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TITA MARAVILHA
20/08/2024
“Existo desde o princípio de todas as coisas e estarei no final de todos os tempos”
Tita Maravilha é profunda. É de uma profundidade vinda de uma relação muito íntima com a vida, em que a formação e a experiência se tornam uma coisa só, por vezes difícil de compreender. É necessário sentir para se ouvir o que Tita Maravilha diz, ir para casa, depois de algumas vivências, consciência social e desprogramação, abrir espaço para encontros.
Vencedora da 5.ª edição do Prémio Revelação Ageas Teatro Nacional D. Maria II, a atriz, cantora, performer, palhaça e DJ, desenvolveu o Precárias - assumindo o lugar de artista, diretora e curadora - um festival de performance que se encontra na segunda edição e passou por Lisboa, Porto, Paris, Viseu e Montemor-o-Novo. Licenciada em Artes Cénicas pela Universidade de Brasília, possui em seu currículo os espetáculos As Três Irmãs inspirado pela obra de Anton Tchekhov, indicado como vencedor da 5.ª edição da Bolsa Amélia Rey Colaço; Exercício Para Performers Medíocres; Putinha submissa em processos de reciclagem; Exercício para um teatro pobre ou Carta para Grotowski.
O projeto de música eletrónica e performance Trypas Corassão, em colaboração com a artista Cigarra; a Escolinha da Performance; a Oficina de Coxinha; o filme Pirenopolynda - com direção partilhada com Izzi Vitório e Bruno Victor - filme exibido em espaços como o Festival Doclisboa e a Mostra de Cinema Goiano, estabelecido na relação umbilical de Tita com a cidade Pirenópolis, Goiás, desde 1993.
Percursos que reúnem a pesquisa que tem realizado sobre pobreza e precariedade, que mais do que um conceito “não é um tema fetiche”, mas sim um statement de “Poder ao povo pobre”.
Sobre o poder de um prato de comida na mesa e como tudo isso representa a urgência de políticas públicas e muitas outras questões que nos impedem de diferenciar a vida da arte. Perante um conceito elementar e necessário que alimenta vida e alma, a entrevista nutre-se num exercício de reflexão sobre o lema da segunda edição do Festival Precárias, “Que nunca nos falte comida na mesa, consciência de classe e arte”.
Por Filipa Bossuet
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FB: Putinha submissa em processos de reciclagem, Exercício para um teatro pobre ou Carta para Grotowski e o DJ Set Trypas Corassão são três projetos que apresentaste e que poderiam definir a tua produção artística sobre o conceito de precariedade. Esses trabalhos foram construídos num processo intencional para chegares a algum lado como, por exemplo, o Festival Precárias, ou foram acontecendo naturalmente e trouxeram-te àquilo que és hoje?
TM: Pensando nesses três trabalhos especificamente, eles estão absolutamente conectados com o início do Festival Precárias. Eles acontecem dentro da primeira programação (1.ª Edição do Festival Precárias), onde para além de programar três artistas: Lava, o duo Véu composto por Zaya e Yunne, e Keyla Brasil, o festival tem um olhar muito conectado com o meu trabalho enquanto performer, isso é uma coisa que eu nunca escondi. Eu tenho trazido solos e estreado solos dentro do meu próprio festival.
O conceito Precárias é um primeiro grito. Os meus outros também são outros gritos, mas aqui eu assumo como standard uma palavra muito forte, um conceito que eu considero arrojado. Nós estamos acostumados com outros nomes para festivais. Ele super especifica o que é na verdade um conceito super escorregadio: Não é Precárias, nós fomos precarizadas. Eu consigo dar a volta dentro do meu próprio conceito, por exemplo, quando eu escrevo Exercício para um teatro pobre ou Carta para Grotowski, voltando para a minha escola de teatro, aos clássicos da literatura e pensamento para teatro. Volto para dar uma resposta para Grotowski e Peter Brook que fez o prólogo.
Como trabalhar dentro desse conceito sabendo que os meus trabalhos são sempre reciclatórios – essa palavra nem existe – por exemplo, na Putinha submissa em processos de reciclagem eu trabalho sobre a precariedade, pobreza. Eu não sou uma artista onde você vai ver desperdício nos meus trabalhos, apesar de já ter trabalhado com desperdício em cena, por enquanto eu não consigo mais trabalhar com isso. Você não vai me ver jogando, desperdiçando 58 tomates. Os contrastes vão sendo muito éticos para mim e cada vez mais o meu trabalho vai ficando, de alguma forma, minimalista. Tenho trabalhado com umas bacias, uma arma de plástico, uns brinquedinhos de criança, assumindo, por exemplo - essa brincadeira que foi feita dentro do Precárias - que o lugar onde eu vou comprar material para o meu trabalho são as antigas chamadas lojas do chinês. Porque não alterar e chamar de loja do performer.
Já falei em outras entrevistas sobre um pensamento que me cruza: se eu tivesse dinheiro para descer um Ferrari do teto ou usar um original Versace, pode ser que vocês vejam Tita Maravilha nesse estado também, mas como a minha história foi realmente uma história de pobreza, não é um tema fetiche para mim, realmente é intrínseco. Feliz ou infelizmente é o que é, e porque não transformar esse estatuto em potência. Estou começando agora a ter acesso aos grandes e normativos espaços, agora tem os riders que eu estou pedindo, os cachets que eu estou pedindo - ainda tenho chances de melhorar.
