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O ESTADO DA ARTE


Vista da exposição Rare Earth, Tony Cragg, 2023-24. © MNAC


Vista da exposição Rare Earth, Tony Cragg, 2023-24. © MNAC


Tony Cragg, Early Form (2014). © Michael Richter


Vista da exposição Rare Earth, Tony Cragg, 2023-24. © MNAC


Vista da exposição Rare Earth, Tony Cragg, 2023-24. © MNAC


Tony Cragg, In Frequencies (2019). © Michael Richter


Vista da exposição Rare Earth, Tony Cragg, 2023-24. © MNAC


Tony Cragg, In No Time (2018). © Michael Richter


Vista da exposição Rare Earth, Tony Cragg, 2023-24. © MNAC


Vista da exposição Rare Earth, Tony Cragg, 2023-24. Em primeiro plano Spectrum (1979); ao fundo The Worm Returns (1985). © MNAC


Tony Cragg, Foreign Body (2015). © Michael Richter


Tony Cragg, Spring (2016). © Michael Richter


Vista da obra de Tony Cragg Upright (2016), Terreiro do Paço, Lisboa. © CML

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A fortuna das exposições de Tony Cragg no panorama, e já na história, das mostras do muito empenhado Portugal-da-Grande-Arte-Contemporânea parece assombrada por coincidências de agenda e de calendário que se encarregam de recusar ao escultor a irresistível dimensão que ele transporta, secundarizando-o no instantâneo de cada momento em que se apresenta entre nós. Ou mais desmoralizador e injusto, empurrando-o para o circuito de uma suposta “arte séria”, onde o peso dos nomes consagrados é esmagador, território para iniciados e esteti-nautas, o que faz com que os demais, aquela legião entusiasta e legitimadora daquilo que é o “contemporâneo”, se precipitem até ao último evento de aparato à beira-rio.

Quando em 2004, há duas décadas, a obra do artista teve a primeira exposição em Portugal só a ela dedicada, com o título singelíssimo «Tony Cragg», estávamos em Serralves, na antiga Casa e nos Jardins, e expunham-se dezassete peças. Mais abaixo, no Museu, decorria a exposição «Behind the Facts: interfunktionen 1968-1975», com Robert Smithson, Bruce Nauman, John Baldessari, Gilbert & George et alia, em peças de segunda linha, mas que vinham envernizadas por passagem pela Fundação Joan Miró em Barcelona, que lhes dedicou um catálogo de quinhentas páginas, onde se defendia a tese de que ali é que estava a raiz do contemporâneo. No artigo do jornal Expresso que dedicou ao balanço de 2004, Alexandre Pomar dizia na altura que a desilusão do ano era nada mais do que «Tony Cragg», a exposição, isto porque curadores e instituição não tinham sabido atribuir-lhe a importância devida, pois que: « em vez de catálogo, as esculturas de Tony Cragg […] que ficam na memória como uma das mais ambiciosas exposições já realizadas no Porto, só tiveram direito a uma folha de meia dúzia de linhas informativas e a uma lista de títulos com imagens microscópicas, enquanto a estratégia de promoção do museu dava toda a prioridade a uma muito duvidosa operação de revivalismo pós-68 («Interfunktionen»). A contestação do objecto artístico que aí se pretendia ilustrar como bandeira da arte contemporânea era contrariada pelas esculturas de Cragg, e era este, de facto, o artista contemporâneo. Por isso se fez silêncio à sua volta».

Mas nesse mesmo ano, Cragg teve outro rival a sul. Anthony Gormley ocupava a Fundação Gulbenkian com a exposição «Mass and Empathy», numa operação tão ambiciosa que não se contentou com o CAM nem com os jardins e entrou pelas caves, arrecadações e garagens do edifício da sede, alcandorando-se logo ao estatuto de exposição da década, mesmo que o que nela se via não passasse de ilusionismo.

