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JOSÉ BRAGANÇA DE MIRANDA
22/11/2023
Conversámos com José Bragança de Miranda na Reitoria da Universidade Lusófona por ocasião do lançamento do seu último livro Constelações: Ensaios sobre Cultura e Técnica, publicado na Documenta. Reitor desde 2022 da maior Universidade Privada do País, desenhou em 2000 uma Faculdade, a Escola de Comunicação, Arquitectura, Artes e Tecnologias da Informação (ECATI), de que foi director, um projecto agregador das Tecnologias, Comunicação e Cultura Contemporânea, sempre com a Arte por horizonte. Investigador, Ensaísta, Professor Catedrático, formou-se em Sociologia pelo ISCTE em 1982. Doutorado em Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa, com agregação em Teoria da Cultura, Bragança de Miranda é autor de numerosos ensaios sendo também conhecido por intervenções públicas em diversas áreas da cultura. Das suas publicações destacam-se a Analítica da Actualidade (1994), Política e Modernidade (1997), Traços: Ensaios de Crítica da Cultura (1998), Teoria da Cultura (2002) ou Queda Sem Fim (2006), a que se junta agora Constelações (2023). O seu pensamento fresco e acutilante, a par do enérgico espírito crítico que o caracteriza, exerceu e exerce uma influência activa junto de intelectuais e artistas, muitos seus antigos alunos, que lhe recordam aulas contagiantes e mobilizadoras.
Por Catarina Patrício
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Catarina Patrício: O seu livro “Constelações: Ensaios sobre Cultura e Técnica na Contemporaneidade”, recentemente publicado pela Documenta, reúne oito textos publicados nos últimos anos onde a estratégia constelar é assumida como método para aceder ao contemporâneo. Em que traços se percebe a “Contemporaneidade”? E como distingui-la da “Actualidade” [lembrando um anterior e importante livro seu, a Analítica da Actualidade (1994)]?
José Bragança de Miranda: Constelações significa a opção por uma abordagem onde conceito, imagem e objectos sejam pensados ou actuados simultaneamente. Os conceitos, em que se baseia a prioridade da teoria, sendo abstractos, são insuficientes para acedermos àquilo que é o real, aquilo que está em curso. Trata-se de uma opção um pouco arbitrária na medida em que uma infinidade de imagens podiam ser usadas para pensar problemas similares, por exemplo, a de mosaico, a de galáxia, ou a de puzzle, ou de arquivo, há tantas. Isto significa apenas que o pensamento se deixa interpelar por um dado teor de empiricidade e por uma dada lógica das imagens para se poder constituir como problema. Nesse sentido, trata-se de criar uma espécie de método transitório ou provisório para aceder às coisas. Não dá garantias que não sejam os efeitos que produz. Qual a pertinência daquilo que ilumina a vida, quando nela é introduzido? Não se trata de um método que se procura certificar antes de começar, mas de um “método” que aceita a provisoriedade, ou uma certa transitoriedade como princípio para pensar, até porque o real – ele próprio – está em permanente devir, e a ideia de que possamos captá-lo através de uma teoria qualquer parece-me inútil, senão mesmo perigosa.
Nesse sentido, há uma certa relação entre uma metodologia destas, ou pelo menos uma opção deste género, na medida em que a contemporaneidade é o domínio do agora. Trata-se da inevitável intervenção a quente na vida, ou no real, na qual nós estamos sempre imersos, que está em permanente eclosão, e da qual recebemos injunções de todo o género, com que somos confrontados, implicando uma maior ou menor urgência com que somos afectados, e a que temos de responder. É essa urgência na qual estamos e vivemos, que nos obriga a pensar sobre esse assunto, actuando sobre ele, ao mesmo tempo que somos actuados. Em épocas mais tranquilas tudo é mais simples. Como dizia Foucault, tudo o que existe no real constitui uma espécie de caixa de ferramentas que são “escolhidas” para poder continuar a pensar, ou para poder produzir o que se está a querer produzir, ou para poder avançar com o que se está a avançar.