Com esses trabalhos quero chegar a algum lugar? Acho que sim.
Em Trypas Corassão, na música Lusho, Elegância & Sofisticação, eu fico repetindo incansavelmente que pobreza é sofisticação ou pode vir a ser. Como recortar esse olhar e não deixar para o olhar normativo, cafona, desses ambientes que são tóxicos para pensar linguagem e estética?
Não queremos nos desassociar da relação financeira: me dá dinheiro e vamos ver o que eu vou continuar pensando com o que eu estou pensando agora. Estou criando statements sobre a pobreza, ao mesmo tempo que continuo pobre. Pretendo ver como isso se pode alinhar para um futuro de um pensamento crítico.
Como Tita Maravilha cresceria também com um lema cada vez menos Precárias? Porque o que a gente quer mesmo é se organizar. Talvez o lugar onde eu queira chegar é fazer um recorte de consciência de classe dentro do sistema da arte contemporânea. Eu sei que pareço finíssima porque eu lutei muito para me inserir socialmente, mas saibam que essa linguagem veio da pobreza e que ela recorta em potência.
FB: De que contexto te referes quando falas de uma “linguagem fina”?
TM: A curadoria do Precárias ajuda a visualizar: apenas artistas excelentes que cumprem as mesmas regras. O sistema demanda regras. O que eu estou dizendo é que nessa linguagem fina, é assumir o que temos de assumir, por exemplo, sinto que a minha linguagem avança um pouco. Eu faço o que eu quero - não vou mentir, nunca vendi a minha alma totalmente ao diabo, mas considero que, por exemplo, uma coisa que me fascina, que é um tesão para mim, é brincar de gente grande. Eu quero sentar na mesa do jantar. Nesse sentido não estou dizendo que tive que me adaptar ou vender a minha alma ao diabo, mas tive que fazer todas as negociações, por exemplo, nesse lugar garantir excelência. Posso parecer aquela garota absolutamente sem modéstia, mas é que realmente acho que tudo isso faz uma marcação de onde eu gosto que as coisas caminhem. O meu trabalho de teatro é seríssimo, apesar de eu estar lidando com humor, as minhas peças parecem improviso, você assiste duas vezes e entende que é absolutamente marcado, que a técnica está toda ali.
Não deixar a técnica e a tecnologia para quem está achando que está fazendo tudo certo. Nós vamos manter a nossa linguagem sem medo, avançando, falando dos nossos sonhos, propondo novas narrativas, mas nós sabemos que estamos a vender teatro, performance, que existe um mercado de arte. Então, de alguma forma, é só assumir que a precarização não nos tirou a excelência. Se mesmo desprovida eu aprendi a fazer arte, a partir do momento que você coloca a instrumentalização na minha mão, o meu trabalho vai potencializar. Poder ao povo pobre. Se eu faria com dois set lights, agora você está me dando a possibilidade de ter 10 leds, eu quero. Quero duas máquinas de fumaça.
FB: A tua formação de teatro e performance é clássica.
No mercado artístico há uma instrumentalização sobre os artistas. Existe um certo fascínio pela autenticidade, que se caracteriza, muitas vezes, sobre a ideia de conceito construído pelas vivências do próprio artista. A pobreza, vulnerabilidade, precariedade é construída intencionalmente e é estrutural. Perante a noção de tudo isso, como compreendes o lugar que ocupas de uma artista que tem ganho financiamentos, prémios, uma vez que a tua intelectualidade já existia muito antes disso?
TM: Os binarismos começam a me cansar depois de consideráveis 10 anos de carreira. Tanto o binarismo de género no qual pesquiso a vida e arte, quanto essa ideia do underground e mainstream: “conhecida como artista que veio do underground” sendo que eu continuo mobilizando esse meio. Uma das coisas que mais me interessa é levar de um lugar para o outro. Sinto que as pessoas nas curadorias têm muito interesse na estética marginal, mas eu tenho interesse em sair da pobreza também. É um marco muito importante para mim quando arte e vida não se separam: primeiro, eu não vou ceder totalmente, entregar as minhas preciosas subjetividades, ao mesmo tempo que compreendo um sistema. Enquanto ativista é sempre importante ressaltar que nós sabemos todas as interseccionalidades criminosas que nos fizeram ser expulsas. Agora trago comigo desejos de reivindicação das nossas linguagens e narrativas. O poder de sermos nós mesmas a contar nossas histórias. O poder de voltar a falar de amor, o prazer de poder voltar a falar de amor.
Se espera um determinado espaço dentro da margem e nisso nós não vamos ceder, porque a gente busca também os espaços institucionais. Do mesmo jeito que eu estou falando aqui dentro do espaço da arte, estou sempre tentando fazer o paralelo com as políticas públicas. O meu trabalho é essencialmente sobre presença. Não existe presença com travesti morta. É um trabalho individual, mas é sobre um processo coletivo, não tem como negar. É sobre também uma das coisas mais importantes que tenho reivindicado nos meus manifestos: Poder ao povo pobre, poder ao povo pobre.
