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TECNOLOGIAS MILLENIALS E PÚBLICO CONTEMPORÂNEO. REFLEXÕES SOBRE A EXPOSIÇÃO 'OCUPAÇÃO XILOGRÁFICA' NO SESC BIRIGUI EM SÃO PAULOCÉLIA BARROS2023-01-20
Quando pensamos em xilogravura, é comum imaginarmos alguém sentado em um ateliê, entalhando pranchas de madeira que, após entintadas, serão impressas sobre papel, para depois se converterem em ilustrações de livros ou serem expostas na parede. Esse processo, que hoje é tido como artesanal, em seu tempo foi considerado uma revolução tecnológica quando associado à invenção da imprensa tipográfica, no contexto europeu do século XV. Ocupação Xilográfica é uma exposição que se multiplica por diversos espaços do Sesc Birigui, procurando realçar a vitalidade de processos contemporâneos dentro da xilogravura em São Paulo e a intensa pesquisa que cada um dos onze artistas desenvolve, seja a partir das investigações sobre a cor, da diversidade de abordagens pelo desenho ou da espacialidade do trabalho. As obras expostas apresentam diversos formatos e escalas de trabalho, desde o livro de artista a interferências no edifício, além de experiências a partir da matriz xilográfica: a madeira que, enquanto linguagem e resistência material, afeta a criação das imagens. Os artistas que participam da mostra usufruíram de diferentes aprendizagens práticas e teóricas que afetam os seus modos de produzir. Para seguir explorando a geração de imagens a partir da vivência coletiva, a exposição conta com um ateliê e uma programação de oficinas onde o público poderá experimentar diferentes técnicas assim como a exposição temporária das suas produções de forma a ampliar a nossa maneira de imaginar a imagem gravada.
Quando a palavra ars se confunde com techné [1] Técnica é pura criação; desde sempre inventamos tecnologia para inventar o mundo, e essa ação produz o que chamamos de cultura. Poderíamos tirar partido do fato de vivermos num mundo que idolatra os avanços tecnológicos e desvaloriza as potencialidades criativas para passar a utilizar o termo “técnica” quando queremos falar de “arte”, quem sabe assim nos protegemos dos ataques constantes a este aspecto vital de qualquer sociedade e alcançamos o tão sonhado 1% para a cultura. Penso muitas vezes em inventar uma palavra menos categórica, menos carregada de lutas e exorcismos, para facilitar o diálogo com um público mais amplo, de perfil diversificado e que não domina os códigos específicos da arte contemporânea mas compartilha a experiência de vida atual com suas diversas inteligências e conflitos. Vale lembrar que em comunidades não ocidentais, uma ideia concreta do que é arte e que características configuram um artista não faz muito sentido. E nos modos de vida não hegemônicos, é frequente o fazer criativo provocar desvios que despertam o olhar para outras perspectivas. Voltando à questão do financiamento público para a cultura, é importante compreendermos que essa possibilidade só faz sentido numa sociedade que não estabelece diferenças rígidas e/ou hierárquicas entre quem pode ser artista e quem se identifica como público. Um mundo saudável precisa de pessoas que se expressem, meios, espaços e ferramentas para que isso aconteça. Precisa de tempo, transferência de saberes e ambientes de convivência. Um mundo saudável precisa ser habitado reconhecendo as suas sombras e transformando dores e gozos. Se conseguirmos um ambiente transitável entre os diversos agentes culturais precisaremos cada vez menos de “grandes artistas geniais” e é provável que diminuam as grandes multidões em torno de uma única obra. Essas questões me levaram a querer investigar a temática da xilogravura de uma forma ampla. Afinal, o que motiva jovens artistas do século XXI a utilizarem uma técnica rudimentar, com características artesanais, que dificilmente tem inserção nos circuitos mais elitistas da arte contemporânea? Pode uma técnica tão simples aproximar públicos de diferentes perfis do fazer artístico? Podemos montar uma exposição que não só reverencie a coragem estética desses jovens, mas também exponha metodologias, recursos e linguagens, abrindo os processos criativos ao maior número de pessoas? Quando estudamos a história das exposições, torna-se visível a capacidade desse mecanismo de colocar ideias e pessoas em movimento. Infelizmente, essa história tem se guiado por uma mentalidade eurocêntrica, com tendência a seguir um padrão hegemônico e hierárquico, em que definições estritas separam categorias artísticas, implicando necessariamente na separação dos corpos sociais que as praticam. Vale lembrar que o público das exposições só recentemente começou a ser entendido como parte desse agenciamento e que, como tal, precisamos aprender a ouvi-lo.
