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ABDIAS NASCIMENTO E O MUSEU DE ARTE NEGRA
27/02/2022
UM MUSEU DENTRO DE UM MUSEU. ABDIAS NASCIMENTO, TUNGA E O MUSEU DE ARTE NEGRA EM INHOTIM
Poeta, escritor, dramaturgo, curador, artista plástico, professor universitário, pan-africanista e parlamentar, Abdias Nascimento (Brasil, 1914-2011) teve uma longa e marcante trajetória no ativismo e na luta contra o racismo. No meio do fulgor modernista do Brasil de meados do século XX, que exaltava a miscigenação na formação da sociedade, Nascimento buscou romper com a representação eurocêntrica da cultura negra, principalmente nos museus administrados por brancos.
Este profundo desejo de reivindicação materializa-se em 1950 com a fundação do Museu de Arte Negra (MAN), concebido pelo Teatro Experimental do Negro (TEN) e do qual Nascimento assumiria a direção. Tanto o artista quanto o TEN trabalhavam desde a década de 1940 com a proposta de valorizar socialmente os negros e a cultura afro-brasileira através da arte e da educação, imprimindo uma nova estética e estilo dramatúrgico e abordando o racismo nas suas dimensões estética e institucional.
Em 1950, no Rio de Janeiro, o TEN organiza o I Congresso do Negro Brasileiro, no qual foram abordadas a "estética da negritude" e as formas de visibilidade e valorização da produção dos artistas negros e de quem se ocupava da representação da cultura negra nos seus trabalhos. Nesta instância, inédita no Brasil, foi aprovada uma resolução para a criação de um museu de arte negra sem distinção de género, escola ou tendência estética. O TEN assumiu o projeto.
A exposição inaugural da coleção do Museu de Arte Negra, que tinha como tema o Cristo Negro, realizou-se no emblemático Maio de 68, no Museu da Imagem e do Som, no Rio de Janeiro, 80 anos depois da abolição da escravatura. Mais tarde, na fase mais dura da ditadura civil-militar no Brasil, Abdias Nascimento ganha uma bolsa de intercâmbio cultural para os Estados Unidos, onde visitou a sede dos Panteras Negras em Oakland e participou em manifestações contra o apartheid na África do Sul e contra a guerra no Vietnam.
Quando o regime militar fechou o Congresso brasileiro e promulgou a Lei Institucional nº 5, em 1968, Nascimento, alvo de várias investigações policiais-militares, foi impedido de regressar ao seu país. Foi nos EUA que fez a sua primeira exposição, na Harlem Art Gallery, e onde continuou a expor extensivamente até ao seu regresso ao Brasil em 1981.
A coleção do Museu de Arte Negra é composta por pinturas, desenhos, gravuras, fotografias e esculturas reunidas no período de 1950 a 1968, de artistas como o escultor José Heitor e os pintores Cleoo e Sebastião Januário. Além disso, a colecção inclui obras reunidas por Abdias Nascimento durante o seu exílio, bem como após o seu regresso, graças aos contactos e intercâmbios que teve com artistas internacionais.
Chega 2021 e o Instituto Inhotim e o IPEAFRO, Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros - fundado por Abdias Nascimento, hoje ao cuidado do seu legado – homenageiam-no dez anos após a sua morte com um projeto expositivo de longa duração, que se estenderá de dezembro de 2021 a dezembro de 2023. Trata-se de uma ação inédita na qual o Inhotim, o maior museu a céu aberto de arte contemporânea do mundo - ancorado numa extensa área selvagem em Brumandinho (Estado de Minas Gerais) -, albergará outro museu dentro do seu espaço por um período de dois anos.
O projeto será dividido em quatro atos com duração aproximada de cinco meses cada, com curadoria a partir de investigações sobre a história e acervo do MAN e seus possíveis diálogos com artistas e obras do acervo do Inhotim. O primeiro ato, com curadoria do IPEAFRO e do Inhotim, estabelece uma conversa atravessada por cosmogonias, tradições e ancestralidades entre as obras de Abdias Nascimento, Tunga e a coleção do MAN.
Um dos artistas mais emblemáticos da Coleção Inhotim, Tunga (1952-2016) foi amigo íntimo de Abdias Nascimento. Era filho de Gerardo Mello Mourão, poeta que, na década de 1930, fez parte da Santa Hermandad Orquídea ao lado de Nascimento e outros escritores. Foi o pai de Tunga quem também indicou Nascimento ao Prémio Nobel da Paz pela primeira vez, em 1978 (a segunda vez foi em 2010).