Todas as vezes que um sistema de extrema-direita tencionar crescer, nós bateremos nossa botinha performativa invisível gritando: ESQUERDA, ESQUERDA, ESQUERDA! Não existe avanço se a democracia recua. Cada prémio que eu ganho, uma fadinha ganha vida outra vez…onde a palavra empoderamento começa a fazer um sentido real e as coisas deixam de ser conceptuais. Não posso ser a pessoa que fez sucesso falando de precariedade? Mas eu quero mesmo é um bom sofá.
Eu preciso ganhar dinheiro como gente grande ganha e aí tem essa luta que ela é com e contra o sistema.
FB: Esta ideia de se criar conceitos pode ser muito viciante, porque eles fazem muito sentido para o artista, ganham forma com o interesse das pessoas na reflexão que fazem, mas também nos financiamentos e outros apoios que se começa a ganhar. Como fica a tua relação com a tua criatividade? Surgem-te perguntas como, por exemplo, será que agora só irei produzir sobre a precariedade ou as vulnerabilidades da vida? É que não se trata só de seres uma artista no contexto português, mas a tua identidade enquanto mulher trans traz camadas muito profundas de vulnerabilidades construídas estruturalmente. Como fazer com que a arte não se torne - como já refletiste noutras entrevistas - em mais uma relação tóxica?
TM: Não vou mentir que às vezes coloco em questão: Será que preciso de estar bem para criar? Eu não vou entrar no vício dessa ideia de que artista precisa de sofrer. Eu trabalho também os meus traumas, acho um clichê delicioso trabalhar trauma em arte, acho uma coisa eterna também, mas não está no trauma e não se findará no trauma. A criatividade é algo que consigo entender que move.
Pensando em arte e vida: já não sei mais quem empurra quem. Quando um lado precisa de um empurrãozinho, o outro empurra. Eu me tornei a pessoa que eu sempre sonhei: a mulher que eu sonhei, a travesti que eu sonhei e a artista que eu sonhei. É um check gostoso ser o que se é. Agora eu estou tendo oportunidades a partir de convites, mas não só – não sou uma pessoa que começa a carreira a partir de convites, me auto intitulo uma diva dos editais – entendendo que quando as oportunidades se abrem eu vou atrás delas para conseguir o meu financiamento.
É uma coisa que tem de ser financiada pelo governo, eu estou fazendo arte para o povo. É importante para mim sempre estar cada vez mais crescendo no ponto financeiro, mas que o dinheiro não me confunda. Relembrar sempre que existe um fundamento. Pode ser que nós artistas às vezes nos esqueçamos, mas é importante sempre refazer a pergunta: Porque faço e para quem faço?
A criatividade move o desejo, o desejo move o dinheiro, o dinheiro move a movimentação da vida e isso vira um ciclo. Eu sinto que tenho material vivo para trabalhar, quero muito fazer peças de amor. As primeiras peças que fiz em Portugal eram sobre amor. Quando criei Trypas Corassão – a partir da bolsa do Self-mistake – um espetáculo em dois atos, foi uma bomba muito forte. Foi quando eu e Cigarra nos consagramos uma dupla. É uma peça com muita revolta, duas horas e meia de barulho, mas tinha uma cena que criei quando me apercebi que a peça estava muito dura. Disse à Cigarra: “Amiga, essa peça está muito dura. Vou parar e vou fumar um cigarro olhando para as pessoas. Eu quero que seja uma peça sobre amor, onde eu paro para mandar beijinhos para as pessoas e mostro que ainda existe algum tipo de esperança”.
Gostaria de alguma forma que no trabalho de arte e vida, uma pudesse ajudar a outra. Que tenha força vital. Não quero fazer peça morta, não tenho interesse nenhum em fazer arte de umbigo, apesar do meu trabalho ser absolutamente sobre mim - está sempre muito conectado. Sempre tem uma reparação de devolução, que é realmente o pensamento de nunca me esquecer porque faço e para quem faço. Por mim e por quem possa se emocionar. Às vezes crio coisas e falo: Belíssimo!
Como? Quem são essas pessoas? Quase nesse lugar que eu sei que os espetáculos que eu gosto, os shows, os circos que eu já fui, se uma coisa despertou e a faísca do coração abriu e se saiu um pouquinho melhor, é sobre isso que estou falando. Eu não busco uma intelectualidade extrema, me interessa conseguir conectar com as subjetividades e a emoção da massa. Isso gera o meu material criativo.
Eu não estou fazendo peças para as minhas tias assistirem, mas estou sempre pensando: E se? Gostaria muito que elas vissem esse meu espetáculo. Fiz muita questão que minha mãe e minha avó assistissem o meu filme Pirenopolynda, para entender também como isso está mesclado e pode ser um serviço pedagógico, político. Isso me dá força para ter criatividade, gerar material inventivo que possa fazer algum sentido, gerar alguma emoção. O convite é realmente para quem tem o mínimo de interesse de se emocionar comigo.