Um gesto eternamente recriado A xilogravura é uma técnica milenar cujos primeiros registros datam de aproximadamente 2 mil anos atrás e são provenientes da Índia e de outras regiões da Ásia. Na época, era empregada a técnica da aplicação de carimbos, ou “block print”, na estampagem de tecidos ou na reprodução de textos chineses, utilizando “tipos” (ou letras) de madeira para a confecção de orações budistas, cartas de baralho e papel-moeda. Como se trata de materiais perecíveis, é provável que sua origem seja ainda mais remota, já que os especialistas encontram indícios antigos de sua presença em carimbos de pedra ou madeira usados na estampagem de tecido, papel ou sobre a pele e a cerâmica na região ameríndia. Os historiadores divergem ao determinar sua antiguidade, já que a estampagem em tecido tem relação com a história da moda, enquanto a história da gravura ocidental costuma se restringir a impressões sobre papel dentro do circuito artístico, e não leva em conta as imagens impressas para outros fins. Se cruzarmos as diferentes histórias das técnicas de impressão, poderemos considerar que o formato da xilogravura é imprevisível, assim como o gesto e os corpos que atuam nessa linguagem. Ao relacionarmos os carimbos ameríndios com a experiência xilográfica, torna-se mais fácil compreender os usos contemporâneos da poesia urbana que utiliza lambe-lambe ou as interferências murais que fazem uso de diferentes técnicas de estampagem. Delimitar o início da narrativa xilográfica à publicação de livros impressos implica reconhecer seu uso apenas dentro da compreensão ocidental da história da arte e da gravura – uma história que sistematicamente assimilou o valor estético ao valor institucional e de mercado, que, por sua vez, impôs regras à produção artística, limitando edições e definindo tamanhos ou modos de exposição. Parte destacável da exposição Ocupação Xilográfica é o painel de matrizes cedidas pelos artistas, no qual o público tem acesso à forma como cada artista negocia seu desenho com a rigidez da madeira, revelando a velocidade ou a sutileza dos cortes, assim como as diferentes estratégias de uso do suporte. Perante as matrizes, torna-se visível o embate com a matéria, a destreza do corte ou a delicadeza do entalhe. A escala torna-se ainda mais presente, já que uma matriz pequena geralmente exige uma mesa de apoio e um corpo estável de mãos ágeis. Mas, conforme nos damos conta da dimensão das matrizes, fica evidente o peso e a necessidade de o corpo inteiro negociar o desenho. À medida que as matrizes crescem, é comum os artistas ocuparem o chão ou usarem a parede como apoio para o entalhe. No projeto expográfico, foi importante definir um espaço de convivência entre a mostra e o ateliê, de forma que o aprendizado aconteça entre a fruição das obras, a experimentação técnica e o reconhecimento das ferramentas e suas possibilidades de exploração, uma pequena “xiloteca” de matrizes, que podem ser compartilhadas e usadas livremente na criação de novas imagens, cruzando autorias, além de um espaço expositivo onde o público negocia seus discursos expositivos. Entender a prática artística como uma plataforma horizontal para o intercâmbio e o diálogo, desde uma perspectiva em que aprendemos fazendo e vivenciando, implica reconhecer que o público visitante não é uma entidade monolítica, mas que detém um saber valioso que é importante ser ouvido, para que os espaços culturais se mantenham vivos e não se convertam em mausoléus do saber. Assim, tão importante quanto apresentar uma diversidade de artistas e propostas estéticas a partir de uma técnica tão simples quanto a xilogravura, é fundamental encontrarmos espaços para a escuta e a transformação da própria exposição.
