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PAULO CUNHA E SILVA
Paulo Cunha e Silva é um personagem híbrido da cultura portuguesa, interessado no pensamento contemporâneo, na investigação transdisciplinar e em diversas áreas da criação artística (dança, artes visuais, teatro, arquitectura, literatura). Foi programador do Porto 2001 Capital Europeia da Cultura e foi director do Instituto das Artes do Ministério da Cultura. É Médico de formação e Professor de Pensamento Contemporâneo na Universidade do Porto. Está a residir em Roma, cidade para onde foi nomeado Conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal.
Por Inês Moreira
Fevereiro de 2009
P: Em 2008 perfez-se 10 anos do arranque do projecto Porto 2001, Capital Europeia da Cultura. Sei que esses foram anos de grande pesquisa e entusiasmo que se materializaram num ambicioso programa transversal em que interligou o Pensamento Contemporâneo, a literatura e projectos transversais com criadores contemporâneos. O Porto 2001 foi talvez o projecto maior e com mais visibilidade pública que desenvolveu enquanto programador. O seu projecto transdisciplinar trouxe-lhe também um grande mediatismo público. Pode fazer um balanço desse período, agora à distância?
R: No plano pessoal o balanço é excelente, pois tratou-se do projecto mais ambicioso, extenso e profundo em que estive envolvido, em que gozei de grande liberdade programática e criativa. Não é inocente esta associação. Sempre entendi a programação como criação e não só como gestão de recursos. Sei que esta posição me tem proporcionado alguma desconfiança junto de alguns meios mais ortodoxos. Mas esta é a minha posição. A programação é uma curadoria, ou se quiser uma metacuradoria, porque articula curadorias alheias, mas deve ela própria aproximar-se do nível de decisão subcuratorial, chamemos-lhe assim. Ou seja ela deve ser horizontal, transversal, mas também vertical. O programador deve ser simultaneamente um generalista e um especialista. Sei que é difícil articular escalas diferentes e que isso é objecto de desconfiança. Mas ao fim e ao cabo essa é a minha especialidade, “uma cartografia fractal”, ou seja desenhar mapas, nos quais se possa caminhar ao longo das escalas (uma espécie de google earth) e não mapas “chatos” (em todos os sentidos).
P: E um balanço dessa época? Relativamente à cidade do Porto, a escassez actual de meios e de programação cultural proposta pela cidade é conhecida… Uma das prioridades da actual presidência da Câmara do Porto foi abolir todo o investimento na Cultura, privatizando equipamentos e desinvestindo da programação. Passados 7 anos ainda se vive uma ressaca do efeito 2001, catalisada pela política municipal. Como avalia o momento actual?
R: O empobrecimento cultural da cidade é nítido. Visível a olho nu. E o Porto 2001 tinha sido também uma forma de se mostrar que a cultura é um factor de coesão social. É pena que uma Câmara que faz, legitimamente, do argumento social o seu principal nível de intervenção, não tenha percebido isso. Não tenha entendido que a cultura é um elo que vincula as pessoas à cidade por um lado, e as coloca fora da cidade, por outro lado. Quero dizer, no sentido cosmopolita. A cultura é um importante elemento de ligação, mas é também um elemento de desligação, na medida em que nos mostra que há mais mundos para lá do nosso mundo. E se no primeiro movimento, o da ligação, a cultura reafirma um sentido de pertença, no segundo movimento, o da desligação, a cultura reafirma um sentido de respeito pela diferença. Estes dois movimentos criam simultaneamente uma sociedade mais solidária e mais tolerante. Penso que qualquer programa político contemporâneo não pode deixar de passar por aqui. E o que se vê hoje é o resultado de uma política míope em relação a esta urgência, da cidade simultaneamente solidária e cosmopolita. Temos uma cidade do Porto deslaçada e fechada sobre si.
P: Em 2003 assumiu a direcção do novo Instituto das Artes do Ministério da Cultura, extinto e agora designado Direcção-Geral das Artes. A sua nomeação prendeu-se com a transversalidade do pensamento e com a interligação que propunha das diferentes áreas de criação artística. Considera que uma política cultural contemporânea poderá reflectir e aproximar-se das necessidades dos fenómenos dinâmicos e dos tecidos flexíveis da criação?
