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LUÍS ALVES DE MATOS E PEDRO SOUSA
05/03/2024
Filmado entre Dezembro de 2022 e Fevereiro de 2023, a estreia de PROCESSO EX SAAL (2024) no Centro Cultural de Belém, no passado dia 18 de Janeiro, determinou o contexto para esta entrevista com os autores do documentário; Luís Alves de Matos e Pedro Sousa, ambos cineastas, cujo trabalho colaborativo é precedido por um outro documentário, A CASA DE DENTRO DE CARLOS NOGUEIRA (2023) — Neste último, o primeiro assume a realização e o segundo a fotografia.
PROCESSO EX SAAL é um documentário angustiante. Seguir-se-á um outro, a propósito do mesmo demorado processo. Mas o olhar dos cineastas atravessa a angústia; acolhe — e agora pelas suas palavras — “os medos e as incertezas da vida que se encontram já gravados nos olhares dos moradores cansados pelo tempo de espera…Perto de 40 anos. Será que chegou o tempo de todas as decisões?” Abriram-lhes a porta das suas casas; mas mais do que isso: O “seu mundo íntimo” — Ainda que inicialmente a porta se tenham aberto sob o pretexto de um inquérito porta a porta, de natureza objetiva e quantitativa, levado a cabo por investigadores académicos.
Ambos querem saber mais — ampliar o (seu) horizonte —, e não apenas documentar números. A angústia, como se sabe, tem que ver com a perda de vínculo; aqui, de modo mais evidente, o vínculo destes bairros com a cidade. Recordo-me por isso do seguinte aforismo, de um texto pertinentemente intitulado “Contemplação Carinhosa da Angústia”: “Se ele [o Homem] amar o que deseja saber, está capaz de ultrapassar aquilo de que desespera. E provavelmente actuará de maneira certa no mundo das probabilidades” [1] — O que no cinema, será, por-ventura, encontrar ou ser encontrado pela “imagem 'justa'”.
Por Madalena Folgado
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MF: PROCESSO EX SAAL resulta de uma encomenda da Câmara Municipal de Lisboa, no sentido de documentar o processo em curso de recenseamento social e urbano de dois bairros, por sua vez resultantes de duas operações SAAL; o Bairro Horizonte, na freguesia de Penha de França, projeto dos arquitectos José António Paradela e Luís Gravata Filipe; e, o Bairro Portugal Novo, na freguesia das Olaias, projeto do arquitecto Manuel Vicente. Com que premissas partiram para a realização do documentário?
LAM/ PS: Este projeto parte de facto da Câmara Municipal de Lisboa, mas chegou a nós através do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE), que estava já a desenvolver o trabalho para a caracterização sócio-económica dos bairros e onde se incluíam inquéritos porta a porta.
O tempo era muito escasso. Teríamos de terminar em menos de três meses o documentário, estando nós no pico do inverno. Para além desses dois bairros, o documentário inclui ainda um outro núcleo habitacional, parte da operação SAAL que originou o Bairro Horizonte, na freguesia do Beato, o Bairro Carlos Botelho. Desde o início que sabíamos que este seria um projeto muito complexo e sensível e, com o tempo que tínhamos, teríamos de fazer escolhas difíceis e mesmo abdicar de alguns pontos de vista que entendemos como essenciais para uma perceção mais abrangente de todo este processo Ex-SAAL.
De certa forma, estas limitações contribuíram para a opção que tomámos desde logo de dar toda a prioridade à voz dos atuais moradores no bairro. Não teria naturalmente todo o contexto histórico, a perspectiva de outras entidades como arquitetos, decisores políticos, antropólogos, juristas, etc. mas, com tão pouco tempo, entendemos que isso seria realmente o essencial. Por outro lado, por uma questão muito prática, aproveitámos os inquéritos que estavam a ser feitos e acompanhámos os técnicos do ISCTE, porta a porta, conseguindo assim entrar nos bairros, começar a conhecer os moradores e até o interior das casas. Para além do mais, foi também uma forma de minimizar o impacto inicial que o equipamento das filmagens acaba por sempre ter.
MF: O tempo para a realização deste documentário constituiu, portanto, um desafio. Por outro lado, dá-nos a conhecer a interminável espera dos moradores…Poderiam falar-nos do modo como o documentário integra estas duas temporalidades?