FB: Vieste para Portugal em dois momentos. No primeiro momento, em 2008, estudaste Teatro na Escola Profissional de Teatro de Cascais e regressaste ao Brasil. No segundo momento, em 2018, começaste a trabalhar, inicialmente na restauração e depois exclusivamente como artista. O contexto artístico português é apresentado como um mercado em que as pessoas têm grande dificuldade em sustentarem-se apenas como artistas. Trabalhar maioritariamente a partir de editais é uma realidade vivenciada aos 40/50 anos, principalmente, quando se fala de pessoas que fazem parte das ditas minorias e/ou comunidades marginalizadas. Como tem sido para ti identificares-te uma diva dos editais?
TM: É importante ressaltar que eu ainda não domino, eu estou à mercê deles. Só que como se coloca uma disputa política, mesmo que pouco e sucateado, sabendo que não existe espaço para todos, alguns espaços se abrem. Sempre foi uma assombração a DGArtes quando abre. É uma relação tóxica. Tive que desenvolver um grupo de aliadas muito fortes, sozinha jamais teria conseguido. Tenho um grupo muito forte de amigas e trabalhadoras da arte que me ajudam a fazer isso possível. Um conceito como o Precárias Festival de Performance vai ganhando uma outra dimensão e não avança sem esses apoios institucionais, porque o desejo e a pulsão criativa está, mas não só disso se ergue os nossos legados, castelos de conhecimento. Vamos enfrentar. Eu vou na força do ódio. Transformar a revolta em desejo de mudança. Isso se torna extremamente cansativo e é um lugar onde eu não gostaria de estar, mas não entendo como seria possível de outra forma. Eu preciso estar em correspondência com os espaços que abrem possibilidades. É um aprendizado estar sempre atenta, sendo uma artista freelancer existem momentos em que tenho trabalhos engatilhados e quando isso não acontece o que é que eu faço? Criei a Oficina de Coxinha, a Escolinha da Performance – uma metodologia onde eu posso dar workshops e tenho o merchandising do Festival Precárias que fazem a manutenção do aluguer, das compras e da beauty, porque é caro ser travesti.
Quando eu vim para Portugal ainda estava dentro de dois universos, trabalhando na restauração e apostando em coisas com a Ágatha (Cigarra), fazendo festas, sempre tencionando um lugar que possa vir a ser uma estabilização. Agora, eu e Cigarra conseguimos ter as coisas mais organizadas porque somos uma associação cultural. Queremos ser organizadas dentro do sistema.
Eu e Cigarra temos a certeza que não trabalhamos só por dinheiro. Nós temos algo que pulsa vivo, mas não vamos trabalhar sem dinheiro para quem tem dinheiro.
Como instrumentalizar a base para entender como o sistema funciona e conseguirmos ter armas para lutar dentro desse sistema? Não acho que seja fácil. A “diva dos editais” é mais uma brincadeira para o facto de estar batalhando pelos financiamentos, por uma potência menos precária em que eu possa fazer com dignidade, poder cobrar o meu preço. Saber o seu preço às vezes é muito difícil porque nós acabamos cedendo muito fácil às negociações que já estão estabelecidas.
O meu processo é caótico, mas existe um desejo de tornar possível o sonho e infelizmente eu acho que tem que ver com essa negociação, que está nas mãos de poucos. O sonho está sempre em intermédio com a situação financeira. Muita gente me pergunta: o que te move a criar? Dinheiro. É uma brincadeirinha conceitual, mas só para não me esquecer que ele também me dá tesão, também me dá impulso criativo.
Uma boa proposta na mesa, vai me dar o prazer de trabalhar melhor, mais saudável, de constatar mais uma vez que está sim na mesa o desejo de crescimento e de prosperidade financeira.
Venhamos e convenhamos, vai ser do jeito que der, vou tentar. Estou cheia de cabelos brancos, vou na força do ódio, o burnout já veio algumas vezes, em contraponto faço terapias e tenho espiritualidade.
Nunca ninguém disse que seria fácil, já me avisaram que era difícil.
Do mesmo jeito que eu falo: “beleza como vingança”, existe uma reinserção nos lugares de poder e de prestígio, que também me dão tesão na vingança. Estar inserida me interessa. Quando falo que o Precárias é um espaço para compartilhar o futuro, é gostoso ter um olhar dentro do meu próprio festival que possibilite uma alteração do olhar, para não cair nos mesmos golpes que eu às vezes caí noutros festivais. Me dá prazer ser a pessoa que mobiliza o dinheiro, assumindo que é uma relação absolutamente importante e intrínseca.
FB: Como foi perspetivar o futuro na 2.ª edição do Precárias que aconteceu em Lisboa, Porto, Paris, Viseu, Montemor-o-Novo com o lema “Que nunca nos falte comida na mesa, consciência de classe e arte”?
TM: Vou começar com o ditado popular que é “um olho no peixe, outro no gato”, ou seja, fazendo um pensando no próximo, porque a vida não pára.
É muito doido, mas gostoso perceber que nós já nos organizamos para a terceira edição. No meio da segunda edição descobrimos que fomos aprovadas mais uma vez, então teremos a terceira edição no próximo ano. Já estamos mobilizando o crescimento para a próxima edição.