Não se trata de partir de qualquer coisa de fora para depois chegar ao interior daquilo que está em curso, que está a eclodir e em trânsito; está em causa usar o que já está aí, para poder, navegar de alguma maneira, esses fluxos – ou esse devir das coisas. Nesse aspecto, a imagem da constelação, ou outra imagem qualquer, é mais uma forma de poder surfar ou navegar esse movimento, sem ter qualquer ilusão que possamos controlá-lo. O barco faz parte do mar, está dentro do mar, não controla o mar mas responde-lhe, tem de lhe responder. Trata-se de construirmos os nossos pequenos “barcos” mentais, ou artísticos, ou científicos, ou outros para poder continuar.
De facto, existe uma continuidade entre o livro que escrevi sobre a Analítica da Atualidade e este último, embora o primeiro tenha tido por intenção uma certa libertação de um excessivo peso da História, que imperava nessa altura. E, portanto, a actualidade tem que ser vista pelo menos em dois sentidos. A actualidade no sentido contemporâneo, a que me referi, e no sentido apenas de actual enquanto o trabalho de uma potência em arco e que abre o real contra si mesmo. Tratava-se nesse livro de pensar essa potência que faz com que o real esteja atravessado por um poder constituinte, mais do que estar preocupado com as formas constituídas, ou a maneira como elas se cristalizaram historicamente, ou mesmo de tentar explicá-las historicamente. Ora, o historicismo era um obstáculo para pensar essa potência, que trabalha o contemporâneo, a vida, marcando-a por uma hesitação, um instante onde as coisas se podem bifurcar de muitas maneiras. O que quer dizer que a ideia deste livro corresponde ao outro lado do problema. No outro [livro, a Analítica da Actualidade] tratava-se de libertar, de certa maneira para mim, o espaço onde pensar essa potência, por ter um poder constituinte, abria permanentemente o real. Neste trata-se de trabalhar no interior dessa abertura.
CP: É com Benjamin que o Professor reflecte sobre as possibilidades revolucionárias da reprodução, na forma como as suas refracções tocam a actualidade – são esses espasmos revolucionários que ligam uma ante-história (Vorgeschichte) a uma pós-história (Nachgeschichte) numa linha dialéctica a que apenas podemos aceder à distância por uma espécie de alucinação (Raush) do agora (Jeztzeit). Aí acentua-se, segundo o professor, uma lógica produtiva planetária, isto é, a possibilidade de todos produzirem. Mas o facto de todos produzirem não implica que todos sejam vistos ou repostos em circulação – haverá sempre produtores que não vêem o seu trabalho ser reconhecido enquanto classe ou enquanto obra. Residirá aqui a distinção entre produtor (aquele que produz) e autor (aquele que tem autoridade)? Não esteve essa distinção ao trabalho em toda a história? Pode esperar-se ainda alguma coisa do acontecimento ‘revolução’ – política, artística, tecnológica – num contexto onde todos são produtores?
JBM: Mais do que com a reprodução, Walter Benjamin preocupou-se a certo momento com o problema da produção. O Construtivismo Russo tinha dado toda a prioridade à produção sobre a representação. E sendo ele [Walter Benjamin] muito marcado pelo Construtivismo Russo, a questão da montagem ou da produção tornou-se-lhe prioritária. Um livro não representa o mundo, mas produz o mundo, de modo mais ou menos radical. É por isso que criticou a idealização do autor, ou uma certa romantização do génio, do artista, do teórico, o outro qualquer, que normalmente tendem ter uma má relação com as máquinas e, através destas, com a técnica; ora, essa relação com a maquinaria era essencial para Benjamin. Significa que muitas vezes o artista ou o teórico estão dominados por uma máquina que mal conhecem, que os domina, por não serem capazes de estar à altura da mechané. De certa maneira, a preocupação benjaminiana era a de que a mechané não fosse ocultada, estilo Wagner na Obra de Arte Total, onde todo o esforço passava por ocultar a parte da máquina – a parte da técnica – para simular uma organicidade, uma vitalidade ilusória, e que alimentava outras maquinarias políticas. Portanto, boa parte do ataque do Benjamin sobre a questão do produtor procurava, basicamente, atacar esse falso organicismo, baseado sempre na ideia de que existe uma oposição radical entre a mecânica e a vida. E, nesse sentido, quando explicita o momento maquínico da construção – que é o caso do cinema e da fotografia – não há fotografia sem máquina fotográfica, pois ambas se fundam para que possa surgir uma obra. A máquina não é qualquer coisa que fique para trás depois de feita a fotografia: ela é-lhe intrínseca. Todas as novas máquinas, crescentemente inteligentes, mostram a importância política desta posição.
