não se reduzisse a Macau, ou a Hong Kong ou a Cantão. Nesse sentido, vou propor um novo olhar que se situará algures entre o trabalho que desenvolvi agora e o Futureland, …haverá fotografias de cidades que se inter-relacionam e que vão poder comparar-se, de uma forma, obviamente, artística.
O trabalho que agora desenvolvi para The Blur City diferencia-se do Futureland, sobretudo pela abordagem. Andei com a máquina na rua, sem grandes preparações e de forma muito livre, a explorar a pé os diferentes bairros. Neste momento, é este o material e apesar de estes serem os traços gerais daquilo que me proponho fazer, poderá sempre evoluir em direcções mais ou menos inesperadas.
MS: Duas cidades chinesas, Xangai e Hong Kong, tinham sido já abordadas. Queres falar-nos sobre a cidade Inglesa de Song Jiang ou da vila Vila Weimer em Ting? A “utopia” contemporânea chinesa tem-se consubstanciado na criação de cidades “distópicas” construídas à imagem de cidades europeias ou de outras cidades do mundo. Situação análoga verifica-se na arquitectura. Paradoxalmente, uma certa ausência de regulamentação aliada a uma abundância considerável de recursos tem oferecido a alguns arquitectos ocidentais a possibilidade de realizar na China experiências arquitectónicas impossíveis noutras geografias. Onde está o “espírito do lugar” - que a tua obra tem procurado captar - quando estas situações se verificam?
NC: O meu interesse sobre a cidade inglesa de “Song Jiang” e a Vila Weimer em Ting, perto de Shanghai, partiu de uma reacção inicial de espanto e de curiosidade. De tentar perceber como pode uma cópia de uma cidade europeia funcionar na China e qual é a sua função em termos sociais, para além de transmitirem artificialmente uma história aos locais onde são implementadas – e de serem um “produto”.
De qualquer forma, para responder à tua pergunta, o meu trabalho quase sempre parte do real e é transformado pela minha visão e forma de percepção. Espero conseguir respeitar, captar e transmitir esses diferentes “espíritos” e assim construir um Atlas geográfico e mental.
MS: Quase no extremo oposto situa-se a Symphony of the Unknown (2012-2014), uma instalação em vídeo composta por três filmes sincronizados, sobre três obras que consubstanciam utopias arquitectónicas dos anos do pós-guerra: o Barbican, em Londres (Reino Unido); Les Espaces d'Abraxas, em Noisy-le-Grand (França), e a Quinta da Malagueira, em Évora (Portugal). É uma versão poética do potencial utópico de cada era específica, com comentários falados a partir de uma selecção de excertos de texto de Barry Bergdoll, Florian Heilmeyer, José António Bandeirinha, Julia Albani e Stéphane Degoutin. De que falas, afinal, quando falas de utopia?
NC: A minha intenção inicial era, através de um processo de investigação, identificar algumas características espaciais “desconhecidas” e as possíveis relações dos três complexos arquitectónicos que referes. Primeiro escolhi os edifícios e só depois comecei a perceber o que os ligava. Ou seja, a questão da utopia construída, e é disso que eu falo na Sinfonia do Desconhecido, só surgiu num segundo momento.
São construções que contam uma ideia social, de lugar e de história. Quase como visões imaginárias de uma época relativamente recente, mas impossível de reproduzir actualmente. Cada espaço/complexo é um contentor de um tempo e de uma vontade que inexoravelmente passou. Algumas formas de construção, da utilização do betão, de escala, de relação com o exterior e com a cidade são comuns ao The Barbican e Les Espaces d´Abraxas, funcionando a Quinta de Malagueira como contraponto mais sensível e mediterrânico, mas todas irrepetíveis.
Entretanto, tenho vontade de voltar a fazer uma segunda Sinfonia, como outros projectos de um tempo mais recente, como por exemplo “A cidade da Cultura” do Peter Eisenman em Santiago de Compostela.
MS: Têm escrito que a tua obra se caracteriza por uma dimensão híbrida entre o artístico e o documental. Eu preferia dizer entre a ficção e o documento. Mas não será a ficção a mais exacta forma de documento? Num mundo no qual o discurso é produzido por aqueles que no fundo o podem pagar e manipular - sejam nações, corporações, ou instituições - o documento passou a ser ficção, e aquilo que anteriormente designávamos por ficção talvez seja o único documento possível. Que pensas sobre isto?
NC: Como te respondi numa questão anterior, o meu trabalho tem uma âncora no real, no respeito pelas características dos locais, mas acho que ganha uma outra dimensão nas relações que estabeleço entre imagens ou na forma como edito os meus vídeos. A edição, selecção e o dispositivo final da exposição podem criar essas ficções, mas transmitem sempre a minha forma de ver o mundo.