Tudo se fez numa euforia de algum conforto de entender no crescimento natural de que o que estamos fazendo tem sido positivo e necessário. Gostoso perceber esse crescimento natural com todas essas coisas intrínsecas do qual falei, da prosperidade financeira, os espaços que se abrem para as nossas subjetividades e objetividades. Digo aqui objetividades porque o Precárias recorta algumas identidades, tem de facto um interesse em estar com um olho, não só, mas essencialmente nas histórias de mulheridades, pessoas racializadas, pessoas queer, trans, não-binárias. Não só, tão completamente, mas de alguma forma recortamos, não para assumir as nossas mazelas e nos colocar como precárias, mas sim, reclamar a nossa precarização e buscar espaços de conforto dentro da arte contemporânea.
O Precárias assentou como uma luva, é um facto. Abrimos um panorama com muitas amigas minhas na programação. Perceber quem está do meu lado, que as minhas referências, as minhas artistas favoritas estão vivas. Reclamar as nossas identidades enquanto potências vivas, parar de trabalhar com estéticas e linguagens mortas.
Onde está essa autenticidade do novo, de pessoas que não têm tanto espaço de programação. O Precárias tem esse desejo de confundir para acertar, trazer o underground para dentro do mainstream, trazer a festa para dentro do teatro e levar o teatro para o bar.
É um festival queer? Nós estamos aqui recortando esse olhar, o convite é para quem queira se emocionar connosco e essa frase se torna muito objetiva. Não super protegendo as nossas políticas e de alguma forma como se quer e como se pede, compartilhando sem entregar todos os nossos tesouros, mas compartilhar para perceber o futuro. Isso de facto aconteceu porque os nossos parceiros são muito diferentes, eu tenho parceiros institucionais como tenho lugares da noite, como espaços menores de arte, o nosso interesse muito forte com as performances de rua.
FB: Um dos momentos da 2.ª edição do Festival Precárias foi uma residência no Pan Café, em Paris.
TM: O convite de Paris foi para buscar o que eu quisesse nessa pesquisa. Eu estava numa periferia em Paris que se chama Saint-Denis. O início do meu trabalho foi conhecer a cidade, comprar o que eu quisesse, ir ao Louvre… eu estava numa pesquisa quase íntima. Fiz um cruzamento do Precárias com a Escolinha da Performance – um projeto de workshops de 3 dias.
Primeiro, a barreira da língua, as pessoas não necessariamente falam inglês. O meu inglês é um bad english, mas foi feita uma comunicação. A minha pesquisa e o meu trabalho foram realizados na rua, com os objetos que a rua dá. Eu estava trabalhando num lugar que as pessoas diziam que era perigoso, mas eu não sentia esse perigo – tinha um recorte ali de algum preconceito racial.
O meu interesse era trabalhar na rua e que as pessoas pudessem ver o meu corpo não como uma ameaça, mas sim como composição. Foi muito proveitoso. A primeira coisa que fiz foi desfilar com o PF [Prato Feito], o bitoque, que é o meu lema e o cartaz do Precárias. Em Paris eu fiz muito essa lógica de explicar para as pessoas o porquê de estar usando o lema da comida, do pratinho feito, para trazer acessibilidade. É o básico, todo mundo quer um pratinho cheio, que encha o bucho, que alimente a alma. Em Paris as pessoas tinham muito interesse em entender a minha linguagem. O workshop foi muito interessante, poder entregar um pouquinho da minha experiência de pedagogia, pensar e explicar o que é o festival e fazer com o que tem – criar arte a partir de uma ideia low budget, do que já está connosco e quem tiver oportunidade de trabalhar com o máximo, ótimo. A minha ideia na Escolinha da Performance é aproveitar o que existe de melhor em cada pessoa. Um dos exercícios é o Museu da Vida – um pequeno material artístico construído só com recolha de lixo da rua, como construir um pensamento voltado no que já existe, no que já está proporcionado pela cidade, com o mínimo. O objetivo é brincar de curador de arte, eu peço para darem um nome à obra e ainda mando vir champanhe para abrir a exposição e brindar. Brincar dessa efemeridade, brincar de materiais e de linguagens. Tive a oportunidade de ter intérpretes comigo para aproveitar o que de melhor cada pessoa tem. Claro que é sempre importante descobrir coisas novas, sair da zona de conforto, mas acho que cada pessoa traz na sua subjetividade coisas boas para desenvolver.
O que se materializou mesmo foi a apresentação que fiz na rua e chamei de Festival des Petites Images ou Précaire. O meu elemento era uma cadeira. Num lugar de trabalhar a semi-nudez na rua, entendendo quais os limites, porque cheguei numa percepção de que o meu corpo nu não é uma nudez conceitual e sim, o meu figurino mais caro. Esse corpo que vai para a rua é o mais caro que existe. É o figurino que ninguém poderá usar, ele é o que eu andarei desfilando pelo mundo.
FB: A programação em Viseu com a Carolina Varela, Herlander e Cigarra, na festa de encerramento das atividades na cidade, tinha o objetivo também de ser uma celebração do 25 de abril no dia 24.
