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ENTREVISTA


Giuliana Bruno.


Streetwalking on a Ruined Map: Cultural Theory and the City Films of Elvira Notari, (1993)


Atlas of Emotion: Journeys in Art, Architecture, and Film (2002)


Surface: Matters of Aesthetics, Materiality, and Media, (2014)


Cartaz da conferĂȘncia no Museu Colecção Berardo.

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MARGARIDA VEIGA




GIULIANA BRUNO


 


Giuliana Bruno é Emmet Blakeney Gleason Professora de Estudos Visuais e Ambientais da Universidade de Harvard. Italiana radicada nos EUA, foi colaboradora da revista October e desde a década de 1990 vem investigando as relações entre a arquitectura, as artes visuais e o cinema, tendo sido autora de livros seminais no panorama dos Estudos Visuais. Por ocasião da sua vinda a Lisboa, a convite da ECATI - Escola de Comunicação, Arquitetura, Artes e Tecnologias da Informação da Universidade Lusófona e do Museu Colecção Berardo, para uma apresentação do seu último livro, a Artecapital foi assistir à conferência e teve a oportunidade de entrevistar a investigadora e falar deste projecto e dos seus interesses académicos.


Por Liz Vahia


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LV: Pode fazer-nos um apanhado do seu percurso teórico que a levou até estas recentes investigações sobre a intersecção entre as artes visuais e os media, o cinema e a arquitectura?