Pelo meu lado, vejo a produção de uma forma mais lata. Não se trata dos produtores em si mesmo, nem mesmo dos produtos, pois os produtores são produzidos pela produção. Neste livro aproximo-me e reelaboro a maneira como Schelling analisa a questão da produtividade. Os antigos, de uma forma um pouco ambígua, separavam a natureza produtiva da natureza produzida, a natura naturans da natura naturata, divisão que é suspensa pela ideia de produtividade generalizada. A produção já implica uma forma histórica de “explorar” a produtividade, como o demonstra etimologicamente a palavra producere. Trata-se de -ducere, conduzir algo ao aparecer, à frente, pro-, que constitui o esquema tecnológico desde os gregos. Ou seja, tudo o que aparece é uma produção. Mas na visão schellinguiana, essa forma de produzir é excedida pela produtividade geral. E, de facto, a produtividade geral vem do cosmos, vem do planeta, vem dos animais, vem das plantas, também vem dos humanos, etc. Usa tudo o que existe para continuar a produzir.
A produtividade na História assenta sobre a formatação do que é explorável e visível a partir da própria História. Tudo se joga sobre as formas. Esse é um problema intuído poderosamente por Marx. Para ele, a produtividade libertada na história estava peada pelas formas com que era explorada e usada. Nessa perspectiva, Marx mostrou bem que a produtividade humana estava dominada pelo capitalismo, um conjunto de formas que a diminuíam, que tornava injusta a distribuição dos seus produtos, o que acabaria por levar a uma crise geral, até à própria extinção, caso não houvesse uma revolução final que encerrasse a história das nações e começasse a história dos humanos. O problema é que a produtividade geral, a produtividade cósmica que a palavra “natureza” pode captar, que excede aquilo que fizemos, é tese dificilmente aceite por aqueles que na via aberta por Marx, pensam ser possível dominar completamente a “natureza”. O efeito é a distorção da nossa relação com produtividade que está a libertar-se diante dos nossos olhos.
A modernidade enuncia como fim da História a possibilidade de realizar algumas das promessas nela inventadas, sonhadas ao longo dela, como seja uma comunidade planetária pacífica e justa. A esta opõe-se a pura extinção de cuja possibilidade estamos bem conscientes. Tudo se joga entre estas hipóteses. Na sua irrealização continua a velha história e o seu arcaísmo de guerras, violências e dominações. Pressente-se um pouco por todo lado a necessidade de uma decisão. A decisão histórica implica a ideia de revolução. Para mim, considero que a Modernidade se equivale à época da revolução. Ela foi anunciada, ou revelou-se, na Revolução Americana, ou a Francesa, ou depois a Russa e todas as outras revoluções. Nesse sentido, a revolução não é futura, porque ela está inscrita nas próprias coisas, marcando todos os momentos da vida, as questões mais simples, porque sendo uma instanciação da história que fizemos, e que exige chegar ao fim, segue sempre o seu curso. Marx descreveu-a uma vez como o fazer de uma toupeira que estaria subterraneamente ao trabalho. Os leninistas acharam que era melhor serem eles a dominar a toupeira e pô-la a trabalhar para eles. Por mim, diria que o melhor é seguir o curso das coisas, e que, cada um, na sua urgência, necessidade, desejo de justiça ou de beleza, ou outra coisa qualquer, que faça o que tem que fazer. E esse caminho não é solitário, jogando-se na intensidade dos encontros e desencontros.