Poucos dias depois de uma visita guiada à exposição e à sua cuidada montagem, preparei-me para conversar por e-mail com os curadores deste primeiro ato, Douglas de Freitas e Deri Andrade, do Inhotim, e Julio Menezes (IPEAFRO) e Elisa Larkin Nascimento, diretora do IPEAFRO e viúva do artista. Nesse intercâmbio mergulhamos nas histórias de afetos, cumplicidades, lutas e conquistas que vêm tecendo o MAN, o IPEAFRO, suas agências e projetos, como este que será implantado no Inhotim por dois anos.
Por Alejandra Villasmil
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Alejandra Villasmil: Conte-nos sobre o desenvolvimento desse projeto, que será desdobrado em vários capítulos de dezembro de 2021 a 2023. Como é feita a curadoria conjunta entre Inhotim e IPEAFRO? Por que este lugar para apresentar o Museu de Arte Negra?
Julio Menezes/IPEAFRO: Antes de tudo, está sendo um grande aprendizado para ambos os lados. É a primeira vez que Inhotim compartilha a curadoria da exposição com alguma organização/ pessoa. Nesse sentido, o IPEAFRO vem trabalhando desde o início do projeto não só nas questões curatoriais, mas no projeto como um todo. Dá mais trabalho, porém o resultado é melhor. A curadoria parte dessa premissa, de ser pensada em vários corações. Apresentar o Museu de Arte Negra no Inhotim é a consolidação de trabalho iniciado há 40 anos pelo IPEAFRO, que dá continuidade ao legado de Abdias Nascimento e das organizações que ele fundou, entre elas o MAN, fundado em 1950. A Galeria Mata é a primeira galeria do Inhotim, representa a sua essência, seu berço.
AV: O fato de Inhotim estar inserido na natureza selvagem, por ser um espaço de arte ao ar livre e ao mesmo tempo um jardim botânico, tem uma conotação muito mística e espiritual, entendendo a natureza como algo sagrado para Tunga e Abdias. Como isso determina as decisões curatoriais e a experiência do visitante?
Julio Menezes / IPEAFRO: Inhotim opera numa região cercada de empresas de mineração. A região fica na cidade de Brumadinho (MG), que foi palco de uma tragédia ambiental sem precedentes em janeiro de 2019, resultado do rompimento da barragem de rejeitos de minério da Mina do Córrego do Feijão. Dito isto, como Jardim Botânico Reserva Particular de Patrimônio Natural (RPPN), podemos dizer que Inhotim é como um oásis. Seu jardim botânico traz a essência da pintura de Abdias Nascimento que traz o tema dos orixás: o ar, o fogo, o vento e a terra e o respeito às forças da natureza. Estar nesse oásis faz todo o sentido não só para a obra de Nascimento mas também para Tunga. Inhotim é mais que um local de exposição, é um espaço para meditação, é um espaço para cura. Pensar a curadoria dessa perspectiva é o nosso desafio. E qual cura pretendemos com esse projeto? Tratar o racismo institucional, o racismo estrutural. É disso que falam a obra de Abdias Nascimento que chega com forte diálogo com Tunga, um humanista que teve uma relação próxima e de afeto com Abdias Nascimento por toda uma vida.
Douglas de Freitas / Instituto Inhotim: Pensamos em ocupar a galeria Mata porque ela fica na área mais antiga do Inhotim. É a primeira galeria temporária do Instituto, localizada ao lado da galeria True Rouge do Tunga, primeira galeria dedicada a um artista no Inhotim. Da galeria Mata, através de uma abertura de vidro, é possível ver o True Rouge. Além da relação com a natureza e, consequentemente, com os Orixás, que são a própria natureza, pensamos também na relação entre os artistas que se materializaria naquele espaço, além da questão simbólica de ocupar as galerias que fundaram a história do Inhotim.
AV: Ao tentar traçar relações entre a obra de Tunga e Abdias, inevitavelmente chegamos às raízes africanas, ou afro-brasileiras. Penso em como os dois artistas abraçaram essa ideia de transformação da matéria, e outras simbologias que se referem aos ciclos da vida, à própria morte. Você poderia se aprofundar nas ligações conceituais e visuais de ambos os artistas presentes nesta exposição, e como foram trabalhados a partir da curadoria?
Douglas de Freitas / Instituto Inhotim: É interessante pensar nas mitologias que cada trabalho envolve, cada um ao seu modo. Tunga cria a mitologia do seu trabalho, da transformação das matérias, dos ciclos, e muitas outras, e Abdias, abordando as religiões de matrizes africanas, com os orixás e outros elementos simbólicos da religião que passam a ter função estética na obra, para além da sua função espiritual da religião. Em certos pontos, essas mitologias se tocam na exposição. Um exemplo é Simbiose Africana nº 3 de Abdias, que apresenta a cobra que abocanha o próprio rabo, e Toro de Tunga, composta de anéis de ferro e ouro. Tanto a cobra que abocanha o rabo, conhecida também como Ouroboros, quanto o toro, representam tradicionalmente o conceito de eternidade, de ciclo eterno.