GB: Estudei literatura comparada em Itália, numa altura em que os estudos em semiologia eram o paraíso teórico. Como estava muito interessada na arte e na cultura contemporânea, concorri a uma bolsa Fulbright para ir para Nova Iorque, que nessa altura era o centro do mundo da arte. Fiquei muito fascinada pelo que se passava nesse mundo da arte e por isso decidi ficar em Nova Iorque. Primeiro trabalhei como crítica cultural para a rádio nacional italiana, fazendo entrevistas na área da arte, do cinema e dos eventos culturais, ao mesmo tempo que entrava nesse mundo dos jovens críticos de arte da revista October. A Annette Michelson convidou-me depois a integrar um programa de doutoramento. Comecei a trabalhar com ela e a publicar os meus primeiros ensaios acerca do pós-modernismo e do “Blade Runner”, que faziam parte dos meus interesses teóricos da altura. Também comecei a interessar-me muito pelas teorias contemporâneas ligadas à psicanálise e pelos estudos de género. Foi um momento em que o pós-estruturalismo foi muito influente. O trabalho de Michel Foucault significou muito para mim. E também Gilles Deleuze, que continua a ter um interesse permanente, assim como Roland Barthes. Actualmente menos Lacan! (risos) Havia este interesse extremo em teorizar uma nova linguagem fílmica, a partir da semiótica do pós-estruturalismo. Era uma teoria anglo-americana muito entusiasmante, no modo como o filósofos europeus eram reapropriados e reinventados. Quando terminei o meu doutoramento percebi que estava um pouco cansada de escrever artigos curtos, e queria passar ao formato longo. Havia esta posição em Harvard que tinha o nome perfeito para mim, “Visual and Environmental Studies”, e que combinava todos os meus interesses. Era num departamento fundado há 50 anos, num edifício lindo do Le Corbusier, o único na América do Norte, construído precisamente para as artes sem especializações nem divisões. As ideias subjacentes a este edifício levaram-me a uma nova forma de pensar a história e a arte contemporânea, de uma forma muito mais relacionada com a arquitectura e com a imagem em movimento, e ao mesmo tempo, a pensar o filme não como uma forma artística separada, mas como a criação de um espaço visual, em conexão com as estéticas tradicionais do visível, com a iconologia da arte. No início havia muita resistência [no meio académico], porque as disciplinas são muito territoriais. Para mim não fazia sentido falar de cinema sem saber nada sobre arte ou não entendendo nada sobre espaço. Estou muito orgulhosa, tanto em termos institucionais como conceptuais, porque [actualmente] se começa a ver isto como um caminho muito importante e interessante. Finalmente foi criado um novo programa de doutoramento em Estudos Visuais, no qual pude pegar nestas ideias e trabalhá-las, juntamente com os meus alunos. Devo dizer também que a geografia desempenhou um papel importante nisto, todos os meus livros têm uma ligação com um método cartográfico, no sentido lato de mapear e cruzar territórios. Eu gosto de atravessar os diferentes tipos espaços de uma cultura: disciplinares, visuais e urbanos.
Esta ideia da cartografia foi também interessante para mim como forma de mapear a geografia da modernidade. O meu interesse no cinema estava também relacionado com o interesse na forma como o cinema se tornou no agente de expressão desta nova forma de visão e deste novo espaço visual que emergiu na modernidade. Uma das coisas que me fascinaram em particular, e sobre o qual havia muito poucos estudos na altura, era como o cinema tinha emergido ao mesmo tempo que a cultura citadina, a forma como o cinema exprimiu a actual intensidade perceptiva da cidade e do espaço visual que estava a ser criado fisicamente na metrópole através da arquitectura. Por isso, no meu primeiro livro, “Streetwalking on a Ruined Map: Cultural Theory and the City Films of Elvira Notari” (1993), eu explorei a invenção do cinema em relação à cultura da cidade e mapeei a forma como as metrópoles em si se tornaram numa importante forma de representação nos primórdios do cinema e como este explorou esta ligação entre as diferentes formas de experienciar o espaço. Fiz isso falando da cidade de onde sou, Nápoles, e só consegui fazê-lo porque tinha partido. Nunca teria escrito esse livro se tivesse ficado. Usei o inglês como segunda língua para explorar a conexão à cidade e fi-lo através dos olhos de uma mulher cineasta, Elvira Notari, que fez filmes entre 1906 e 1930 (mais de 60 longas e cerca de 100 documentários), mas que tinha sido apagada da história, ninguém sabia nada sobre ela. Senti a necessidade de re-imaginar a cidade através dos olhos desta mulher. Chamei-lhe “street walking” porque era uma espécie de “flâneurie”, o meu deambular pela cidade, reclamando um sentido de entender o espaço público. Os filmes [de Elvira Notari] estão perdidos, só 3 sobreviveram, por isso eu reconstruí a atmosfera através de associações e meditei sobre o que é construir uma espécie de arqueologia da cidade através do filme. Liguei a cultura urbana, a história da fotografia, a medicina, a literatura popular e mapeei uma geografia cultural.
Como as metrópoles continuavam a interessar-me, no meu segundo livro, “Atlas of Emotion: Journeys in Art, Architecture, and Film” (2002), tornaram-se o núcleo central. Enquanto o primeiro livro era uma micro-história que contava uma macro-história, o segundo livro foi um empreendimento muito maior e pretendia ser mesmo um atlas, que cobria o território vasto da intersecção entre a paisagem interior e exterior e, mais importante, a mobilização do espaço como conceito expresso pelo cinema na modernidade. Onde é que está a origem deste movimento? Começou com a própria modernidade? Ou foram as formas urbanas das expressões artísticas que criaram a mobilização do espaço que levou à invenção do cinema? Por isso comecei por 1654 e por uma mulher, Madeleine de Scudéry, que desenhou um mapa para mapear o irrepresentável, o invisível, “la carte du pays du tendre” - o mapa do país da ternura. A ideia mais importante aqui é que os afectos não são estáticos, a mobilização do espaço é algo relacionado com a criação de diferentes afectos, incluindo os afectos da modernidade. Movemo-nos por este mapa e a nossa paisagem interior muda, transforma-se em diferentes formas de conexões ou isolamentos. Não é um mapa fechado, há muitos espaços que continuam para lá do mapa. É uma metáfora visual importante que usei como um mapa orientador, para investigar desde os primórdios da modernidade até à época contemporânea as diferentes formas de mobilização do espaço e como o atravessar diferentes territórios tornou possível ao espaço moderno ser hoje um espaço das imagens em movimento nos dois sentidos: no movimento e na emoção (“in motion and emotion”).
A percepção da existência de diferentes camadas na Superfície nasceu aqui, de certa forma, no “Atlas of Emotion”.