Em suma, existe uma oposição entre formas e a produtividade geral. Afirmar a prioridade da revolução significa que conhecemos bem o que fizemos historicamente, que uma decisão é possível e esperável. Ou seja, sabemos que essas formas herdadas são o efeito de um certo arcaísmo que ainda nos assola, da vontade de poder e da guerra. Mas é nessas formas que habitamos e é a elas que temos de responder: mas também que são o legado que os nossos congéneres nos transmitiram. Significa que seria possível libertar a produtividade das formas, ou canalizá-la dentro de uma forma perfeita, harmoniosa e imutável? Significa apenas que nós lutamos, e no mínimo vivemos, em torno das formas como a tal produtividade está a ser produzida, distribuída, capturada, usada. Que nos associamos e lutamos, em torno de formas melhores, mais belas ou mais justas, e ao mesmo tempo temos de viver. Como dizia Beckett “é preciso continuar, não posso continuar, vou continuar."
CP: Esta reticularidade das relações em jogo na figura do planetário parece assentar numa urgência qualquer. Que urgência é esta? Não foi toda a história política marcada por uma positividade (Gestell) que se impõe a cada urgência – e que é também a marca de cada acontecimento, ou de cada mutação nos media?
JBM: Reatando o ponto onde estávamos, é evidente que a ideia de que existe uma forma geral que domina a produtividade da Terra, da natureza, cósmica, etc., é um excesso. É um excesso especulativo. Tal como a ideia de Gestell heideggeriana, um dispositivo que domina toda a produtividade existente, todos os actos, sem deixar resto, tem exactamente a mesma raiz, que é a tentativa de reduzir aquilo que nós produzimos historicamente a um princípio único, e um princípio que seria fechado sobre si próprio. Não altera muito que isso sirva para o criticar, mesmo quando é para o criticar como sucede com Heidegger, mas também Foucault, Agamben, etc. Parte-se da hipótese que, descoberta a lógica “oculta” do real, bastaria simplesmente eliminar ou “superar” essa forma e então tudo ficaria perfeito, livre ou similar. Claro que estas teses exorbitam sempre um traço do real para terem alguma plausibilidade. No fundo, estamos perante os efeitos de uma certa ontologia especulativa, da qual eu me afasto radicalmente. A noção de Ser que a metafísica criou, que vem de Platão e Aristóteles, é um obstáculo para compreendermos aquilo que fazemos historicamente. Sinto-me próximo do modelo pré-socrático que distingue com nitidez o que é da physis, a natureza, para explicar a sua espontaneidade absoluta, e aquilo que nós próprios fizemos, que é a lei, o Nomos – que equivale à história. Não se respeitando a exterioridade da physis, sustentam-se as ontologias que consideram que as formas humanas de implicação da natureza na vida podem capturá-la inteiramente. Na verdade, está em causa a potência cósmica da physis, a que respondemos e damos forma, mas que excede toda a captura. Na verdade, mal conhecemos o que se passa no interior da Terra, o Sistema Solar e as suas forças mal começam a ser intuídos e, dada a exterioridade absoluta da “natureza”, recebemo-la de inúmeras maneiras, como a da energia do Sol que nos alimenta, e às nossas religiões, como por uma série de catástrofes como meteoritos, tempestades solares, efeitos cósmicos muitos deles imprevisíveis.