AV: Como foi pensada a mediação da exposição nesse sentido, a fim de estabelecer uma conexão reflexiva tanto com os turistas estrangeiros que visitam Inhotim quanto com as comunidades locais de Belo Horizonte e Brumadinho?
Deri Andrade / Instituto Inhotim: O Inhotim possui uma área de Educativo preparada para atender diversos públicos. Os/as educadores/as vêm pesquisando a produção artística e a atuação de Abdias Nascimento nas mais diversas frentes, na ideia de propor mais desdobramentos desse diálogo iniciado com o Primeiro Ato. Uma das intenções da exposição é buscar aproximar o público desse legado de Abdias. Além disso, temos em curso um projeto de aproximação, também, com as comunidades do entorno.
AV: De uma forma geral, a instituição-museu é vista pela grande maioria do público como um espaço sagrado, mas no sentido de inatingível. É visto como um lugar criado para a fruição das elites, dos brancos. Como quebrar essa barreira com essa exposição, para que sua mensagem chegue ao maior número de pessoas possível?
Julio Menezes / IPEAFRO: Essa é nossa preocupação central: como levar a população marginal, periférica, pobre, que no Brasil é majoritariamente negra, ao espaço museu? Por ocasião da abertura da exposição, em diálogo com lideranças locais, observamos, claro, que uma das questões primeiras é facilitar o acesso. Por isso, oferecemos transporte para que as pessoas pudessem estar conosco nesse primeiro momento. Isso foi um movimento importante porque mostra que essa construção precisa partir de um diálogo constante com o território no qual este projeto está sendo desenvolvido. Para além da questão do transporte, que é um ponto básico, estamos dialogando com pessoas, organizações e governo para que possamos fazer da Galeria Mata no Inhotim um quilombo, o Quilombo Museu de Arte Negra. Quilombo eram territórios de negros livres e forajidos do sistema mercantil escravocrata que forjou o Brasil. O maior e mais conhecido deles ganhou o nome de seu líder, Quilombo dos Palmares, localizado na Serra da Barriga, em Alagoas, nordeste brasileiro. Possibilitar o acesso e colocar a obra de Abdias Nascimento e do Museu de Arte Negra em contato com os descedentes de negros escravizados na região de Brumadinho será uma vitória. Nessa construção, é central focar no público das escolas (principalmente as públicas). É lá que está o futuro da nação. Inhotim tem um programa educativo que dialoga com a curadoria da exposição pensando ações para 2022. Para além disso, recentemente, Elisa Larkin Nascimento participou de um encontro com lideranças do movimento negro na região no qual surgiram demandas que estamos articulando para acontecer.
AV: MAN possui um acervo composto por obras doadas por artistas negros movidos pela urgência de reparar e dar visibilidade às comunidades negras do Brasil. MAN é um projeto também baseado no afeto. A coleção cobre o período de 1950 a 1968. O que acontece a seguir? Eles ainda estão recebendo doações ou expandindo a coleção de alguma forma?