LAM/ PS: Curiosa essa formulação visto que, principalmente no processo das filmagens, sentíamos sempre uma urgência; uma necessidade de aprofundar a relação com aquelas pessoas, com aqueles lugares, que nos trouxe até uma sensação de perda (ou desejo de voltar). Sentimos este documentário como um retrato de um momento, tal como uma fotografia que inclui em si o antes e o depois (e o dentro e o fora de campo).
As filmagens foram quase de 'guerrilha', com pouco tempo de luz, chuva, exposição do equipamento de filmagem em zonas perigosas e pressa de filmar. Mas a verdade é que, quando iniciávamos cada filmagem, cada enquadramento, cada conversa, sentíamos um outro tempo, um tempo muito mais vasto, mas simultaneamente de urgência, de uma urgência já sedimentada no tempo de espera da vida daquelas pessoas.
MF: Uma dupla pergunta, sem nenhuma pretensão de comparação, dado os distintos contextos de surgimento: Como situam PROCESSO EX SAAL, a par dos outros dois documentários realizados sobre o Programa SAAL, CONTINUAR A VIVER (OS ÍNDIOS DA MEIA PRAIA) (1976) e AS OPERAÇÕES SAAL (2007); respectivamente, de António Cunha Telles e João Dias, uma vez que ambos fixam no plano imagético, nacional e internacional, o pouco que ainda sabemos sobre este momento histórico? Que relação e/ou o que é que ambos conheciam do Programa SAAL até ao momento em que foram convidados a realizar este terceiro documentário?
LAM/ PS: Na realidade tínhamos um conhecimento bastante vago quando surgiu o convite para fazer este registo documental, grande parte do que conhecíamos do programa SAAL vinha precisamente desses dois filmes. O documentário, tal como o entendemos, expressa sempre a conjuntura da época, do momento em que é realizado, mesmo quando retrata o passado ou se projeta no futuro. No caso do PROCESSO EX SAAL, este momento histórico é-nos dado apenas pelo discurso destes moradores. Aquilo que seria aparentemente um ponto de vista particular, com um tom quase confessional, torna-se universal.
MF: O Programa SAAL e as cooperativas que administravam grande parte das operações foram extintas. O que se revela mais perene, e que o documentário dá a ver pelas suas palavras, são os campos de vínculo criados entre moradores, onde se cuida e é cuidado, independentemente da situação sócio-económica abissal de alguns, bem como o contexto de pluralidade cultural — Refiro-me aqui ao campo de vínculo enquanto o derradeiro e vitorioso aspecto benigno da lição urbanística. Como foi, e ainda que apenas durante alguns meses, perceberem-se dentro desses campos de vínculo, uma vez que vos foram literalmente abertas as portas de várias casas, permitindo assim o acontecer do documentário? Ou, dito de outro modo: O que aprenderam com os moradores dos bairros?
LAM/ PS: Este encontro com os moradores trouxe-nos uma realidade que desconhecíamos completamente. São histórias de vida, muitas vezes difíceis…
A forma como habitam o espaço, o valor afetivo com que se relacionam com as casas, é um sentimento universal de todos nós, mas no caso destas pessoas, esta é uma relação precária, um permanente limbo em que vivem. São muitos anos a construir um espaço próprio, mas que nunca é verdadeiramente seu.
MF: É notório o cuidado no processo de montagem dos depoimentos dos moradores; i.e., na amostra que o documentário também é, os diferentes sentidos e expectativas apontados para os bairros coexistem, sem a tentativa da vossa parte os de nivelar — que o filme tenha uma mensagem unívoca. Poderiam comentar?
LAM/ PS: Partimos para este filme com o intuito de participar naquela que era a caracterização sócio-económica destes bairros que estava a ser feita. Tentámos por isso, desde logo, procurar todas as pessoas que pudessem de certa forma ser representativas. Mas para nós a montagem é a parte fundamental da construção do filme, onde se cria um sentido e o ponto de vista se revela. Neste processo de trabalho estivemos muito atentos para que cada uma destas pessoas, fosse caracterizada por si e nunca quisemos orientar o filme para uma temática ou tema único, algo que levou a que existisse um à-vontade para falarem de si próprios.