Fora de uma perspetiva materialista ficamos impreparados para o acidental. Partir do planeta, reconhecer que é um pequeno ser a vogar no meio do imenso cosmos dá-nos uma certa distância, mas também tende a abolir a nossa arrogância teórica que considera que podemos de alguma maneira calcular ou antecipar todas as catástrofes possíveis, por exemplo, os efeitos da explosão de uma supernova há 7 mil milhões de anos. A nossa potência de cálculo está a aumentar todos os dias, mas o problema é que as grandes teorias já se colocam no cálculo terminado, no cálculo concluído. Seja ele a história, seja para a natureza, seja para a relação entre ambas. E ele está longe de estar concluído, mesmo numa ideologia computacional poderíamos vir a realizar a máquina universal em que a computação coincide com o cosmos. Portanto nesse sentido, a questão essencial é trabalhar sobre esta relação à physis, sobre a abertura que implica na História. A ilusão humana, demasiado humana, de que vivemos numa forma ao mesmo tempo lógica e figurativa, acaba por nos deixar impreparados para aquilo que possa sobrevir. Na impreparação tudo o que aparece surge como catástrofe.
É certo que há coisas que dependem de nós, pois fomos nós que, inconscientemente, as fizemos historicamente. Se a História mais não é do que a instauração de formas de vida, em si mesma a criação ou invenção das formas é algo fantástico. Se pensarmos bem na mitologia antiga, ou na arquitectura, ou na arte, percebe-se que se produziram coisas fantásticas na História, que constituem o nosso legado. E podemos – devemos – pensar sobre aquilo que nós próprios fizemos. É o chamado princípio de Vico, que o Marx em muitos aspectos também segue. A nossa relação com aquilo que fazemos, a nossa imersão no presente, implica uma nitidez e clareza de visão sobre o que fazer, essa velha pergunta kantiana. Afirmou-se que, com a modernidade, tinha chegado ao fim a época das interpretações para entrarmos na época do fazer, e de um fazer decisivo. Mas, nunca tivemos tantas interpretações como hoje, as mais desencontradas e obscuras, mas isso significa que os pesadelos do passado nos assediam, mas sem força nem interesse. Trata-se de despertar.
Existe um fenómeno na Modernidade que é marcante, o niilismo, que nos prova que grandes esforços históricos se basearam rigorosamente em nada. Que milhões de mortos, guerras e sacrifícios não tinham nada em que se baseassem a não ser os poderes existentes, e a vontade de permanecer, a apropriação da terra, etc. Que esgravatando bem, por debaixo do que fizemos existe apenas o nada. O niilismo é co-extensivo ao surgimento do moderno. A revelação do nada tem por contrapartida o reconhecimento de que tudo o fizemos e assentou sobre a Terra é da ordem do fatal. Se o primeiro suspende a opacidade das crenças, a segunda confere-nos especial responsabilidade. A fatalidade daquilo que fizemos, que se confunde com a vida aqui e agora, não leva ao quietismo, mas à suspensão do juízo diante dos entusiasmos excessivos, das vontades guerreiras, dos desejos de resolver rápido, de ter uma solução ready-made. Esse é um trabalho que tem que ser feito por todos, que está sempre já a ser feito, sem garantias que não seja o fazer. Responder à fatalidade passará pelo conjunto dos humanos. Não vai ser resolvido por um país, não vai ser resolvido por um partido. E portanto, cada um tem de saber em que nível se coloca, e o nível em que me coloco é o dos 7 mil milhões de humanos, e não ao nível dos países, ou das nações. Agora, os países e as nações existem, estamos confrontados com elas, mas isso faz parte da materialidade por onde transcorre a nossa ação. Esse caminho exige lucidez, pois a pior coisa que podemos fazer é abolir teoricamente ou ilusoriamente a existência ou o real.
O que nos leva à questão da positividade. Como se verifica, prefiro o termo nietzschiano de “fatalidade”. A positividade tem o peso, e nesse sentido Tocqueville e Benjamin disseram que a História é a história dos vencedores. Mas que, vendo, permanece subterraneamente. Na II Guerra os nazis foram derrotados, a História seria outra se tivessem vencido, mas é preciso continuar a vencê-los acto a acto, todos os dias. Spartakus perdeu, mas regressou de novo à nossa memória pelo filme do Kubrick, e, portanto, não foi derrotado. Na verdade, na positividade do que existe está expectante em tudo o que ocorreu e exige justiça.
