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TEHCHING HSIEH: HOW DO I EXPLAIN LIFE AND CHANGE IT INTO ART?MADALENA FOLGADO2023-08-10
No texto curatorial da exposição de Tehching Hsieh, por Klaus Biesenbach e Lisa Botti, patente de 1 de Abril a 24 de Setembro de 2023 na Nue Nationalgalerie, em Berlim, pode-se ler em citação directa a seguinte afirmação do artista:
One day I go to clean a restaurant, and I come home and I am just work, back, work, back home and thinking what am I looking for? I am already in the piece. My work is about how I explain life and change it into art. I create, but my creation is not like an object, it is an idea which is basically life, it deals with time.
A vida não se explica. Tal como disse a poeta sobre a poesia, nela nos implicamos — Ou não. A vulnerabilidade, condição humana constitutiva — como também o é o poder — é tantas vezes confundida com aparições histriónicas e/ou puramente narcísicas…e com elas, diria, pior ainda, a glorificação da empatia, que hoje se vai financiando para com-pensar o incompensável. Tantas performances artísticas, auto-proclamadas de políticas, parecem hoje ter a durabilidade e consequente profundidade prevista para serem configuradas para a aplicação Tik Tok. Mas, “A imagem não é um reino” [1]. E isso sente-se em Tehching Hsieh. De tal modo, que ali mesmo, na Nue Nationalgalerie, se criam em colaboração com os visitantes duas atmosferas distintas: Os “100 Works for Berlin” de Gehard Richter são expostos ao lado, não sem uma multidão de visitantes ruidosos que os interpolam com os seus smartphones. O registo documental exposto referente às seis performances do artista taiwanês, cada uma de pelo menos um ano, instaura uma outra atitude, porventura mais silenciosa. Será que esse silêncio é rentável? O quão insuportável pode ser a continuada escuta do pulsar da Vida? — O Real do qual nos defendemos, com reencenações várias. E eis uma tal angustia, referente ao Vazio, que é também ele constitutivo do ser humano. Porque permitimos, então, que seja preenchido pelo que não pulsa, se até as pedras pulsam, porém, mais lentamente? Visito Berlim no contexto de um esforço de integração de um conjunto de experiências, profundamente (per)formativas, que ocorreram no decurso de um período de dez anos da minha Vida. Tais experiências, remetem a eventos nos quais a Vida deu a si própria a sua forma, se rasgou para a sua dimensão poética, o que é diferente da sua substituição pela cultura vigente; cujo vigor, nem sempre parece resultar da sua atualização enquanto dádiva, mas antes, da sua atualização por servidão voluntária…E, portanto, que me empurraram para uma responsabilidade autoral inalienável, na exacta medida e proporção da consciencialização contínua da sua irredutibilidade — o limiar da própria Vida e da Vida própria. Encontro-me, de momento, a elaborar um Atlas que não é um mero mapeamento — principalmente no sentido académico do termo, ou até em alguns casos, artístico, se se referindo ao trabalho de arquivo. O que parece óbvio, afinal, não é: Proponho Um Atlas com caminhos para que o mundo não se feche — não se feche em conceitos, no tocante à desejada incomunicabilidade daquilo que é a consciencialização da diferença irredutível, e o mundo que a partir dela se vê. Os eventos que fazem o Atlas aconte-Ser não cabem ser comunicados neste texto. Porém, a força maior da Vida, compele-me a procurar ressonância na seguinte exortação: Quando o teu caminho se encruzilhar com a cultura vigente, “Põe uma escada e sobe ao cimo do que vês” [2] — E não é de verticalidade medida no eixo Z, ou latitude que vos falo. Muitos dos títulos das exposições com as quais me cruzei em Berlim eram em muito semelhantes aos títulos de artigos científicos, dissertações de mestrado ou teses de doutoramento em áreas artísticas. Como que igualmente se esforçando por não ser ‘panorâmicos’ e, portanto, desta maneira, visando limitar a investigação — Note-se, limitar, para cunhar. Parafraseando o indígena Ailton Krenak estamos imersos no colonialismo, que aqui se entende enquanto extensão do capitalismo, pensando-se, por conseguinte, as narrativas mais e/ou menos oficiais, de adequação à lei da procura e oferta do mercado da arte, enquanto fim de alguns cursos universitários. Estranho é, que em alguns casos, nesta Berlim artisticamente emancipada e pós-colonialista, o título de Professor venha antes do próprio nome do artista