MF: Alguns planos de PROCESSO EX SAAL devolvem-nos a possibilidade de reconhecer a qualidade do desenho arquitetónico; em muitos dos bairros resultantes das operações SAAL, por vezes quase irreconhecível, nem mesmo por arquitectos, devido à sua inconclusão da qual é consequente a sua descaracterização por apropriação e/ou falta de manutenção — Percebe-se o vosso olhar atento. Tenho presente, por exemplo, alguns planos das galerias de acesso aos fogos no Bairro Portugal Novo.
Mas tenho também presente um plano em que vemos o entretecimento das armaduras expostas na fachada do edifício — em manifesto sinal de degradação, como que uma fractura exposta —, lado a lado de um pano estendido, que esvoaça suavemente, repetindo o padrão (xadrez).
Há uma fragilidade que é a própria condução suave do pensamento e não apenas doença e/ou pobreza (como o documentário também testemunha) — Esse plano (e pano) é para mim isto; a fulguração de uma (e)vidência, pouco ou nada acolhida no Ocidente global; onde o espaço é de domínio e prevalece sobre o espaço de vínculo — E eis a crise habitacional…O que vos ocorre sobre este (meu) afeto a partir do documentário, e/ou o que é que vos afeta no momento presente?
LAM/ PS: O Bairro é o pano de fundo, mas é também um espaço de pertença de cada um, de prolongamento da casa, de projeção individual e simultaneamente de aproximação a uma identidade comum, partilhada, que de uma forma ou de outra se evidenciou em todos os testemunhos.
Talvez esse plano, metaforicamente, seja também uma síntese do essencial de tudo o que está neste documentário. Existe miséria e existe beleza, nós tentámos não esconder, nem ostentar. Procurámos a imagem ‘justa’.
MF: A crise habitacional não decorre apenas da necessidade quantificável de fogos (nº de habitações). Das cinzas do SAAL extinto, o renascimento do fogo; ou a ‘Casa de dentro’ — onde urge entrar. A fulguração do Ser (mais do que ter) e a possibilidade rara da imagem (em movimento) ser o clarão; i.e., ‘entrar em diálogo com o indizível’ [2] — Num mundo onde as imagens se consomem, inclusive as ‘auto-programadas’ poéticas, em favor de um desejado nivelamento; nivelamento esse, que cria as massas…As massas que consomem…Mas “Habitar não é um acto de consumo, é um acto de criação”. [3]
Estabeleço uma ponte [4], entre A CASA DE DENTRO DE CARLOS NOGUEIRA, documentário apresentado na última edição do IndieLisboa e o PROCESSO EX SAAL, no tocante — e que (me) toca — à emergência de um ethos; i.e., um modo de Ser, e portanto também a uma (est)ética. O que parece distante, afinal, deixa-se tocar, ultrapassando a condição de mera marginalidade; o entre da polaridade das casas (a de Carlos Nogueira e as das pessoas entrevistadas dos bairros) coloca em relação pessoas em posições diametralmente opostas — Percebemos uma gradação, e por conseguinte, também, a degradação desse ethos. O documentário sobre o artista Carlos Nogueira torna-o visível, desde o seu início até ao fim; em PROCESSO EX SAAL oferecem-nos, como o plano que foi exemplo, pequenos vislumbres desse ethos — Acima de tudo mostram-nos que esteve sempre lá.
Do ponto de vista do vosso trabalho colaborativo, fizeram esta ou outras reflexões, e/ou que ‘pontes’ se têm vindo a tornar conscientes?
LAM/ PS: Durante este processo, sentimos uma enorme generosidade por parte de quem nos recebeu na sua intimidade. Foi no acto de filmar que surgiram as questões que nos acompanharam para a montagem e que se reflectem no filme.
Nestes dois filmes, a ‘Casa’ é uma personagem omnipresente, com a qual todos se relacionam de forma íntima e profunda. Como disse Mia Couto a propósito da obra de Carlos Nogueira “a casa não é onde o homem se fecha. É onde o Homem se abre para dentro.”
MF: As tomadas de decisões importantes são precedidas pela angústia e este é um filme angustiante. Sendo a angústia constitutiva do humano, evitá-la (e como hoje tanto dela se foge) será, creio, permanecer-se estagnado. Para onde nos leva o PROCESSO EX SAAL?