A chamada positividade mais não é do que reafirmar a dignidade daquilo que existe, onde estamos e vivemos. Não escolhe partes do real contra outras partes. Uma das grandes vantagens desse tipo de pensamento, puramente materialista, implica acolher tudo, tratar no mesmo pé de igualdade as pedras, as casas, ou as ideias, ou as imagens – não vejo que sejam menos materiais ou mais materiais que outras. É com tal materialidade que nós trabalhamos, com que pensamos, com que produzimos obras de todo o género, seja de que tipo for. Aliás, a positividade está sempre destinada a transformar-se noutra positividade qualquer.
A positividade, depois do grande sucesso do Comte, dos positivistas lógicos, etc., tem merecido fortes críticas. Estas baseiam-se na ideia de que a positividade leva ao fatalismo. Mas fatalidade e fatalismo são duas coisas bem distintas. Porque a positividade correspondia ao acesso da visão fatalista do que está aí. O que existe tem a fatalidade de ter sido feito. É por isso que é fatal e é daí que temos de partir. Uma criança nasce nesta cidade que já está aí, e que já foi feita por milhões de pessoas, durante milhares de anos. Um emigrante chega à cidade, e começa a transformá-la por ter chegado. Não há nenhum fatalismo no reconhecimento do fatal. Mas dada as ambiguidades deste assunto percebe-se a oposição entre o pensamento dialéctico e o positivista. Confere-se força à dialéctica por de algum modo implicar a possibilidade de mobilizar permanentemente o presente, o existente, ou o positivo, o que se quiser chamar, em direção a um princípio mais justo, ou para a uma forma mais justa, etc., portanto é preciso essa potência dialéctica para garantir o movimento.
Mas nenhuma maquinaria teórica ou política pode garantir o movimento. O movimento está aí, não é possível verdadeiramente cancelá-lo – todos os dias vemos o Sol; as mudanças de estações, os terramotos, as crises, as greves, as guerras – o real está em movimento. O problema é como nos relacionarmos com o movimento. Dizia esse grande revolucionário chamado Blanqui: “nós não criamos o movimento, nós declinamos o movimento”. Sem querer fazer uma defesa do positivismo, embora perceba os motivos porque Foucault se descrevia a si mesmo como “um positivista feliz”, encontramos nele uma deslocação essencial, a de problema. Nós confrontamo-nos com problemas, e a abertura corresponde à solução que conseguimos encontrar ou não para um problema. Mais urgentes ou menos; mais associados ou não. Não precisamos de mais nada, de garantir nenhum movimento implícito, ou oculto ou secreto, que garanta uma negatividade do real, na medida em que os problemas são evidentes, se tornam urgentes, exigem resposta.
CP: Walter Benjamin no pequeno ensaio “Planetário” (1929), escrito entre Guerras Mundiais (uma angústia também do nosso tempo), enuncia uma premente ideia a que o Professor se reportou em diversas aulas sobre a questão da técnica – particularmente na sua cadeira Mutação dos Media, leccionada durante 30 anos na NOVA-FCSH:
“[…] a técnica não é a dominação da natureza: é a dominação da relação entre a natureza e a humanidade. É certo que o homem, como espécie, se encontra no fim da sua evolução há dezenas de milhares de anos; mas a humanidade, como espécie, encontra-se no seu início.”
Em que se distingue a “espécie humana” da “humanidade” – em que medida se distingue hoje o bios da técnica? É possível falar em fim da evolução da espécie, como diz Benjamin, quando a técnica, que marca a origem e a individuação humana, se infiltra de forma cada vez mais sofisticada e miniaturizada nos corpos e no mundo? Que individuações pode a técnica suscitar ao ser humano enquanto espécie (enquanto corpo, i.e. na carne)?
E quanto à “humanidade”, ainda no início escreve Benjamin, quando começou este projecto-humano e que futuro nos espera? Que fará a Inteligência Artificial da Humanidade?