e/ou curador conferencista pós-colonial e, de um modo geral, que o Curriculum académico se substitua ao Vitae, no tocante ao modo como se pretendem capturar públicos, i.e., subordiná-los a uma autoridade meritocrática. Para Teching Hsieh e muitos outros artistas — alguns dos quais que nunca mostraram o seu trabalho — Curriculum Vitae é ainda Curso de Vida. O grande valor artístico, porém menos de mercado, é a possibilidade de se compreender que se é um Curso de Vida, e não, que se possui um Curso de Vida. A velocidade com que se programam exposições, equipara-se cada vez mais à velocidade com que um académico deve, meritocraticamente, inscrever novos títulos no seu Curriculum Vitae. Talvez haja na ideal abertura das Instituições uma necessidade de reduzir o enquadramento do mundo, passando de panorâmico para retrato. Melhor: auto-retrato, funcionalidade ao alcance de todos os que possuem um smartphone, através de uma segunda câmara incorporada de foco invertido. Talvez, como refere o indígena, tudo se trate apenas de uma hemodiálise corporativa — usando diferentes corpos. Por outro lado, Ailton Krenak fala-nos de uma “busca ativa” para ‘enfiar’ indígenas numa Universidade e dar-lhes o título de Doutor, enquanto modo de transformar indígenas em ‘brancos’ sem, aparentemente, ofender ninguém. Há que muitos passos atrás dar no sentido daquilo que chamamos caminho pós-colonialista; sem nos dar-mos conta, muitos de nós fomos ao caminho subtraídos por inesperados e crescentes privilégios — compreenderá o que se quer dizer, quem ingénuo não for de se pensar num mundo dividido em bons e maus. O extrativismo tem lugar hoje também entre os mais prestigiados criadores, porque o que se troca na tal hemodiálise é a Vida. E há muita Vida naqueles que não seguem a velocidade produtiva mórbida do mercado da arte entre outros. Para muitos de nós — não indígenas — o elo entre arte e Vida continua a ser inexplicável. Como na visão aborígene, em que o mundo surge de ser sonhado; i.e., que a causalidade a par da arte é um modo desse sonhar, que escapa a todo o não marginalizado. [3] A condição de marginalidade é necessária, e, acredito, hoje dificilmente se encontra no seio e proteção das Universidades — também — chamadas de Alma Mater como a Mãe Natureza. Tehching Hsieh é um auto-didacta nascido em 1950, com 12 irmãos, que cresceu em Nan-Chou, uma vila nos arredores de Taipé. Abandonou a escola para através do foco na arte compreender a Vida; Ser e tempo são os seus interesses. Chega a Nova Iorque após, e estritamente para o efeito, ter ingressado na Marinha da então Taiwan sob regime marcial. Permanece em território norte-americano, de 1974, ano em que chega, a 1988 como emigrante ilegal. As suas referências são Dostoyevsky, Kafka e a sua mãe [4] Por outro lado, pior do que a irracionalidade enquanto debilidade humana da inteligência e do conhecimento das emoções, é como sabemos os efeitos da irracionalidade tomada por racional, porque ao abrigo do prestígio das instituições. Se os termos que envolvem as questões do "Ser e do Tempo”, título da obra do filosofo Martin Heidegger, já são penosos à compreensão, que não a dada pela Vida, alguns dos títulos e “conceitos” de obras que vi em Berlim, de tanto fugir ao panorâmico e/ou à experiência da Vida sucumbiam à tentativa de a representar. Só de ler, senti de imediato o comprometimento daquilo que pode ser apreensível pelo corpo; i.e., através do tecido vivo partilhado de sentido(s) e a sua reversibilidade…Tão caro à performance arte. Refiro-me àquela rigidez que surge não por vazio de linguagem, mas pela tentativa de desencriptar algo encriptado, que parece resultar de uma causalidade duvidosa…Tenho presente um certo ‘meme’ que me chegou através de uma artista, por email, intitulado “Qual o nome do seu projeto de arte contemporânea”. O corpo de trabalho de Tehching Hsieh são apenas as seis performances que tiveram lugar nos Estados Unidos — Apenas, enquanto uma totalidade em aberto, suficientemente panorâmica para abarcar tudo o que É, num determinado período de tempo da sua Vida. Não sucumbiu à tentação de as repetir e/ou fazer infinitas variações, no sentido de as mercantilizar — ou ganhar o suporte do mercado — como muitos artistas fazem por necessidade de ao mesmo pertencer, a par das crianças, que repetem a mesma ‘gracinha’ originária por apego à atenção dos pais. Desde do ano 2000 não criou, intencionalmente, novos