Julio Menezes / IPEAFRO: Naquela época, nos anos 1950 e 1960, não se pensava nessa perspectiva reparatória, de dar visibilidade, isso não era uma questão. Naquele momento, Abdias Nascimento e muitos outros artistas e pensadores negros estavam tentando desconstruir uma mentira que vinha sendo construída há decadas e muito bem estruturada pelas elites brasileiras de que havia por aqui uma democracia racial, onde negros e brancos viviam em plena harmonia e em condições de igualdade. Essa narrativa histórica ficou conhecida como o mito da democracia racial. Por dezenas de anos, isso serviu para silenciar os protextos e as reivindicações dos negros. O MAN surge nesse contexto e, claro, da rede de relacionamento de Abdias Nascimento e do Teatro Experimental do Negro, organização que primeiro assumiu a responsabilidade de levar o projeto MAN à frente. Alfredo Volpi, Ana Bella Geiger, Tunga, Loio Pérsio, Iedamaria e tantos outros nomes da arte abraçaram o projeto, doando obras e manifestando-se publicamente em jornais da época, em especial o extinto Correio da Manhã. O apoio institucional ao projeto do MAN chega ao seu auge em 1968, inclusive, com anuência internacional. Do Chile, por exemplo, a Escola e o Instituto de Arquitetura da Universidade Católica de Valparaíso, em carta assinada por Arturo Baeza, diretor dessa Escola, assim como de Alberto Cruz, diretor da Escola de Arquitetura da mesma cidade chilena, manifestaram apoio. Em dezembro de 1968, no entanto, a Ditadura Militar brasileira baixou o Ato Institucional número 5 (AI-5). Esse ato fechou o Congresso Nacional e os partidos políticos, promoveu a perseguição e assassinato de opositores. Abdias Nascimento, que se encontrava em um intercâmbio cultural pela América Central e os Estados Unidos, não pode retornar ao Brasil sob o risco de morte e tortura. Permaneceu no exílio por 13 anos, participou de congressos internacionais, foi professor na Universidade do Estado de Nova York e na Universidade de Ifé, na Nigéria. Vale o registro de que a coleção Museu de Arte Negra, entre 1968 – 1981, perdeu parte de seu acervo devido a ausência de Abdias Nascimento do país. Por outro lado, foi justamente no exílio que Abdias Nascimento produziu a maior parte de sua obra. A partir de 1981, quando Abdias Nascimento volta ao Brasil acompanhado de Elisa Larkin Nascimento, eles fundam o IPEAFRO – que dá continuidade ao projeto MAN. De lá pra cá, o IPEAFRO realiza exposições e faz a manutenção do acervo. Realizou exposições em diferentes lugares – por exemplo, no Centro Cultural Justiça Federal em 2011 e na Favela da Maré, no Rio de Janeiro, em 2019. Recentemente, o IPEAFRO recebeu uma doação de Marcelo Pollota e da Galeria Mapa do desenho do artista Rubem Valentim, cujo trabalho se destaca na arte de temática negro-africana. Trata-se de um retrato informal do cenógrafo Tomás Santa Rosa, colaborador do Teatro Experimental do Negro (TEN) e pioneiro da cenografia moderna no Brasil. A obra dialoga com outro retrato de Santa Rosa, já pertencente a o acervo do MAN, que foi feito por Augusto Rodrigues em 1966. Sim, estamos abertos às doações, principalmente para os trabalhos feitos a partir de 1950 até os dias atuais.
Elisa Larkin Nascimento / IPEAFRO: A coleção cobre um período bem maior que 1950 a 1968. Durante seu afastamento do país durante o regime militar, e depois de seu retorno, Abdias Nascimento deu continuidade ao projeto. Manteve contatos e interlocuções com artistas negros e africanos. Vários deles doaram obras à coleção. A exposição no Inhotim inclui uma colagem de Romaré Bearden (EUA) e uma coleção de gravuras de LeRoy Clarke (Trinidad), criadas e doadas na década de 1970. LeRoi Callwell Johnson (EUA) doou duas pinturas em 2004. Elas estão na mostra A memória é uma invenção no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-Rio), que inclui cerca de 135 peças da coleção MAN. Várias peças ali expostas foram criadas e doadas após 1968, como por exemplo as de Bakari, Melvyn Edwards, e Babatunde Folayemi. Continuamos recebendo obras, sim. Houve doações em 2019 e 2020. Mas essa não é um foco da atividade do IPEAFRO. Nosso trabalho é mais voltado à promoção de ações voltadas à política de ensino da cultura e história africana, afro-brasileira e da Diáspora e das relações étnico-raciais. Com base no acervo, idealizamos e realizamos o Fórum Educação Afirmativa Sankofa e a Oficina Ação Educativa Sankofa. Quando possível, realizamos exposição artística do acervo como parte dessa atividade, o que propicia um ambiente visualmente rica para o desenvolvimento de atividades educativas.
AV: Na apresentação à imprensa, foi enfatizada a importância da reparação às populações negras ou descendentes dos povos escravizados no Brasil. Em tempos de reivindicação dos direitos da comunidade negra e de outras “categorias raciais” ou identidade em todo o mundo, e ao mesmo tempo em um Brasil cujo governo exerce práticas discriminatórias contra as minorias, esta mostra é uma afirmação poderosa, embora esteja inserida em um espaço de arte que poderíamos chamar de privilegiado. Qual é o impacto do legado da MAN neste contexto? O que você espera para o futuro deste projeto a longo prazo?