JBM: Vou tentar começar pelo mais simples. Acho que essa frase do Benjamin é importante, embora mereça algumas voltas. A primeira questão é não fazer da técnica qualquer coisa exterior ao humano. O que significa a técnica não foi uma invenção humana, é uma extracção da physis. Através destas extracções surgem os objectos técnicos, que configuram os procedimentos naturais. Exemplo: os lagos já espelham, o basalto [polido] já espelha muito antes de haver espelhos. Depois surgem os espelhos e isso tem efeitos essenciais. O nosso relógio, que marca as 24 horas, é uma pura mimesis da duração da rotação da Terra sobre si própria. Com uma pequena diferença, é mais perfeito, porque a duração da Terra não é bem 24 horas, e o nosso relógio é. O que é que isso quer dizer: que a técnica é de facto a natureza transmutada pelas formas históricas. Benjamin deu-se conta de que aquilo a que chamamos “técnica” está longe de ser uma invenção humana. É qualquer coisa, como dizia Gilbert Simondon, que medeia entre a natureza e a História – está entre aquilo que nós chamamos o humano, e aquilo que é não-humano ou extra-humano, ou o que quisermos chamar. Esse é o primeiro princípio, essencial. Fazer da téchnê uma invenção humana implicaria que depende inteiramente de nós, que poderíamos ou podíamos tomar todas as decisões que quiséssemos sobre ela, nomeadamente na forma em que se nos apresenta epocalmente. Se aceitares a sua proveniência indirecta da physis somos obrigados a ter uma outra responsabilidade perante aquilo que produzimos, que são as nossas máquinas. Aliás, gostaria de distinguir entre as máquinas que nós produzimos e a téchnê. Confundir a técnica com as máquinas é um mau princípio. Era a mesma coisa que confundir a natureza com as maçãs, ou as peras, ou os peixes, ou as estrelas, etc., pois ela é muito mais potente que isso. E não é por dominarmos todas as maçãs que se dominará a produção das árvores; não é por criarmos peixes em viveiros que nós dominamos a potência própria da vida, da produção orgânica no planeta, etc.
As máquinas correspondem à dimensão fanerogâmica da técnica. Assistimos à libertação das máquinas no interior da História, nomeadamente as máquinas inteligentes, às nanomáquinas, etc. Benjamin está bem atento a este problema, sendo claro que para ele as máquinas que produzimos, produziram-nos a nós próprios, tal como produziram o espaço em que vivemos. De certo modo, a era da máquina obriga-nos a repensar toda a História. Daí que ele insista no facto de que as máquinas sustentam a possibilidade histórica de ultrapassar as linhagens de sangue, as linhagens linguísticas, as linhagens familiares, que constituíram a História e a guerra que a alimenta desde sempre. Benjamin dá o exemplo do cinema, mas a situação é muito mais ampla, mostrando que se luta com as máquinas e através delas, e decerto, um dia, com elas. Na prática, como estamos a verificar hoje, elas vão criando infinitamente melhores possibilidades de convivermos em conjunto, no planeta. Nesse sentido, põem em relevo qualquer coisa de verdadeiramente importante.
Muito depende de conhecermos melhor as máquinas. Mas é evidente que através é delas que se perfilam novas possibilidades de resolver os problemas da nossa relação com a natureza e connosco próprios. Neste aspecto, elas são novos membros da comunidade que constituímos, e que inclui os corpos humanos, os animais, as plantas, os vegetais e as máquinas. O facto de terem vindo para ficar, o facto de serem cada vez mais inteligentes, mais autónomas, mais duradouras, desaconselha as velhas ideias esclavagistas de que elas são os novos “escravos”, ou estão meramente a uso seja ele qual for. Manter esta atitude vai resultar em novas guerras.