TM: Havia o desejo de celebrar a liberdade, ressaltar que fascismo nunca mais, desenhar as nossas subjetividades em forma de combate, ao mesmo tempo que, numa noite muito doce as pessoas que foram programadas são pessoas do meu coração, são artistas que eu admiro muito. Infelizmente, eu não estava em Viseu porque foi o dia que eu ganhei o prémio (Prémio Revelação Ageas Teatro Nacional D. Maria II) no Teatro São Luíz.
O meu coração pulsando com duas coisas muito importantes acontecendo ao mesmo tempo. Existiu um recorte sobre um 25 de abril com novas portugalidades e linguagens que são de afeto, por exemplo, o trabalho da Carolina Varela é sobre o descanso, por isso, pensar que liberdade é descanso. O Herlander e a Cigarra fazem música, fazem performance num estado de liberdade, de ter o seu trabalho como um avanço de si mesmo. Foi uma noite em família.
FB: Em meio a todos os momentos que marcaram a 2.ª edição do festival, com a presença de vários artistas, a Mesa Farta, uma “performance de comilança e vinho”, que aconteceu em Montemor-o-Novo, poderá ser um dos momentos que melhor define do que se trata este projeto?
TM: É um lugar dentro da performance que me interessa muito. Depois de evoluir, pensar juntes, alimentar corpo e alma. Invadir os espaços contemporâneos de performance e teatro com estados mais sensíveis e abrindo desprogramações para que a gente possa estar e conviver, pode ser super potente. Tudo isso depois de uma surra de performance ao longo da programação.
O que aconteceu ali é de uma simplicidade e você vê como libera sorrisos. Eu cozinhei um dia antes, fiz cachorro quente, brigadeiro, para todo o mundo, e havia vinho. Essa é uma ideia minha e da produção constituída por Amandi Silva e Margot Silva. Colocámos uma comilança no meio da praça e esperámos que a coisa acontecesse. Apareceram pessoas para comer connosco. É um convite num espaço aberto e porque não pensar esse lugar como performance. Um lugar onde não existe diferenciação do que é a vida e a arte. Há todo uma visualidade que criámos: a performance era sobre chegarmos, cantarmos parabéns para o Precárias e cortar o bolo. É o nosso bebé. A nossa performance foi ouvir música juntas, comer em coletivo, dançar e beber. São verbos que não parecem fazer muito parte do sistema da arte.
É uma performance que proporciona a partir dessa mesa farta, a ideia de que nunca nos falte, de que a mesa é sempre um lugar que a gente se encontra para alimentar vida e alma e fazer isso para se nutrir como exercício, dentro da arte contemporânea. Um espaço de desprogramação que abre espaço para o encontro.
Depois tivemos a roda de conversa mediada pelo ROD, sobre desejos de futuro, sonhos.
FB: Como é que a comida surgiu na tua produção artística?
TM: Eu acho que é uma coisa que está se erguendo cada vez mais com o Precárias. Uma relação direta com a ideia: “Não faço arte se não estiver alimentada”. Eu preciso dessa força, quase como um símbolo de extinção da pobreza, que o estado se organize para que nós consigamos minimamente ter acesso ao básico.
É pesado pensar que muita gente ainda vive na fome da cultura. Do mesmo jeito que eu penso numa democratização sobre resolver a fome no mundo, resolver muitas situações que são drásticas, a fome de transformação, como voltar a conseguir não só comer, como nutrir.
Que a arte possa ser, de alguma forma, nutritiva.
FB: A comida surge como uma analogia a uma nutrição que transcende o alimento em si?
TM: Exatamente. Primeiro, que nunca nos falte, porque não existe artista com fome. Do mesmo jeito que falo da comida, eu falo das várias formas de nutrição. Quando eu assumo que o Precárias é um pratinho de uma comida bem gostosa - arroz, feijão, bifinho, uma outra opção para vegetarianes, uma boa saladinha, batata frita.
Se eu paro para pensar quem são as figuras que me mostraram o que é o amor, concluo que são as mulheres da minha família - todas elas cozinham. Sempre fui educada a lidar com o que tem, mas desfazer fartura: fazer prosperidade, lutar pelo pão de cada dia. Tenho dito repetidamente que todo o meu trabalho em arte é dedicado à minha mãe, Telma Moreira Farinha. Nesse momento ela tem uma lanchonete e trabalha todos os dias vendendo salgados. O salgado dela é maravilhoso. Quando eu trago a receita de coxinha da minha mãe para a arte, não é por fetiche estético, é a coxinha que ela vende todos os dias. Caso me falte eu também tenho esses truques.
A Oficina de Coxinha foi criada nos meses em que eu fiquei sem trabalho e comecei a vender coxinha na internet, só que a logística de fazer em casa e entregar dava muito trabalho. Decidi que iria virar um material artístico: fazer uma oficina no Precárias. Foi uma coisa mágica, uma brincadeira absolutamente pedagógica com todas as reflexões sobre a história desse alimento. Aquilo fica parecendo uma aula de belas artes com todo mundo mexendo na massa e no final todas celebramos comendo o material que fizemos em arte. É uma brincadeira académica porque eu trago toda uma perspetiva de organização e metodologia, ao mesmo tempo que é uma receita de coxinha da minha mãe, para comer e que se aprende para a vida.