Fernando Mariano, Vivencia (2020). Xilogravura sobre papel. © Jailton Leal
Fernando Mariano A história recente da arte ocidental ficou marcada pelas disputas em torno do sentido do fazer e fruir artísticos, numa busca quase incessante por apresentar uma resposta definitiva para algo que permanece latente. Tais disputas teóricas, embora hoje sejam consideradas anacrônicas em face da pluralidade de fazeres e de aberturas estéticas que convivem em qualquer centro cultural contemporâneo, alimentam sub-repticiamente nossas relações com propostas de diferentes artistas e linhagens estéticas, exigindo-lhes, de uma forma ou de outra, um posicionamento que se aproxima de um manifesto artístico para justificar sua existência. No entanto, se hoje assistimos a essa multiplicidade de processos de criação que originam não só os mais diversos objetos, mas também conceitos artísticos multifacetados e fragmentados que desafiam a definição de arte, isso se deve, em parte considerável, a fenômenos econômicos e sociais que destituíram antigas hierarquias, invalidando os espaços hegemônicos. É nesse encadeamento que surgem outras pessoas, de distintos estratos sociais, que incorporam outras epistemologias e outros sentidos para a vida contemporânea, ampliando as possibilidades do que pode ou não ser um artista, do que pode ou não ser arte. No Instituto Acaia, que atende crianças das favelas do entorno da Ceagesp, jovens como Fernando Mariano têm acesso desde cedo a diferentes linguagens artísticas por meio de projetos que dialogam com a arte contemporânea de forma aberta e dinâmica. É nesse contexto que o artista desenvolve sua habilidade no desenho e no uso da cor na xilogravura e, gradativamente, dá início a uma negociação com o que lhe importa representar: o ambiente da favela, os preconceitos que envolvem seus habitantes, a coletividade que emana dessas conexões. Em sua trajetória artística, Fernando tem manifestado graficamente um uso seletivo da cor, trabalhando a arquitetura frágil e apertada da favela por meio de espaços sombrios e contrastes de luz. Gestos simples, da convivência, do brincar e do compartilhar, são referências tão importantes quanto Jean-Michel Basquiat ou seus amigos do coletivo Xiloceasa.
Gabriel Balbino, Sem título (2018). Xilogravura sobre papel polen. © Jailton Leal
Gabriel Balbino As composições xilográficas de Gabriel Balbino passam por uma exploração técnica permanente em que a cor é a base para o processo de elaboração das imagens. Geralmente inspirado em elementos da natureza, o desenho gradativamente vai dispersando sua figuração em busca dos componentes essenciais que darão o contraste necessário, de forma a criar certa desestabilização cromática. Reconhecemos, em seu processo criativo, as ferramentas de síntese na elaboração do desenho, assim como as sobreposições sucessivas que vão criando uma imagem dinâmica e dispersa, simultaneamente. Mais do que uma metodologia para a abstração, poderíamos falar de uma experimentação empírica que se organiza de forma orgânica, utilizando recursos que estão mais próximos do espaço do brincar, e se diferencia de lógicas mais racionais, em que predominariam associações simbólicas da cor e da forma. Nas xilogravuras de Gabriel Balbino somos confrontados com a liberdade e a força da cor, desviando-se das associações alegóricas que nosso senso comum tende a fazer. No recurso da matriz perdida, procedimento recorrente em sua linha de trabalho, é necessário que o artista utilize a mesma prancha de madeira, que vai escavando a cada série de impressões, até chegar à sobreposição-limite na qual o que resta é uma matriz que foi perdendo sua matéria-base, o que impossibilita novas reimpressões. Balbino vem se aprofundando no uso da cor, sobrepondo camadas sucessivas ao papel, transformando-lhe a materialidade leve e sutil em gradações que, ao interferirem umas nas outras, parecem sugerir uma presença quase escultórica.
Igor Romualdo Com um desenho intuitivo que parte da memória mais do que da observação direta, Igor Romualdo povoa suas xilogravuras de ambientes naturais, com os quais pode ou não ter tido contato direto. Bichos simpáticos, apesar de sua ferocidade, animais mais ou menos selvagens, peixes, baleias, mansamente posicionados sobre um fundo quase inexistente, nos aproximam de toda uma animália que habita o imaginário fértil do artista. Hoje professor, o jovem deu início a sua formação artística no Instituto Acaia, onde hoje atua. Ali a aposta é no fazer coletivo e compartilhado, no qual a criatividade se alia à técnica por meio de processos espontâneos, enriquecidos pela vivência e pelo repertório de cada um. Igor tira partido desse contato, dispensando qualquer gesto artificial que possa atrair repertórios que não sejam seus e mantendo-se fiel a uma gestualidade descontraída que se apropria de formas erráticas. Seu corpo relaxa enquanto ele risca diretamente a madeira, ao encontro das formas desses bichos pacatos que vão surgindo ao escavá-la com gestos abertos. O gesto expressa uma compreensão do contraste a ser provocado pela técnica xilográfica, esvaziando as figuras e subentendendo os limites do desenho, que modula de forma orgânica e expressiva.
