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GUIDO GUIDI: CARLO SCARPA. TÚMULO BRIONJOAQUIM MORENO E PAULA PINTO2015-02-09O caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria
Carlo Scarpa tinha construído o cenário arcaico para o design mais contemporâneo, a loja Olivetti na Praça de São Marcos em Veneza. Tinha passado anos nos fornos de Murano a manipular o saber que molda o vidro em fusão. Tinha um longo curriculum de projectos efémeros: exposições, instalações e pavilhões. Tinha realizado restauros complexos como o Castelvecchio em Verona ou o Abatellis em Palermo e tinha encenado neles delicadas museografias. Mas esta encomenda não era nem efémera nem um restauro. Aqui podia fazer um projecto lento para um tempo imóvel. E Scarpa decidiu ficar para sempre junto da sua obra. Foi a recusa de aceitar a morte como separação, implícita na decisão de Onorina Brion de não voltar a casar, que convenceu Scarpa a projectar este memorial familiar. Nem um cemitério público nem um mausoléu privado, este projecto é um memorial do amor conjugal, onde jazem lado a lado Giuseppe e Onorina. Scarpa confessou que talvez o melhor teria sido simplesmente plantar 1000 ciprestes. Mas o decoro social necessário para ampliar o cemitério local implicou a construção de um novo muro, de uma nova capela, e a duplicação de acessos, directo da alameda dos ciprestes e através do cemitério existente. Poucos projectos terão sido mais intensamente desenhados que este. A área destes desenhos talvez seja maior que a do túmulo, num mapa maior que o mundo que representa, e o seu alcance é bem maior que o projecto que organizam. Milhares de arquitectos aprenderam destes desenhos, que não se limitam à configuração do projecto, muitos são desenhos de estaleiro, feitos sobre cópias, tanto para explicar os procedimentos construtivos como para coordenar os diferentes artesãos. E misturam-se com a obra, redesenhando os seus percalços e remediando os seus erros. São o suporte do intenso labor paciente que só o desenho conhece. Conta a lenda que as tábuas de cofragem do túmulo Brion eram desfiadas uma a uma num serra de fita lenta que registava as pancadas ritmadas do marceneiro na madeira. Este estriado, sempre diferente, desenhava os ritmos da textura dos muros de betão aparente. E a cofragem era por vezes interrompida para que o vazio fizesse uma marca no muro, um sobressalto à altura do olhar, perto do negativo para embutir os mosaicos de vidro veneziano, ou enquadrar o reboco liso de cal. Todos os remates, dobras e inflexões, ou os encontros de matérias, são oferendas ao deus dos detalhes. A entrada do túmulo enquadra os anéis entrelaçados em amêndoa sagrada, o azul à direita do rosa. Subindo as escadas, vê-se, através dos anéis, um fio de água que separa do prado elevado, gesto primordial da arquitectura funerária. À direita, o lago de fundo misterioso em que flutua a ilha da contemplação, o acesso limitado por um portal que desaparece na água. À esquerda o arco sobre os túmulos, como uma mão arqueada sobre a testa para ver em contra-luz, e depois o portal em Omega para a capela funerária, e o jardim de ciprestes para o cemitério dos padres. O escrutínio crítico desta obra corresponde à densidade dos seus desenhos, e inúmeros livros, revistas e exposições tentaram capturar os seus mistérios: a sua capacidade de transformar o betão num material anacrónico, de fazer uma modernidade artesanal, fragmentada mas sem descontinuidade, de estar tão imersa na tradição que é capaz de a transgredir em vez de a mimetizar; a ambiguidade de ser complexa e contraditória sem ser pós-moderna. Os cemitérios são funções mais duradouras que a sua materialização, e é este estranho absurdo que faz deles lugares outros, em que a modernidade e a sua superação funcionam, mas ao contrário. Guido Guidi insistiu em olhar e voltar a olhar para este lugar, a ele regressando regularmente desde 1995. A recorrência das suas imagens desvenda um outro tempo deste campo sagrado: o templo cíclico do seu envelhecer, da sua transformação, dos seus solstícios e equinócios. O trabalho paciente, de fazer e refazer, reenquadrar, comparar, revela as modulações e os ciclos: a assonância, a variação, a fuga, a lateralização, ou o salto entre narrativas. As sua séries fotográficas revelam as margens, os limiares, as ausências, as sombras, ou os anacronismos deste lugar. Revelam um limiar em que o projecto aprende das imagens. Podemos investigar a arquitectura através das suas origens e influências, ou através do seu devir, da sua transformação, ou seja, através da sua vida, neste caso, paradoxalmente, eterna. Guidi observa estas transformações com o rigor de um trabalho de campo, repetindo exposições e experiências e tomando notas precisas. Esta exposição percorre estes excessos a contrapelo, observando os sintomas em vez de diagnosticando as causas; através dos indícios que a câmara entendida como armadilha engendra. As imagens de Guidi incorporam a lentidão excessiva da própria obra, colocando em abismo a arquitectura de que se alimentam. São uma armadilha para o diálogo.
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