Tudo indica uma divisão entre bios e mechané, entre carne e metal. Não sabemos quanto tempo é que possa durar a ideia de um carácter inerte, não activo da máquina, como era característico do século XIX. E isso leva a outra questão que o Benjamin nunca quis tratar muito – que se encontra claramente no pensamento dele – que as máquinas são inseparáveis de um novo maravilhamento da vida, da Terra, do planeta, etc., tese que Benjamin extrai interessado pelo Fourier, cautelosamente. Aqueles que estão assustados com as máquinas cada vez mais inteligentes, e que progressivamente serão orgânicas também, agarram-se a uma definição fixista do “humano”. Eles estão convencidos que nós ficaremos para trás e que a nossa carne envelhecida, doente e fraca ficará incólume; mas tudo vai ser transformado. Essa ideia de que nós ficaremos o animal de sempre e as máquinas vão ultrapassar-nos não tem sentido porque estamos todos a evoluir ao mesmo tempo e segundo trajectórias que se vão perfilando e bifurcando. Os caminhos que queremos seguir são caminhos que têm que ser pensados profundamente. A visão clássica – em que pensávamos a diferença entre o orgânico e inorgânico, entre humano e não-humano – deixa-nos completamente desmunidos para pensar o que está em curso. E é evidente que estão transformações claras a caminho. Pensarmos a relação com a téchnê implica cortarmos o nó górdio em que a História se encalhou. É uma questão basicamente política.
CP: Então, o projecto humano está em aberto?
JBM: Não podemos falar de um projecto humano porque a grande característica do animal-humano relativamente a todas as outras espécies é a de que nós evoluímos individualmente. As abelhas respondem em conjunto a um problema e as que não se adaptam à resposta, não sobrevivem. A espécie humana é feita de variações singulares, no instante em que chega ao momento pós-darwiniano que é o nosso. Dada a nossa afinidade com as imagens, a inventividade é máxima. Contudo, não sabemos que variações estão em curso, nem a quantidade de variações que conseguiremos suportar, mas podemos ter a certeza que é através de variações quase imperceptíveis que as coisas se estão a implantar e a impor. Neste momento, uma série de transformações que vem da investigação militar, com a sua incessante inscrição sobre os corpos e o seu prolongamento protésico, que levam a intuir transformações que têm que ser discutidas publicamente; o mesmo sucede sub-repticiamente com a procura pelos milionários da imortalidade e do prolongamento da vida, ou da saúde a pedaços produzidas pela farmacologia, etc. É verdade que se foi acumulando no conjunto da humanidade, e que muitos acharão puros absurdos ou tristes ilusões, mas na verdade estão em curso, vindo com pegadas de pomba, como dizia Nietzsche. Neste aspecto, a ideia de projecto humano, no sentido em que os humanistas o pensaram, não tem qualquer hipótese. Com efeito, não nos permite pensar o que é mais instante, ou mais urgente aí, onde todas as relações se estão a redesenhar, e isso porque se tomou já uma decisão prévia sobre o que é humano e o que é não-humano. Ora, a nossa relação com os animais, ou com as máquinas, ou com os vegetais, ou com o cosmos, é uma relação que o pensamento humanista não consegue dar conta. Está demasiado centrado numa prioridade do humano que foi definida historicamente, em boa medida formada teologicamente ou metafisicamente, mas cujas formas futuras estão em aberto. Muito vai depender da composição das forças, da maior ou menor nitidez, da maior ou menor limpidez do nosso olhar.
A arte tem aqui um papel essencial, pela capacidade de inventar, de propor novas formas, mas também de dar visibilidade à decisão invisível que está em curso. Se calhar encontra-se na ficção científica mais pensamento sobre o que está em causa, do que, por exemplo, na maioria dos romances humanistas que andam por aí.
Catarina Patrício
Doutorada em Comunicação pela NOVA-FCSH, na especialidade Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias, realizou estudos de Pós-Doutoramento na mesma faculdade. Artista Visual, formada em Pintura pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e Mestre em Antropologia pela NOVA-FCSH, é Professora no Departamento de Ciências da Comunicação e no Departamento de Cinema e Artes dos Media da ECATI [Escola de Comunicação, Arquitetura, Artes e Tecnologias da Informação], Universidade Lusófona, desde 2010. Investigadora integrada no CICANT, publica ensaios e expõe obra artística regularmente.