Jovana Basilio Aos 10 anos, Jovana ouviu os amigos falarem do Instituto Acaia e, embora ele não fosse tão perto de sua residência, ela resolveu que queria se aproximar daquele espaço, e fez desse lugar a sua segunda casa. De quanta teimosia se faz um artista? De quanta persistência e convicção se faz uma jovem artista que é mãe-solo e reside na periferia de uma cidade como São Paulo? Entre a palavra, o desenho e a xilogravura, nasce a “xiloesia”, uma forma criada pela artista para compor a relação entre imagem e palavra. Corpo que Movimenta a Terra inaugura outra fase de sua trajetória, em que ela opta por focar a temática da maternidade como questão central de seu trabalho. Jovana faz uma fusão da prática do lambe-lambe e da poesia urbana com a imagem xilográfica, num diálogo que se afasta da relação ilustrativa e faz da palavra uma expressão gráfica que, longe das fontes tipográficas padronizadas, usa o espaço da madeira a seu favor, e na qual as letras se impõem de forma orgânica. Como jovem artista que é, em seu trabalho apenas desponta o que está por vir. A maternidade como tema de quem vive o corpo solo, corpo mãe está fora dos clichês a que estamos acostumados. Sem falar de amor, a artista opta por retratar corpo, movimento e terra, apresentando uma imagem que foge da padronização de cores a que estamos submetidos e cria uma relação com a terra-raiz, a terra-multidão, a terra-conexão.
Julia Bastos, Morphemater (2019). Linogravura sobre papel color plus. © Jailton Leal
Julia Bastos Metamorfose é, sem dúvida, uma palavra poética. Sua origem está associada à biologia, particularmente ao estudo de alguns insetos e batráquios que, quando passam à idade adulta, vivenciam um processo de quase morte ou de mudança estrutural radical de seu corpo. Para esta exposição, a artista se debruça sobre essa experiência e relaciona diversos processos biológicos de plantas e animais com a vivência do corpo humano. Irremediavelmente feminino, o corpo representado transita pelos sinônimos da metamorfose, que, além de poética, costuma ser dolorida. Esses corpos sofrem mudanças, transformações, transmutações. Eternamente indefinidos em todas as suas formas, são corpos em que a mutação se configura como passo necessário para a existência. A pesquisa artística de Julia Bastos transita por diversas linguagens das artes visuais, que vão do desenho à fotografia, passando pelo bordado e pelo livro de artista. Na xilogravura, Julia atravessa facilmente diferentes escalas, investigando o formato da matriz de forma expandida. Assim, vemos a placa de madeira sendo recortada, encaixada, separada, o que faz com que sua materialidade seja parte da construção da imagem, que tende a elaborar paisagens corpóreas. Como se o espaço da gravura em si mesmo fosse um organismo vivo.
Kamila Vasques Que estruturas invisíveis sustentam o que está aparente? Kamila Vasques trabalha a partir do imperceptível, que alicerça como condição fundamental para a existência, mas cujo desenho se projeta para, sendo ignorado, determinar. A artista se apropria das mensagens subliminares da arquitetura e da escrita – vãos de escada, guarda-corpos, pilares, portas, esquinas, fontes e tipos de letra –, criando ruídos que as obriguem a sair do silêncio. Surgem, assim, as interferências: propostas espaciais que dialogam com a arquitetura, evidenciando os espaços silenciados. Nesta exposição, temos a oportunidade de ver um amadurecimento do trabalho da artista. Em (in)visível estrutural, Kamila reutiliza ferramentas que aparecem em trabalhos anteriores: composições a partir de fontes diversas em que a letra se apresenta como desenho e a ocupação gráfica de espaços desapercebidos dá sustentabilidade a sua presença. Desta vez, porém, a modulação antes ruidosa, que provocava o reconhecimento do que parecia irrelevante, passou por um processo de modulação em que as fontes tipográficas ganharam diferenças de proporção e estudos sutis em termos de cor, que impactam a percepção total da interferência. Agora a artista optou por utilizar papel manilha cinza como fundo para a variação das composições gráficas, o que produz um efeito diferente do branco ou do papel pardo que usou em outras ocasiões. A continuidade dessa cor difusa provoca uma entoação ao longo da arquitetura do Sesc Birigui, dando-lhe unidade e fragmentação em simultâneo. A cor e a sutileza das variações tonais voltam a ser predominantes na segunda obra que Kamila apresenta na exposição. Em Fluxo Ruidoso das Fontes, a artista se apropria das cores da arquitetura expográfica para, em vez de iluminar sua presença, trazê-la para a paisagem. As letras tipográficas de diagramação rígida a que Kamila nos tem acostumado aparecem agora amolecidas, amontoadas, movimentadas, em fluxo, ainda indefinidas e em trânsito entre as cores índigo, petróleo-ciano, esmeralda e abacate, que, em uma repetição incessante, se aproximam, bem lentamente, de uma paisagem noturna.