LAM/ PS: Este filme foi o possível, no tempo que tínhamos, mas foi para nós muito inspirador. Nesse sentido, queremos continuar em busca de novos personagens, de novos territórios. Inclusive, foi-nos proposto um segundo documentário, cujo registo irá decorrer passado um ano, o que é significativo.
Interessa-nos aprofundar a compreensão da complexidade do que apenas foi enunciado. Quando se faz um documentário, está-se a querer também compreender; é um processo de descoberta. Sentimo-nos por isso a entrar num território novo, que queremos explorar o máximo possível.
Sem dúvida que sentimos angustia a filmar (a angustia é um sentimento que se universaliza), mas muito diferente da angustia do espectador e mais diferente ainda de quem ali vive. Há um tom confessional nos depoimentos; em alguns, como que um derradeiro pedido de ajuda. Recorde-se que são pessoas às quais apenas foi pedido que falassem das suas casas; há quanto tempo ali vivem e o que esperam quanto à possibilidade de serem formalmente suas.
Mas são também pessoas esquecidas, de certo modo escondidas, sem possibilidade de escuta, e queremos por isso continuar a acompanhá-las. O tom confessional tornou-se inseparável do caráter mais objetivo e quantitativo do inquérito, houve de sua parte uma urgência, como se fosse a última vez que pudessem falar com alguém…E nós descobrimos isso a filmar.
Se por um lado sentimos que estávamos a dar voz às pessoas; por outro, apercebemo-nos que não houve possibilidade de dar a ver mais contexto; mais espaço — que o documentário possa ampliar o espaço da relação, da sua implicação no todo da cidade; isto é, atravessar a angústia. Queremos dar a ver mais do seu cotidiano; a sua vida (mas não apenas através do que relatam nos depoimentos), assim como outros pontos de vista.
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Luís Alves de Matos Licenciado em Realização pela Escola Superior de Teatro e Cinema, colabora desde 1993 em diferentes projectos de criação contemporânea, realizando desde então vários filmes documentais sobre artistas plásticos portugueses. Funda em 2001 a produtora Amatar Filmes, dando continuidade à produção e realização independente de documentários no campo da arte contemporânea e de filmes experimentais. Integra desde 2018 os Filhos de Lumière como cineasta formador. Foi premiado em 1999 nos X Encontros Internacionais de Cinema Documental da Malaposta com o documentário “A Fazer o Mal” e distinguido em 2008 e 2011 com o Prémio Melhor Filme Português dos Prémios de Cinema Temps D'Images; respectivamente, com os filmes “Lost in Art — Looking For Wittgenstein” e “Luz Teimosa”.
Pedro Sousa é licenciado em cinema pela Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC), com especialização em Imagem. Enquanto Director de Fotografia participou em diversos filmes de curta e longa-metragem para cinema e publicidade. Tem realizado principalmente filmes documentais e a sua obra enquanto realizador foi apresentada em vários festivais nacionais e internacionais. Deu formação na ESTC, em Direcção de Fotografia para Documentário. Foi júri no festival InShadow Lisbon Screendance Festival. Actualmente é professor na Escola Técnica de Imagem e Comunicação onde tem coordenado as Unidades curriculares Estudos Fílmicos, Edição para Cinema e Televisão, Prática Profissional e Cinematografia.
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Notas:
[1] Agustina Bessa-Luís "Contemplação Carinhosa da Angústia" in Agustina Bessa-Luís, Contemplação Carinhosa da Angústia, Lisboa, Guimarães, 2000, p. 27.
[2] Referência a um verso do poema de Ana Hatherly "O que é o espaço?" in Ana Hatherly, O pavão negro, Lisboa, Assírio Alvim, p. 37.
[3] Manuel Tainha, “Identidade” in Manuel Tainha, Manuel Tainha, textos de arquitectura, Casal de Cambra, Caleidoscópio, 2006, p. 13.
[4] "Ponte" no sentido proposto por Martin Heidegger, i.e., assumindo a negatividade do processo: "É somente na travessia da ponte que as margens surgem como margens". Cf. Martin Heidegger in “Construir, Habitar, Pensar” in Martin Heidegger, Martin Heidegger — Ensaios e Conferências, Petrópolis, Vozes, 2012, p. 131.