 


LV: Veio a Lisboa para uma conferência sobre o seu novo livro “Surface: Matters of Aesthetics, Materiality, and Media” (2014). Começou a conferência apresentando a sua definição de “surface”. É necessário esclarecer primeiro as pre-concepções que temos sobre este conceito?

GB: Sim. O livro foi escrito de uma forma polémica, abordando a tendência da nossa cultura em denegrir as superfícies. Quando alguém diz “superficial” geralmente é de uma forma negativa. Por isso interroguei-me sobre o porquê de acoplar essa negatividade a uma forma material que está tão presente nas nossas vidas e é tão central. Comecei a pensar como a condição moderna ou a modernidade não experienciou a superfície dessa forma negativa. Falar de superfícies significa também mudar a nossa perspectiva do visual para o táctil, porque a nossa primeira superfície é a face - “surface”. A pele expressa a nossa cultura, as nossas emoções, como cobre o nosso corpo e nos permite estar em contacto connosco, com os outros e com o mundo. Este sentido háptico de estar em contacto é a nossa primeira experiência do espaço. Pensamos que contemplamos o espaço, mas vivemos de um modo háptico, tocando e mexendo. Esta hapticidade é uma parte muito importante do modo como apreendemos o visual e o espaço visual. Depois há uma “segunda pele”, que é a moda, outra área de interesse para os estudos visuais, na medida em que a moda é sobre texturas e têxteis, sendo também uma forma de comunicar a nossa identidade, tanto o estilo pessoal como a nossa posição social. Como não pensar então na Superfície? Um terceiro invólucro são as superfícies das paredes que nos rodeiam e as telas das pinturas que olhamos, e por último, sendo hoje a superfície mais importante, o ecrã.
O livro está escrito como uma membrana que liga todas estas diversas superfícies e olha para as intersecções entre elas: formas de hapticidade na expressão dos afectos, em relação às texturas, ao repensar dos materiais, à importância da tela, das camadas na pintura, do modo como a arquitectura incorpora característica têxteis, tornando-se cada vez menos tectónica e mais flexível, como um tecido. E por último, a superfície do ecrã, como este se tornou um lugar de conectividade e não pode ser entendido pensando nele apenas visualmente - entramos em contacto e comunicamos através dos ecrãs.

 


LV: Este conceito de “surface” como lugar de conexão, permite-lhe investigar vários campos que ali confluem, como a arquitectura, o cinema ou a moda. Associa o “surface” a formas de mediação, memória e a um poder transformativo. Isto é um afastamento da ideia de “surface”/superfície como algo “plano” a nível físico e conceptual.

GB: A questão central do livro é mapear a relação entre a tela e o ecrã, entre pintura, arquitectura e imagem em movimento. É refletir no facto da superfície ser o ponto de conexão entre o pensar, a cultura, a fotografia, a arquitectura, o design e a imagem em movimento. A superfície é tudo menos superficial, ela contém camadas da nossa expressão, mas é também o elemento estrutural e formal que liga todas estas formas artísticas que investem na superfície. Nós vivemos num ambiente de superfícies. [No livro] queria também pensar na superfície não só como a ligação entre disciplinas e modos de operar, mas também sobre como é que esta afecta a mudança nos media. O conceito mais importante no livro é o que eu chamo “surface tension of media” com o qual quero dizer que as ligações e as transformações que acontecem nestes meios de expressão ocorrem todas à superfície e ao mesmo tempo mudam as superfícies nas quais operam. As telas tornam-se cada vez mais ecrãs e as paredes cada vez mais telas ou ecrãs, e ao mesmo tempo os ecrãs estão a adquirir a materialidade tectónica das paredes nas galerias de arte onde são colocados. Mas ao mesmo tempo são tratados como uma coisa flexível, como tecidos, com camadas operativas. As camadas (“layers”) são importantes para mim, porque quero desafiar esta ideia de que a superfície é plana. Esta ideia vem essencialmente da história da arte e precisa de ser repensada. Primeiro que tudo, há uma relação constante entre bidimensionalidade e tridimensionalidade que acontece na superfície. Na arte moderna e contemporânea a superfície tem volume, não é de todo plana. Os artistas repensam a materialidade da textura do trabalho. Neste mundo virtual há um regresso do interesse e uma reinvenção do suporte da imagem. A superfície, seja ela a da pele, a da tela ou a do ecrã, é a superfície branca onde toda a história da nossa época contemporânea tem sido gravada. Numa maneira paradoxal, é neste pedaço de tecido branco, que é o ecrã de cinema, que todo um século de história tem sido projectado. Podemos pensar na superfície como tendo a capacidade de absorver e reter e devolver traços mnemónicos. Absorção, retenção e expressão das diferentes camadas da história, podem então ser observadas na superfície. Por isso não é só um sentido de espaço, mas um sentido de temporalidade que define a minha ideia de superfície. Nesse sentido, a superfície tem volume, tem profundidade, não é plana nem superficial.