Lira Nos processos que conduziram a escrita e o debate ocidental da história da arte, é comum a discussão sobre o belo se confundir com as escolhas estéticas e o debate sobre o fazer artístico. O belo insinuou-se nessa história por diversas mãos e interesses, tendo por objeto recorrente o corpo feminino e a paisagem. Apoiando as mais diversas narrativas, a paisagem sublime ou reconfortante e o corpo feminino surgem invariavelmente de acordo com os padrões e contextos de cada época e lugar, e alimentam uma relação com o objeto artístico que parte de uma ideia de harmonia e contemplação, exigindo-lhe que seja belo. Habituados que estamos a presenciar rostos e corpos femininos em quase todos os gêneros artísticos, não teríamos por que considerar a série de xilogravuras que Lira nos apresenta nesta exposição um gesto político. Mas, olhando-nos seriamente e entintados em dourado, esses rostos parecem pleitear outras condições para habitar a arte, discrepando de uma atitude que apela à beleza. Com títulos de diversos continentes, as imagens apresentam mulheres que se distanciam do exótico e se impõem em nosso imaginário a partir de recursos próprios. A cor dourada interfere nessa percepção, confundindo os limites do desenho e de sua simbologia. Uma nova relação se apresenta, reivindica-se a existência e a presença.
Luisa Almeida Não há como falar de xilogravura sem citar corpo, gesto, resistência material e persistência física. Quem teve a experiência de proporcionar o aprendizado da xilo a um pequeno grupo de pessoas rapidamente deparou com os limites que a técnica impõe: para fazer a goiva fluir sobre a madeira, é preciso se adaptar ao material, compreendê-lo, para então desviá-lo a seu proveito. Luisa Almeida leva essa experiência ao extremo: interessada na confecção de imagens de grandes dimensões, ela desdobra sua pesquisa estética em paralelo a uma investigação sobre procedimentos técnicos de impressão na xilogravura. Vale referir que, nessa técnica de características artesanais, realizar imagens implica carregar matrizes de madeira que, conforme seu tamanho, podem ter peso elevado e grandes proporções. Tudo isso em sintonia com a força necessária que precisa se intensificar para dar conta de entalhar a matriz. Com a consciência corporal de uma mulher de vinte e poucos anos, Luisa idealizou diversas estratégias, traquitanas e engenhocas para contornar os limites de seu corpo, desde determinar o tamanho das placas à medida que seus braços dão conta de carregar o peso até fabricar um rolo de concreto que possa imprimir a chapa de MDF no chão, sem a necessidade de ficar horas imprimindo manualmente, o que acabaria por extenuar seu próprio corpo. A tecnologia desenvolvida por Luisa para produzir essas xilogravuras, que se aproximam da escala de um para um, denuncia o que vemos nas imagens: estratégias para vencer a morte, a fragilidade e o limiar da matéria viva.
Rafael Toledo, Chuva Ácida (2020). Xilogravura em plástico, cristal, rebites de aluminio e estrutura de aço.