R: Penso que sim, que uma política cultural ou outra deve ter uma dimensão antecipatória. Deve sondar, deve perceber. E nesse sentido próagir e não só reagir. As políticas culturais não podem só preocupar-se com o património e esperar que a criação surja por geração espontânea. Uma política cultural contemporânea deve conter nela própria uma sede de contemporâneo e deve criar os mecanismos e os dispositivos que facilitem essa revelação. Considero uma política cultural contemporânea como uma cultura de tecidos, em sentido biológico. Precisa de ser nutrida, mas é também um território experimental. Por vezes pensa-se que a política deve ser só um lugar de confirmação, uma espécie de selo patrimonial, mas pelo contrário, deve ser um lugar de experimentação.
P: No Instituto das Artes (IA) teve a possibilidade de experimentar a relação entre o plano das ideias, as propostas reais e as possibilidades políticas/legais da aplicação no terreno. Como vê as diversas velocidades e que estratégias utilizou na implementação de projectos?
R: Confesso uma certa decepção no embate com a realidade do tempo político. É por um lado mais lento do que imaginava, e por outro lado tem razões que a razão desconhece. Muitas vezes a política, seguramente a má, não é a arte de fazer, mas a arte de fazer de conta que se faz. E quando se está empenhado num projecto, se tem uma estratégia, uma ideia, e se verifica que quem deve decidir não o faz em nome de um suposto bem comum, mas em nome de uma gestão de interesses perversa, o sentimento é de grande decepção. Senti isso muitas vezes. Inocência minha, porventura. Mas quero continuar a acreditar que idealmente pensamento e acção se devem encontrar, e que a política deve fornecer os instrumentos para que este encontro seja mais profícuo. Uma política cultural deverá ser uma estratégia para uma acção. Um pensamento para uma acção. Nesta perspectiva quando o pensamento político passa a acção política, falando não só de cultura, o mais fascinante será a procura dos meios facilitadores desta passagem. Na circunstância de termos que articular duas realidades que se deslocam a velocidades diferentes, a solução continua a ser mecânica: desacelerar a mais rápida, ou acelerar a mais lenta. Ou de uma forma mais prosaica, ter paciência. É de facto uma estratégia que usei bastante: tive muita paciência.
P: Como vê a evolução da política cultural portuguesa na última década? E como vê os ecos públicos da programação cultural?
P: O meu novo estatuto diplomático não me permite fazer avaliações de políticas concretas. Posso falar de política cultural genericamente, mas não de políticas específicas, concretizadas ou em concretização. Todavia gostaria de sinalizar a circunstância de Portugal ter um sistema bastante eficaz de apoio público à criação cultural. Realidade que em Itália, por exemplo, não existe. E de esse apoio, com a minha passagem pelo Instituto das Artes se ter estendido de uma forma sistemática às artes visuais, também à arquitectura e ao design, algo que com o anterior Instituto de Arte Contemporânea (IAC) não existia. Os apoios eram intermitentes e muitas vezes discricionários. A esta fecundidade do apoio público, correspondeu naturalmente uma maior versatilidade e diversidade programática. Hoje vemos um conjunto de iniciativas culturais que surgem muito para lá das instituições habituais, há uma espécie de febre programática que tem uma particular expressão ao nível local, há uma nova vontade de fazer. A política local começa a entender a cultura como uma mediador fundamental na relação da cidade com o cidadão.
P: Como avalia, passados 3 anos do Instituto das Artes e 7 anos do Porto 2001, as ligações entre o pensamento contemporâneo, e o peso da administração da cultura? É possível uma administração crítica? Em que medida foi transformado por estas experiências?
R: No limite todas as experiências são positivas. Não quero fazer um lapso freudiano, como se estivesse a querer dizer que a passagem pelo Instituto das Artes me traumatizou. Pelo contrário, enriqueceu-me bastante e, sobretudo, por estranho que pareça, naquilo que poderia ser mais negativo. Nomeadamente a questão que já abordámos da dificuldade em articular o tempo da acção política, com o tempo da produção cultural, e já agora, com o tempo da maturação conceptual. Estes três tempos são os vértices de um triângulo a que poderíamos chamar acontecimento ou, para usar uma expressão que não suporto, evento.