Desta vez, com a exposição extensa, rigorosa, muito refinada, e por isso excelentíssima, que é «Rare Earth» no MNAC (e com catálogo de louvar), Tony Cragg aterra em Lisboa no mesmo instante em que está montada uma operação artístico-empresarial, em torno de um só nome, na frente Belém-Alcântara dominada pelo MAAT, e que parece ter o sabor daquelas exposições-do-mundo-do-regime, tradição que vai sempre bem com os lugares que se querem montras-da-nação. E é assim que, em contrapartida, associada à iniciativa do MNAC à volta de Cragg, com o patrocínio da edilidade, temos apenas três esculturas do artista colocadas no espaço público de Lisboa, a Praça do Comércio, em situação pouco memorável, que não as honra, e, mais sério, que desperdiça a oportunidade do cosmopolitismo (para evitar dizer um superlativo “universalismo”) que delas emana. E que falta faz que tivessem antes ido esconjurar o paroquialismo iconográfico e o provincianismo artístico de outros pontos da cidade onde vigoram o deslumbramento pela história e o espavento da novidade.

É bom que se diga que começar a falar das obras de Tony Cragg, e da exposição «Rare Earth», colocando-as no centro de uma peripécia que é a do contexto mais ou menos desafortunado da respectiva recepção, não é facécia que esteja movida por uma lógica fulanizada entre protagonistas e antagonistas, ou que reclame um maior reconhecimento do artista, que não necessita de mais outorgas. A questão é antes a de que se há obra que tem o condão de, quase didacticamente, levar os públicos descrentes a reconciliar-se com a arte contemporânea, de conseguir desfazer muitos dos equívocos e contradições em que a arte se enredou, de reunir “apocalípticos e integrados”, de aplacar reaccionarismos e refrear os chefes da claque da contemporaneidade militante; em suma, de conferir um módico de sanidade onde reina uma folia já muito rouca, as peças de Tony Cragg compõem essa exactíssima obra. Por isso, não deve malbaratar-se esse efeito reparador desferindo sobre ela o golpe de retórica da guarda avançada, aquela que pugna pela proeminência da arte pública, e pelo actual primado da comunhão obrigatória entre o artístico e o político, e toda essa ganga de uma "arte de causas". Cragg solicita que dele nos aproximemos numa sorte de suspensão sobre o mundo, mas não naquela pose escolar da ingenuidade e da inocência face às coisas, antes num estado de espírito todo muito mais dado à protopatia, isto é: o que é que se vai ver? - pouco importa, logo se verá, e o espanto há-de dar-se.

E o que se vê em «Rare Earth» é a história de um artista que começou pela conceptual art, passou pela land art e o novo objectualismo, praticou a assemblage, o ready-made e o spatial turn, sempre com fulgor assinalável, e que hoje se dedica a um formalismo visceral, que já ninguém acharia possível e muito menos suportável. Mas cujos resultados corajosos dão a experimentar corpo a corpo, quase carne com carne, aquilo que materialmente mais próximo há do imaginário feroz do cinema distópico, dos cenários convolutos das cinturas pós-industriais, da figuração aflitiva dos desastres ecológicos, da silhueta contorcida da manipulação técnica e genética; na verdade, do retrato mais desassombrado do "derretimento" global. Não se pense, porém, que a expensas de um figurativismo rasteiro ou, ao contrário, através de alusões esotéricas. Tudo é antes feito com um propósito encantatório que transforma a exposição num autêntico pavilhão de curiosidades [uma Wunderkammer] (e nunca as salas do MNAC foram tão adequadas), posto que o destino mais certo de quem lá vai é perder-se, não obstante a linha do percurso estar irrepreensivelmente desenhada. É certo que o formalismo desusado do Tony Cragg de agora tem fronteiras de risco que lhe colocarão muitos detractores à porta. Os processos de concepção e de produção não se afastam daqueles a que muito do actual design high-tech deita mão, e ocorrem a cada tanto sobressaltos decorativistas que só ofenderão aqueles que deixaram há muito de saber o verdadeiro significado do termo décor. Veja-se esta peça e aquela outra: pois que não são tal e qual um pé-de-candeeiro da marca "x"? Pois é, mas todos estes candeeiros, consolas, cómodas, aparadores, contadores e demais parafernália, são os totens com que Cragg compõe, com virtuosismo, uma paisagem estética cheia de qualidades catárticas sobre o nosso deslassamento ambiental, e onde a escultura enquanto expressão - diz o artista no belíssimo vídeo «Inside | Outside» que acompanha a exposição -, «ultrapassa todos os interesses, porque não é nem natureza nem indústria [cultura]». De onde lhe virá, dizemos nós, a capacidade de baixar as expectativas e esvaziar a pressão numa atmosfera muito calhada a demagogias arty e a tonitruâncias camp. Talvez não seja fácil de encontrar proclamação mais alinhada com os ventos da contemporaneidade estética e mais artisticamente engagé do que esta. Portanto, quanto a uma arte de causas, é isto.