Eu sempre fiquei na dúvida, me perguntando: Tita, no que você é boa? Hoje eu consigo assumir que sou boa no que faço, minha arte me contempla e aquece o meu coração, e sou uma cozinheira de mão cheia, não vou mentir. É nesse lugar onde eu consigo também demonstrar afeto. Importante reforçar que sou uma artista anticolonial, que todos esses desejos surgem de uma história absolutamente mesclada com pobreza, com todas as suas interseccionalidades, principalmente do colonialismo e sobre a urgência de alimento para o povo.
De alguma forma, as minhas referências estão todas no Brasil, mas eu tenho trabalhado em Portugal, então que o povo português possa se emocionar, comer da minha comida e se nutrir do meu pensamento. Compartilhar para alimentar. Aqui o PF (Prato feito) é o bitoque, ele tem tradução literal.
FB: Para além da economia circular que engloba um conjunto de noções que tens aplicado, tais como, utilizar o mínimo necessário, pensar o consumo e acesso numa perspetiva coletiva, que outras reflexões dentro do conceito de pobreza e precariedade tens tido?
TM: O espetáculo Exercício para um teatro pobre ou Carta para Grotowski é um desejo estético mas, ao mesmo tempo, eu ameaço um determinado estatuto da arte contemporânea quando eu começo o meu espetáculo varrendo a sala de trabalho. São reflexões que a gente vai tendo enquanto intérprete, passando em grandes espaços: “Quem limpa a sua bagunça performativa? Para onde vão os restos do seu trabalho?” São políticas do dia-a-dia. Você fala bom dia para o porteiro?
Tenho gostado de pensar a presença como algo essencial, que é muito difícil de ser manipulada porque é o mais intrínseco que existe em mim, demanda muita manutenção.
Sobrou um monte de restos de outros espetáculos e de cenas icónicas que eu criei. O espetáculo Putinha submissa em processos de reciclagem é um espetáculo construído a partir desses elementos. É a forma que criei de fazer o aproveitamento da minha própria obra, para não precisar criar uma nova e gerar desperdício, ao mesmo tempo que, a obra cria uma nova roupagem. Como eu posso reciclar o meu próprio trabalho para que não existam sobras nem desperdícios? Isso tem uma camada conceitual enorme.
Sobre isso comecei a falar das ações afirmativas. Limpe a sua própria casa, limpe o seu espaço de trabalho, recicle a sua obra, repense para quem e porquê.
O universo da arte contemporânea está muito urgentista, pede sempre trabalhos inéditos, quando a obra ainda não teve tempo de ser apresentada em outros locais, não houve espaço para fazer a digestão do trabalho, cagar ele, de fazer um ciclo completo.
FB: Num podcast disseste que um dos processos de te entenderes pobre aconteceu quando perguntaste à tua mãe se eram pobres, ela respondeu que sim. Como foi entenderes-te e começares a estudar a pobreza?
TM: Eu só tomo plena consciência da precariedade aqui em Portugal, num estado de emigração. É um recorte muito importante para relacionar o meu trabalho, a importância do prémio Prémio Revelação Ageas Teatro Nacional D. Maria II. Eu nunca deixo de ser brasileira. O livro Não vão nos matar agora da Jota Mombaça me ajuda muito. Os meus trabalhos são apesar do Brasil, apesar de Portugal, ao mesmo tempo que esse recorte vai para esses dois lugares. Algumas realidades sempre foram intrínsecas, agora se transforma num statement com o Precárias – um nome que se assume. Mas se eu for parar para pensar, está aqui uma colega de trabalho e amiga que veio de Berlim que se chama Era Jaja Rolim, é uma pessoa super importante para mim. Nós temos mais de 10 anos de companheirismo e começámos a fazer arte na mesma época em Brasília, quando eu estudava teatro e ela estudava dança.
Sempre trabalhámos com plástico, com lixo (risos). Numa euforia queer, loucas para viabilizar as nossas identidades na rua com o material que tínhamos, a peruca que havia, o sapato que pedimos emprestado à nossa amiga. Foi assim que começámos tudo, claro que foi sempre pela falta de acesso às coisas, mas como ela diz: “Se viver da arte é ter sucesso, eu estou fodida”. Compartilhamos muito a mesma linguagem de que o tempo vai passando, a gente se profissionalizou, estamos em espaços artísticos, mas a gente gosta é da fuleragem – de acionar a frase “dê ao povo o que é do povo”. Eu consigo pensar desde o início os recortes das nossas identidades queer, do contacto com as amigas pretas que é com elas que aprendo, num universo de travestis. Como fomos muito jogadas para a margem, sempre estivemos muito juntinhas. Putas artistas precárias marginalizadas - pobrezinhas, mas quando uma sobe, sobem todas.
Em Portugal se torna um statement com a presença da imigrante que quer fazer a diferença, que quer vingar a história de sua mãe e de uma ancestralidade de um povo forçado a trabalhar e agora podendo dentro do meu trabalho renegociar os Estados com as minhas aliadas. No espetáculo As Três Irmãs se fortifica muito essa tríade (travesti, migrante, pobre). Quem fecha e lacra em volta disso é a artista. A artista tem chance de fazer diferente.