trabalhos. Vive de Si mesmo, conseguiu pelas suas mãos recuperar um edifício que veio a adquirir e agora arrenda-o. Um dos pisos é disponibilizado gratuitamente a artistas por um período de tempo. [5] Em 2017 representou Taiwan na Bienal de Veneza, e desde então expôs no Tate Modern, MoMa, Guggenheim de Nova Iorque e agora na Nue Nationalgalerie. Antes ainda das seis performances, com lugar nos Estados Unidos, Tehching Hsieh saltou de um segundo andar em Taipé, fracturando ambos os tornozelos. Porém, considera o seu trabalho anterior à sua chegada a Nova Iorque, e ainda que fotograficamente documentado, bastante imaturo, não consegue propriamente justificar o porquê de tê-lo feito. Arriscaria afirmar que já procurava esse abismo que nos ensombra; o de separar a Vida da arte, porventura, já afinando a “forte vontade” que caracteriza as suas performances segundo Marina Abramović — assim foi caindo em Si. Para Sam, também assim chamado, a vida é “Life sentence” — Não é, diria, pena suspensa. Num tempo em que escolhemos mercantilizar o nosso imaginário e por conseguinte as nossas imagens; i.e., transferir para a IA a capacidade de imaginar, que é antes de tudo recombinar a realidade, nada me parece mais lúcido que um certo tipo de desamparo, não histriónico, ao qual Marie-José Mondzain faz referência:
O sentimento de trabalhar na fragilidade e na inconsistência, de viajar à beira do abismo ou de só poder criar renunciando a todo e qualquer apoio é parte intrínseca do movimento da criação. Quando me refiro ao abandono de todo e qualquer apoio, estou a pensar no que a pintura chinesa conceptualizou ao desenvolver o tema da figura “sem apoio”. A imagem não se apoia em nada e por isso não conhece nem o repouso nem a segurança. O que significa que é com base numa fraqueza insigne e num pôr em perigo que a arte desenvolve um poder de transformação, não uma transformação do mundo, mas uma transformação da relação entre os sujeitos que constroem e partilham o mundo. Qualquer poder de transformação supõe uma redistribuição imaginária dos lugares, uma mobilidade ininterrupta das situações subjectivantes. Se a arte não produz objectos, isto é, coisas com valor de mercadorias que reificam signos, ela produz não objectos e não coisas que incarnam o nada de uma indeterminação promissora. [6]
Há uma marginalidade em Curso de Vida — Curriculum Vitae — que nos permitirá 'redistribuir lugares'; se não mesmo inverter as margens ou o curso do rio. Na primeira performance com um ano de duração, com início dia 30 de Setembro de 1978 e término dia 29 de Setembro de 1979, Sam barrica-se numa cela construída no interior do seu atelier, com apenas uma cama, um lavatório, um espelho e um balde. De acordo com o statement da performance exposto, um seu amigo receberia a incumbência de lhe prover comida diariamente, roupa e removeria os seus restos. Um advogado contratado para tal, seria responsável por assegurar que o ‘prisioneiro’ não violaria os limites a que se propunha, em dois momentos; no dia da sua entrada na cela e no dia de saída. Estaria oficialmente proibido de conversar, ver televisão ou ouvir rádio. De 11 de Abril de 1980 a 11 de Abril de 1981, na sua segunda performance, propôs-se obliterar um cartão num relógio de ponto a cada hora desse período. A cada hora era também fotografado pelo mesmo dispositivo. Estava, a par da performance anterior, equipado com um uniforme com o seu nome e tempo de ‘pena’. Os cartões eram assinados por uma testemunha, que ia variando ao longo dos dias, no sentido de precaver qualquer suspeita de fraude da sua parte. É-me incompreensível o desgaste físico ao qual o artista se submeteu, ‘não conheceu repouso’…Nem, uma vez mais, apoio institucional. Das 8760 horas, na sua inumanidade, Sam falhou 133. As fotografias das 8627 ocupam uma sala inteira na Nue Nationalgalerie, é impossível não fazer silêncio. O relógio é também exposto, assim como um vídeo de seis minutos criado a partir imagens. Percorrendo com o olhar as fotografias nas paredes, apercebemo-nos da passagem do tempo; mais evidente, através do crescimento do cabelo. Não resisti em procurar o dia em que nasci; Teching Hiesh esteve presente na minha hora. E, eu, confirmo agora que estou viva. Na terceira performance, no decurso igualmente de um ano, com início em Setembro de 1981, Teching Hsieh — já sem medo de usar o seu verdadeiro nome — propõe-se a permanecer na rua, sempre em ambiente