 


LV: Há uma equiparação da ideia de superfície à ideia de corpo? Como lugar dos afectos e afecções, da memória e da história?

GB: Já falámos aqui sobre o primeiro estado da superfície ser a pele, isso quer dizer que ela é vital e móvel, que não é plana, é algo que se transforma a si próprio, que pode curar, tocar, ligar-se, e isso é algo elástico em muitos sentidos, tanto a nível orgânico como virtual. Há transferências da pele para o ecrã, não há só uma intermediação de disciplinas e formas de expressão artísticas, a superfície é ela própria um médium. A superfície é um “entre”, é algo que liga o interior e o exterior. Se pensarmos nela como uma pele, num sentido lato, percebemos que é uma fronteira permeável, põe o ser em contacto, é uma forma de comunicação. Esta ideia de superfície reflecte sobre a origem do médium como uma forma de conectividade, no mundo virtual assim como no material. A nossa condição contemporânea é cada vez mais uma “condição de superfície”. O nosso século é caracterizado por uma intensidade da interacção perceptiva expressa na superfície dos edifícios, nas ruas da cidades ou nas salas de cinema. A superfície para mim é também o local específico que começa na nossa pele, é por aí que temos contacto com as nossas primeiras sensações e afectos.

 


LV: Na conferencia falou também da necessidade de constituir uma genealogia alternativa do ecrã, de o ver como uma peça de cultura material.

GB: Quando se pensa na superfície muitos pensam que esta é invisível. A história da arte tradicional devotou pouca atenção à tela. As pessoas pensam a pintura como o que está pintado sobre a tela. No entanto, se pensarmos na estética das vanguardas, a tela ela própria torna-se o lugar que redefine o médium. Esses artistas expuseram a tela como um pedaço de matéria, como um exemplo de cultura material, não no sentido de ser uma mercadoria, mas no sentido de ser uma expressão formal da materialidade. O mesmo é verdade para o ecrã. Tem havido muitos estudos sobre o ecrã, mas nenhum deles fala do ecrã em si, falam do filme, do aparato do cinema... Não deveríamos estar a pensar também na superfície branca que é o suporte da imagem, como espaço ela mesmo? Agora que vemos o ecrã a deixar os cinemas e a entrar nas galerias de arte e nos museus e ocupando um espaço concreto como uma escultura ou uma arquitectura, onde tem sido expandido, magnificado, tocado, como podemos não pensar nele então? Eu argumento que é necessário uma genealogia diferente para o ecrã e afastarmo-nos da ideia de o pensar como uma janela ou um espelho, encontrando outra metáfora e ao mesmo tempo outro método de o entender. Isto é também um desvio do “óptico” para o “háptico”, ou seja, não podemos perceber o ecrã se o pensarmos só como um aparato visual. Pensar o ecrã como um espelho, como o lugar em que o olhar se materializa, não é suficiente para explicar a sua materialidade, a sua especificidade e a função que tem como um espaço em si mesmo. Por isso comecei a pensar em diferentes genealogias, em entrar na história da forma material. O ecrã é um pedaço de tecido, de cultura material, por isso quis ver onde é que emergiu como objecto e como contexto. No livro traço uma genealogia diferente do ecrã que vem do mundo da arquitectura. O ecrã foi de facto inventado como contexto e como palavra bem antes do cinema e da tecnologia ter sida inventada. Existiu como uma forma material situada temporalmente, significando um tipo de mobiliário, uma tela esticada e emoldurada (muitas vezes um pedaço de papel numa moldura de madeira), que era usada para dividir o espaço em casa ou para proteger do fogo da lareira, ou então nas janelas para proteger da luz. O ecrã era então um objecto de cultura material e de design de interiores que era usado para criar e transformar espaços, podendo separar zonas privadas, criando intimidade. É fascinante ver no que o ecrã se tornou: um sedimento, um repositório, um lugar de cruzamento de fronteiras entre o privado e público. No século XIX a noção começou a mudar e tornou-se num plano para a transmissão de imagens em movimento. Esta noção de filtrar luz na superfície permitiu algo de novo que não existia de todo: a projecção de imagens em movimentos, primeiro as fantasmagorias e depois o cinema. E a mesmo ideia hoje permite-nos criar formas de conectividade nos nossos ecrã virtuais: os telemóveis, ipads, etc.