O meu trabalho reivindica as identidades trans como potência, reivindica a pobreza como potência e reivindica o lugar do povo imigrante que constrói um país. Juntas somos mais fortes. Não quero que o meu trabalho seja só e necessariamente, mas eu acho que será para sempre uma reivindicação de potência.
FB: Existe uma estética muito demarcada na comunidade queer em que o corpo, a roupa extravagante, a purpurina, por exemplo, está muito presente. São elementos identitários e artísticos que para muitos é identificado como reles, básico.
TM: É uma delícia ser queer, mas não me interessa ser queer sem ter consciência de classe. De alguma forma tudo está intercalado. A minha estética vem muito num lugar - citando outras artistas como a Acauã Bandida Shereya, que encerrou a programação da segunda edição do Precárias com a performance Stripteaser Gambiarra Dreams – sobre ressaltar a potência dessa criança viada que construiu o seu legado. Falo por uma experiência própria, sem querer abranger uma comunidade inteira.
Me lembro dessa criança que o primeiro cabelo era uma toalha amarrada na cabeça, que brincava de fazer roupa com o que tinha, por exemplo, um lençol. Sempre brinquei de amarração.
Esse desenho da minha transgeneridade também foi feito junto com essa identidade de criança viada pobre. Esse legado de tudo o que me dou hoje enquanto luxo, vai de presente para a minha criança queer. Tudo o que nos faltou celebraremos em abundância. Nós nos desenhamos e desenhamos nossa história. Vimos nossas avós e nossas mães e outras realidades.
Eu tenho esse desejo de reverberar e abençoar a minha criança travesti que brincou com a toalha no cabelo e fez do lençol da minha mãe o meu vestido Versace. Sou eu, reajustando com o meu passado perceber, por exemplo, que eu nunca fui homem. Nunca fui homem. Objetivamente se existem palavras que possam definir, é que eu fui uma criança viada, travesti, uma criança queer.
O Precárias do próximo ano, vem pensando na criança e adolescência queer, precisamos pensar quem cuida. Eu tenho um privilégio grande de ter a minha família comigo na minha transição – as minhas avós, a minha mãe, as minhas figuras maternas. Não estou dizendo que foi de mão beijada, mas elas me aceitam e me assumem para eu conseguir fazer esse caminho de ter paz com essa criança, de conseguir trazê-la para arte e brincar, considero que os meus espetáculos são um sonho realizado nesse sentido de uma criança que brinca sem medo.
Eu sou uma performer destemida. O meu trabalho está assumido de euforia, talvez seja essa euforia queer.
Euforia pobre que grita com pouco, mas no qual trago sempre as delícias e as dores de ser um corpo dissidente. A importância de voltar a brincar, celebrar, não ter medo e fazer um carinho nessa criança magoada pelo sistema. Falar para a minha criança: “Você é potente, bonita, brincante. Sim, você pode ser alguém na vida”. Esse ‘ser alguém na vida’ sempre foi um trauma muito grande, é um desejo das famílias pobres. Alguém eu já sou, mas o que é ser alguém?
Ganhar o Prémio Revelação é um conforto para essa criança queer brincante machucada. Ela ia falar: “Gata, tu faz duas peças de teatro com o teu peitão na cara do povo. Faz o que quer essa menina, né?” O poder de não viver só dentro das regras. O género é performativo, só muito depois é que fui entender isso.
FB: O que tens descoberto sobre ti nesse processo todo?
TM: Descubro que estou tentando ser feliz, que tenho pulsão de vida. Descubro que o mundo é cada vez mais difícil e existe uma tristeza forte em mim que gosta de ser renegociada. Nessa pulsão de vida não gosto de me mover sozinha, prefiro me mover em coletivo, ao mesmo tempo que protejo as minhas subjetividades. Tenho aprendido que a arte não passa por cima da vida, elas confluem. Numa ideia de tempo espiralar não quero chegar a lugar algum. Existo desde o princípio de todas as coisas e estarei no final de todos os tempos. Adoraria cada vez mais negociar o meu amor. Eu tenho muito amor para dar e existe um desejo de troca gigantesca com esse amor. Quero trabalhar cada vez mais o amor, a importância de ser amada. Por muito tempo pensei que o amor é privilégio de alguns e isso hoje consigo quebrar um pouquinho e entender que pelo menos buscaremos o amor, sermos amadas, vivermos a complexidade do amor. Consigo afirmar que não tolerarei nenhum tipo de violência contra os nossos corpos. Se não houver carinho, não me interessa. Os espaços que estou renegociando e construindo, são espaços que vão renegociar o amor. Olho para as minhas feridas e tento encará-las como sabedoria. Agradeço estar viva, estar pulsante e peço proteção para não enlouquecer nesse mundo maluco. Que eu possa estar em composição com a vida no seu estado mais bruto.
Tita Maravilha termina a conversa com a Artecapital com a mesma fala que encerra o seu discurso na entrega do Prémio Revelação Ageas Teatro Nacional D. Maria II. Cita a sua amiga Ieda:
“Toda a natureza fica feliz com a presença das travestis”
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