exterior, vivendo como um sem-abrigo, o que, e especificamente de acordo com o statement da performance, excluiria permanecer sob o tecto de qualquer edifício, no interior de um carro, comboio, avião, gruta ou tenda, apenas se permitiu fazer uso de um saco-cama como proteção. Na sequência de uma briga de rua é preso por vadiagem; porém o juiz fora sensível à sua determinação artística e liberta-o, acima de tudo, de ficar sob abrigo [7]. Dia 4 de Julho de 1983, dá início a mais uma performance anual, desta feita, ficando preso a uma pessoa, a artista Linda Montano. Para tal usaram uma corda com cerca de 2,50 metros, impedindo-os de fazer toda e qualquer atividade separados. Poderiam conversar, sem contudo se poderem tocar. De 1 de Julho de 1985 a 1 de Julho de 1986, Teching Hsieh não fez, falou sobre, viu ou leu sobre arte. Tampouco visitou uma galeria de arte ou museu. Como refere no statement da performance “I just go in life”. Finalmente, a sua última performance ocorrera, no período não de um ano, mas de 13 anos. Teve início e fim no seu dia de aniversário, dia 31 de Dezembro, respectivamente de 1986 a 1999. O artista propôs fazer arte, contudo, não a mostrar publicamente. No seu aniversário, em 1999, pode-se ler numa colagem com letras de revista por si feita: “I kept myself alive. I passed the Dec. 31, 1999”. Esta é a Revolução que precisamos: Silenciosa. Ainda que solar e pessoal, é operada uma transformação muito para lá do sujeito que a deflagra. Será o próximo statement de performance de Tehching Hiesh um contrato impedindo a IA de usar as suas imagens? Uma coisa é certa, dentro de si, dificilmente o tempo será distorcido, e com o tempo, a percepção do que é Vida, por polaridade oposta à servidão voluntária. E nós, que contratos faremos? Integrar todas estas experiências é um trabalho artístico de louvar. Tehching Hsieh passou despercebido até há muito pouco tempo. Poder-se-á dizer que passou a ter significativamente mais visibilidade pela sua participação na Bienal de Veneza. Procurei que entradas existiriam sobre este artista no Catálogo da Biblioteca de Arte da Gulbenkian...Nem uma. No seu site, o seu contacto de email não tem um domínio, i.e., é um banal '@gmail.com'. E, não será o caso de apresentá-lo fazendo recurso ao cliché das Bio ou Curriculas Vitae de artistas, referindo que ‘vive e trabalha’, no caso, em Nova Iorque. Tehching Hsieh vive. Permitiu-se ser livre, mas não sem um preço. Por isso, eu mesma, não todos, mas quase todos os dias do ano, continuo a atravessar as margens do Tejo…Tantos são os artistas vivos marginalizados com os quais me vou encontrando…Pasteleiros, empregados de mesa, vendedores de fruta…Todos 'poetas à solta'. Termino com Clarice Lispector, que também percebeu que lhe bastava a Vida:
Mas como reviver? Se não tenho uma palavra natural a dizer. Terei que fazer a palavra como se fosse criar o que me aconteceu? Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei de criar sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar é correr o grande risco de ter a realidade. [8]
Em cada encontro, um caminho para que o mundo não se feche: Um Curso de Vida...afinal, muitos de nós também já nos tornámos conscientes de que já estamos/somos (na) obra.
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Madalena Folgado É mestre em arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Artes da Universidade Lusíada de Lisboa e investigadora do Centro de Investigação em Território, Arquitetura e Design; e do Laboratório de Investigação em Design e Artes, entre outras coisas.
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Notas: [1] Marie-José Mondzain, "Nada Tudo Qualquer coisa Ou a arte das imagens como poder de transformação" in AAVV, A Républica Por Vir, 2011, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, p. 112. [2] Daniel Faria, "Coeleth (Ecl 12, 1-7)" in Daniel Faria, Poesia, Lisboa, Assírio e Alvim, p. 159. [3] Timothy Morton, “What If Art Were a Kind of Magic?” in Art Review, 10 December, 2015. [4] Informação obtida no texto curatorial. [5] Theching Hshie, Delia Bajo, Breynard Cary "Theching Hshie", in Brooklyn Rail , Aug-Sept, 2003. [6] Marie-José Mondzain, op cit, p. 110, 111. [7] Hugo Glendinnin, Adrian Heathfield, Outside again, Taipei, New York, 2017. [Curta-metragem] [8] Clarice Lispector, A Paixão segundo G. H., Lisboa, Relógio de Água, 2013, p. 16.
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