Julio Menezes / IPEAFRO: O MAN é a própria cura a um sistema historicamente excludente, racista, heteronormativo, branco. Quando realizamos um projeto como esse, com tamanha repercussão e possibilidades de avançarmos com pautas claras para o movimento negro que são trazidas pelo IPEAFRO, naturalmente trazemos na bagagem uma tradição ancestral que nos remete a uma história de soberbia e construção em liberdade. O MAN reflete um histórico de resistência e luta em solo brasileiro que reflete nomes como Luiza Mahin, Zumbi dos Palmares, Abdias Nascimento, Marielle Franco e milhares de pessoas que ousaram se levantar contra um sistema moedor de corpos negros. O MAN usa a estética e a arte para denunciar para o mundo o que se passa no Brasil com os afrodesncentes. O impacto que almejamos é que tanto Inhotim quanto IPEAFRO estajeam institucionalmente mais fortes para lidar com o racismo estrutural e pensar o futuro das artes, como preconizou Abdias Nascimento em artigo publicado em 1968 na revista Galeria de Arte Moderna. No texto, Nascimento propõe uma arte negra como uma visão de futuro possivel para os museus. Nesse sentido, este projeto é a materialização do sonho de seu fundador. Quem sabe esse é o começo de uma nova página dessa história, no qual os espaços hegemônicos do sistema global da arte sejam definitivamente descolonizados. Reafirmamos: o MAN é a própria cura e a possibilidade de futuro para as artes, uma vez que, desde a sua concepção em 1950, propõe um museu decolonial no qual todos os grupos étnicos, escolas e tendências se vejam representados.
AV: Quanto ao acervo do MAN, fico com a impressão de que não contém obras audiovisuais, vídeos ou performances, meios que geralmente são utilizados na arte da denúncia, político-social. Da mesma forma, as artistas negras não estão muito presentes. Você pode nos contar sobre isso?
Julio Menezes / IPEAFRO: Vale explicar que o acervo MAN integra o acervo IPEAFRO, que, sem dúvida, traz uma série de realizações audiovisuais. No canal do IPEAFRO no Youtube é possível ver uma série delas, entre filmes, documentários e performances. Quanto à representatividade da mulher, de fato, é um ponto de atenção. Historicamente, Abdias Nascimento e as organizações que ele fundou – Teatro Experimental do Negro (1944 – 1968), o jornal Quilombo (1948 – 1950), o Museu de Arte Negra (1950 – atual) e o próprio IPEAFRO, a partir de 1981, trouxeram a questão da mulher negra para o centro da atuação. Nas páginas do jornal Quilombo, por exemplo, é possível observar a mulher negra com destaque. Na coluna “Fala Mulher”, de Maria Nascimento, era a voz e vez da mulher em tempos remotos. No TEN, artistas importantes para o Brasil foram formadas pela companhia de teatro, tais quais Ruth de Souza e Léa Garcia. Ambas tiveram protagonismo nos palcos e nas decisões do grupo.
Elisa Larkin Nascimento: A quase totalidade das obras da coleção são pinturas, gravuras, desenhos e esculturas. O acervo do IPEAFRO contém itens audiovisuais, vídeos e filmes documentários. Alguns desses incluem cenas de atuação artística – leitura de poesias ou cenas de peças dramáticas, por exemplo. Mas não recebemos, ainda, nenhuma obra que usa o audiovisual como técnica artística. Temos, sim, vários vídeos de performances de poesia do escritor Milsoul Santos.
AV: Você pode nos contar um pouco sobre os próximos capítulos deste projeto?
Deri Andrade / Instituto Inhotim: A coleção do Museu de Arte Negra apresenta uma vasta produção de artistas brasileiros e estrangeiros, com um elo de conexão que se dá, primeiramente, das relações de afetos que Abdias Nascimento teve com esses artistas, uma vez que as obras foram doadas a partir desses contatos. Neste Primeiro Ato do projeto, temos um pequena mostra que revela parte desse acervo. Para os próximos capítulos, aprofundaremos essa pesquisa, desvendando esse acervo a partir dos possíveis diálogos proporcionados dessa produção artística.
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Alejandra Villasmil
Nasce em Maracaibo (Venezuela) em 1972. É Directora e Fundadora da revista chilena Artishock. Licenciada em Comunicação Social, ramo audiovisual, pela Universidade Católica Andrés Bello (Caracas, Venezuela, 1994), com formação em arte contemporânea (teoria e práctica) em escolas de Nova Iorque (1997-2007). Em Nova Iorque trabalhou como correspondente sénior para a revista Arte al Día International (2004-2007) e como correspondente de Cultura da agência espanhola de noticias EFE (2002-2007). No Chile foi responsável de imprensa e difusão no Museo de Artes Visuales (MAVI), Galería Gabriela Mistral, Galería Moro e Bienal de Video y Artes Mediales.
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Este artigo foi originalmente publicado na revista Artishock (Chile) com quem a Artecapital desenvolve uma colaboração com o objectivo de aproximar os leitores portugueses de temas da América Latina e viceversa.