Rafael Toledo A tridimensionalidade tem sido uma tônica nas obras recentes de Rafael Toledo, que faz uso da experiência espacial para a percepção de seu trabalho. Assim, é comum sermos capturados inicialmente por algum aspecto jocoso que envolve a obra. Algumas vezes somos atraídos pelas camadas de cor sobrepostas, que criam uma imagem difusa; em outras, pelos materiais inusitados no campo da gravura. Às vezes a dinâmica de exposição parece simular um jogo no qual o visitante precisa adentrar um campo que exige sua participação, ou até um desafio inocente. Ao nos aproximarmos, porém, a jovialidade ingênua se desfaz, deixando transparecer um universo de densidades. Tanto Chuva Ácida quanto Cabeça de Ponta apresentam um uso criativo da matriz xilográfica, utilizada de forma repetida para criar um objeto de dimensões variadas e até inusitadas, desafiando a própria espacialidade da exposição. Em ambos os trabalhos, permanecem esses rostos escancarados, grotescos, entre uma humanidade cansada e a ferocidade ridicularizada. Rafael utiliza a palavra perversidade para falar de seu processo criativo, denunciando abertamente o livre trânsito da truculência humana. De um lado, o gesto de captura por parte do artista; de outro, as subjetividades manifestas do espectador.
Santídio Pereira O entalhe da goiva sobre a madeira se converteu num corte radical da placa de compensado, transformando-a em módulos menores que configuram a personagem principal da imagem: as bromélias. Sem segredos, a flor vê sua escala expandir-se além de sua existência na paisagem. Seu traçado exuberante recebe modulações e recortes inusitados no desenho, a cor transforma-se e afeta o corpo da planta como uma síntese de si mesma. Santídio Pereira se refere frequentemente à paisagem e às cores da caatinga, seu ambiente natal, como fonte de inspiração e respiro para a elaboração de imagens de sobrevivência. Imagens que possam inaugurar momentos felizes entre o aperto de um dia a dia que a cidade de São Paulo faz espremer. No meio da cinzenta garoa, brotam monumentos à flora brasileira, gestos simples que reivindicam o reino das coisas belas. Se, em tempos ainda recentes, o Piauí era uma memória à qual o artista retornava para recuperar a essência vital na criação de imagens, aos poucos esse lugar se expandiu e vem conseguindo ocupar outro tempo, do porvir e do vaivém, entre as várias paisagens que os biomas brasileiros oferecem e que despontam em suas obras. A reivindicação do belo, das coisas belas, da harmonia e da graciosidade a partir de uma paisagem em risco, antes pelo êxodo e agora pela devastação agropecuária, nos permite conectar-nos com a resiliência da “floresta branca” da caatinga, cujas plantas desenvolvem tecnologias para reter água na aridez. No branco gigantesco do papel de arroz, impõe-se um desenho virtuoso que sintetiza o exuberante.
Taís Melo A artista transita pelas ruas do Bixiga, tradicional bairro de São Paulo recheado de curiosidades pitorescas, com o olhar de quem está atento às possibilidades da vida. As xilogravuras de Taís Melo abordam o tema da cidade pelo viés de quem precisa habitá-la. Aluga-se Quartos é uma série que se iniciou como ensaio performático-fotográfico no qual a artista se fazia passar por possível futura inquilina para adentrar pequenos espaços habitáveis e fotografá-los. Nesses lugares ínfimos, a preços inalcançáveis para quem vive e mora na periferia, Taís perscrutava os ambientes, procurando resquícios de habitabilidade. Diferentemente do olhar turístico que se encanta com a diversidade cultural do bairro, suas cores, bares e restaurantes, o foco da artista recai sobre os pequenos anúncios colados de forma quase aleatória, num misto de quem quer aparecer mas não querer chamar a atenção. As imagens são apertadas entre si, enfatizando a sensação de confinamento e o espaço inóspito. Em vez de um apelo, como sugerem os anúncios, as pequenas xilogravuras nos desencorajam permanecer na gentrificação que o movimento perpétuo da cultura imobiliária estabelece como prática de vida instagramável.
Célia Barros
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Notas [1] A palavra arte tem sua origem no latim “ars” e corresponde ao termo grego “techne”. Em sentido lato, significa habilidade, destreza, agilidade. Em sentido estrito, instrumento, ofício, ciência. No entanto, a palavra tem sido palco de disputas conceituais que reivindicam, conforme as urgências de seu tempo, a distinção entre o fazer artístico, os processos criativos, a habilidade técnica e a tecnologia utilizada.
Ocupação Xilográfica
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