 

Eroded Landscape,1998. Sandblasted glass, 252x150x150 © M. Richter

 

Com cinquenta e quatro obras expostas, entre esculturas, instalações, objets trouvés e desenhos, não será prudente achar que em «Rare Earth» tudo se equivale. De resto, dentro de um horizonte temporal que recua a 1979, com a instalação «Spectrum», muito conseguida e magnética, mesmo que acusando um tanto já a passagem do tempo, o que agora a agrava com um certo ar a lugar-comum; e chegando a 2021, com uma série de quatro peças gráficas sem título, a lápis sobre papel, e cuja necessidade no seio desta exposição não está demonstrada, dado o aspecto demasiado bem-comportado que encerram; os momentos altíssimos sucedem-se com tal encadeamento que não cai mal dizer de «Rare Earth» que é uma cordilheira de triunfos. Já só por si, a sala de abertura, onde as duas primeiras peças da exposição, «Eroded Landscapes» (1998) e «Foreign Body» (2015), se debatem num diálogo exquis riquíssimo, é um trunfo curatorial tão saliente que numa tirada cheia de soberba pode mesmo dizer-se que consumam logo ali, e apenas entre elas, todo o alcance da exposição. E em exposição que assim abre, aceita-se mal que feche com a muito desinspirada «Spring» (2016) e o seu zoomorfismo fora de escala a passar a mensagem, infelizmente demagógica, de que com a diligente imitação da natureza, a arte lá se vai desenvencilhando. Mas pode dar-se o caso de que tenha sido somente uma infelicidade de colocação, que aqui não perdoa o equívoco em que pode tornar-se enclausurar as obras de Tony Cragg em espaços museológicos, quando o que elas exigem é 'open air'. E disto se ressente precisamente a campanha paralela Cragg-in-Terreiro-do-Paço. É que a Praça do Comércio não é galeria diferente de qualquer recinto 'arquitecturado' de um museu, que acanha e oprime estas esculturas. No limite, que chega a apoucá-las. É por isso que a preciosa lição que «Rare Earth», no MNAC, persegue tem de buscar-se num par ou dois de obras a que uma espécie de acaso oferece experiências de recorte raro. Para não cair num registo particularmente opinativo, nem judicioso, é o que sucede com a comovente instalação «The Worm Returns» (1985), que faria a inveja de um Arman; com as sombras projectadas nas paredes do museu pela peça insólita «Red Figure» (2008), que um Murnau teria levado para o seu «Nosferatu»; e com o par «Hollow Columns» (2010) e «Elliptical Column» (2009), ambas em aço inox, e que postas na sala-auditório onde é projectado o vídeo «Inside | Outside» (2018), adquirem cintilações caleidoscópicas que farão corar um Kapoor. Mas a jóia indiscutível de «Rare Earth» está produzida em alumínio e é uma síntese dos muitos Craggs que tem havido, o do vazio cultural, o das visões escatológicas, o do virtuosismo formal, e sobretudo o do gosto desesperado pelas vistas trocadas de um real truncado. Ironias. Chama-se «Upright» (2016) ["Erecto"/"Vertical"] e faça-se dela um ícone da cidade. De Lisboa, por exemplo.

 

 


João Borges da Cunha
Doutorado em Estudos de Cultura, Universidade Católica Portuguesa. Arquitecto, Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa. Professor no Departamento de Arquitectura da ECATI [Escola de Comunicação], Universidade Lusófona. Investigador nos centros ARQ.Id e CECC. Publicou ensaio, teatro e ficção.