MS: Nuno Crespo, no seu texto Nomads, phantoms and images (2006), refere que o teu trabalho não é afinal apenas sobre a cidade, arquitectura, sobre o público e o privado, nem somente sobre o espaço ou o tempo… É sobre esse sujeito enterrado no mundo tal qual ele é e tal qual ele acontece, um ser que se dissolve nos caminhos que percorre ou nas coisas em que toca, para se encontrar consigo mesmo e descobrir a sua própria substancia. Afinal é um olhar interior que se ergue como monumento à experiência da condição da existência urbana nas grandes cidades: medo, suspense, terror, indiferença, insignificância, esmagamento, nostalgia, excesso, solidão, sufoco, asfixia – sentimentos que se transportam para onde quer que se vá e talvez até ao fim. É também por essa via que a experiência íntima, assim descrita, se torna colectiva e universal. Achas realmente que o contemporâneo se caracteriza por essa falta de horizonte tanto na vida como na arte?
NC: Acho que sim. Cada vez mais, no estado actual do mundo. O horizonte está lá e a aproximar-se. Faz-me lembrar uma frase do Zizek, em que diz que a luz ao fundo do túnel não é a saída mas um comboio a aproximar-se a alta velocidade. Neste momento estou a acabar de ler o Homo Deus do Yuval Noah Harari, um livro que também questiona o que o futuro da humanidade de uma forma provocativa e muito interessante.
MS: Poder-se-ia descrever a condição dessa experiência contemporânea da existência urbana só a partir do título das tuas obras: The Corridors (2002), Being anywhere (2003), Dark Forces (2004), Lost, Lost, Lost (2005), Unité D´Habitation (2006), In-Between (2007), News From Nowhere (2007), A Room With a View (2008 – 2012), Futureland (2010), O Passageiro (2011), Suspensão (2012), L´Année Dernière (2016). O que achas? Há aqui um outro nível da narrativa?
NC: Para ser honesto, nunca tinha pensado na sequência de títulos, mas tento sempre propor uma leitura do trabalho através do título. Ultimamente tenho usado muitos títulos em francês, mas acho que isso não quer dizer nada...
MS: Pessoalmente, as tuas cidades lembram-me as do Calvino: a memória (nas suas camadas de história e os ciclos do tempo), o desejo (sobretudo na série A Room With a View (2008 – 2012), que expõe o espaço impessoal, apesar de privado e íntimo, do quarto de hotel ou da cama, sobre a paisagem e a cidade), os símbolos (arquitectónicos/escultóricos), os olhos (a água, o espelho, o reflexo), os mortos (e arquitectura das suas residências), e o céu enquadrado por construções em urbes contínuas que revelam outras mais ocultas, povoadas por personagens sempre veladas ou vultos… Interrogo-me se será por acaso ou intencional… ou isto é fruto da minha própria ficção…
NC: Gosto da forma como consegues sucintamente captar o meu trabalho e penso que essas ligações não sejam nem por acaso nem intencionais, ou seja, são apenas o que eu produzo, as coisas que me interessam e o que eu tento transmitir.
MS: A ausência de palavras tuas sobre a matéria e o corpo da obra que produzes parece apontar para a necessidade de contrapor o silêncio radical, a concentração ou a contemplação ao ruído do mundo, ao mesmo tempo que potencia o carácter enigmático e misterioso de cada imagem. Nessa ausência da palavra, onde o tempo se imobiliza, e um espaço inesperado acontece, nasce da matéria visual uma forma de poesia, que é só tua. É por isso que Wolf Gunter Thiel se refere a ti como poeta e Nuno Crespo conclui “without using a single word, he says almost everything that has to be said”. Achas que os artistas visuais são mesmo “animais mudos", como dizia Vieira da Silva?
NC: Acho que o mais importante é o trabalho produzido e o que ele comunica e menos o discurso. Não sou necessariamente mudo em relação ao meu trabalho, e tenho dado entrevistas sobre os diferentes projectos, a maior parte, como esta, por escrito, mas tento reduzir essa exposição mediática e as possíveis explicações. No momento actual de grande comunicação, é importante algum silêncio. Regressando à tua questão, gostei quando o Wolf Gunter Thiel me referiu como um poeta visual e menos como um artista. Alterou um pouco a forma como me vejo, talvez tenha alguma razão, talvez as minhas acções sejam mais poéticas, misteriosas e livres ... acho que essa poesia existe no meu trabalho.
Para terminar, penso que existem animais mudos e animais falantes, os artistas são todos diferentes.