 


LV: Mencionou a existência de uma “surface tension” nos media. Acha que há um retorno da imagem ao corpo na prática artística contemporânea? Está a materialidade a ganhar um novo interesse para os artistas?

GB: Acho que sim e em diferentes formas. E parece que vai contra o que muitos tinham previsto. Falava-se muito do virtual, do afastamento da fisicalidade, do digital não ter uma indexicalidade. No entanto, há uma reinvenção (eu não diria retorno) da materialidade na arte contemporânea que eu acho mesmo fascinante. E isso não é nostálgico. Para mim este interesse na materialidade não é um regresso nostálgico a um mundo que estava a desaparecer, mas antes um interesse nas formas materiais dos media. Os media estão hoje misturados, a tensão superficial nos museus significa que as telas são como paredes que são como ecrãs. Tudo em certo sentido está a tornar-se semelhante ao ecrã, as paredes arquitectónicas estão a tornar-se em superfícies de projecção, as telas transformam-se em caixas de luz, e isso está a fazer os artistas pensarem na materialidade dos media. Para mim este conceito de especificidade do médium tem que ser repensado, não porque não haja media específicos, mas porque esta hibridização está também a criar formas diferentes, provocando uma reflexão sobre as possibilidades que podem existir se estas formas forem misturadas ou ligadas. Neste sentido, acho que a superfície é uma forma de mistura e de transformação, de projecção e também uma forma de memória. A tensão superficial do medium também quer dizer que o medium devia ser percepcionado como uma memória da história, e que essas memórias da história se podem transformar. Pode-se trabalhar com a materialidade do ecrã esticando e reinventando até a história passada. Muitos artistas contemporâneos estão a fazer isso. No momento da obsolescência do cinema, há mais projecções do que nunca, até projecções em 16mm, diapositivos, velha tecnologia. Há um verdadeiro interesse na história material do filme, o que não significa necessariamente uma nostalgia por um tempo passado, mas uma interrogação, uma exploração e uma interpretação da história material do medium de forma a poder ser transformado. Sinto algo semelhante no trabalho de alguns pintores ou no interesse da nova geração por um formato que todos pensavam morto, o livro. Porque é que estas duas formas deverão ser opostas?
Eu acho que o ecrã e a ideia de projecção está connosco de uma forma muito alargada e devemos pensar no que é que realmente ela significa no sentido mais geral, pois ainda estamos fascinados por esta luz que vem do ecrã, assim como estávamos com as lanternas mágicas ou as fantasmagorias. Há uma atracção que vai além das imagens que se representam, e tem muito a ver com a forma material, com a materialidade do ecrã, com a forma da projecção.

 

 

 

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[a autora escreve de acordo com a antiga ortografia]