Poderia dizer que o Porto 2001 foi um espaço de grande liberdade no sentido de levar até ao limite uma ideia de cidade criativa e o Instituto das Artes foi um back to reality, com todas as vantagens que os banhos de realidade também têm. Acho que há espaço, e que terá que haver cada vez mais, para uma administração crítica, ou melhor, autocrítica. A administração precisa muito de auto(nomia) não pode ficar sempre dependente de todos os suspiros e sussurros políticos.
P: Há uma linha autoral identificável nos projectos de comissariado que desenvolveu tanto no plano da Teoria (conferências, seminários e cursos na Fundação de Serralves) como nos comissariados de artes visuais (“Anatomias Contemporâneas”, “Depósito”), que se pode definir pela experimentação, pela atracção pelo complexo, por uma multiplicidade de olhares e perspectivas, para além das fronteiras disciplinares. Gostava que referisse como avalia o presente momento da cultura portuguesa, no que se refere à experimentação de conteúdos e formatos. Vê evolução neste período?
R: Infelizmente acho que se caminha em direcção a uma certa normalização cultural. A partir do momento em que toda a gente quer ser diferente verificamos que todos querem ser igualmente diferentes. E no fim o que aparece é uma tremenda monotonia. Os mais alternativos foram engolidos pela margem mais tradicional. E temos dificuldade em identificar de facto uma diferença fecunda, ou seja, uma diferença que faça diferença. A esta normalização não será também alheia a ideia de rede tão cara aos novos agentes culturais. A rede é importante para a troca, para a partilha, mas a rede deve ser sempre uma rede crítica, de malha flexível. De contrário toda a gente apanha o mesmo peixe. É o que temo que se possa passar com a rede de cineteatros por exemplo, em que corremos o risco de por todo país a ver o mesmo. Aí a figura do programador, deve ser entendida como a de um desnormalizador, e não como aquele que vai às compras onde toda a gente vai.
P: Recentemente aceitou uma nova mudança de rota, foi nomeado Conselheiro Cultural de Portugal na Embaixada de Portugal em Roma, um lugar para-diplomático. Estando há pouco tempo no lugar, como vê as possibilidades de um lugar diplomático e que projecto cultural deseja vir a desenvolver?
R: O meu lugar não é para-diplomático, é mesmo diplomático... pelo menos obedeço ao mesmo estatuto. Portugal é um país que sempre investiu muito pouco na sua imagem externa e sobretudo na importância da cultura como produtor de imagem. E no efeito multiplicador que um investimento desta natureza tem. É confrangedor comparar o nosso investimento, não digo com grandes países, mas com o de países da dimensão do nosso. Sei que há vontade de mudar este estado de coisas. O actual Ministro dos Negócios Estrangeiros já apresentou a promoção cultural externa de Portugal como uma das prioridades, e o novo embaixador em Roma, Fernando d’ Oliveira Neves, tem no argumento cultural uma das suas apostas num país simultaneamente tão próximo e distante de Portugal. Por outro lado, o Ministro da Cultura não tem regateado esforços no sentido de mediar esta aproximação. Com isto, só posso dizer que me sinto confortável e entre pessoas que falam a mesmo língua.
De resto, a diplomacia cultural, mais uma vez enquanto conceito e acção sempre foi um universo que me interessou e sobre o qual já escrevi. Quanto a projectos, devo dizer que entendo o papel do conselheiro cultural muito mais como o de um mediador do que o de um programador. O meu papel é tentar perceber de que forma Portugal cabe, culturalmente, dentro de Itália e propor mecanismos que agilizem este match.
P: Itália alberga os principais eventos mundiais de cultura contemporânea nas diversas bienais de Veneza (cinema, arte, arquitectura). Como recebeu a notícia da representação da dupla João Maria Gusmão+Pedro Paiva e Natxo Checa na próxima bienal? E que outros espaços para a internacionalização da cultura portuguesa existem em Itália?
R: Recebi muito bem a notícia da Representação Portuguesa em Veneza. Não podemos esquecer também a importante questão da língua e da universidade, que é um dos vínculos mais fortes entre culturas e que estamos empenhados em reforçar. Portugal não tem equipamentos culturais relevantes em Itália, de maneira que o trabalho terá que ser muito mais diplomático e persuasivo do que se tivesse um pequenos espaço e um orçamento para programar. O meu papel deverá ser sobretudo o de um mediador, como disse. Não quero ser um caixeiro viajante da cultura portuguesa.
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