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O seu lema é crescer e fazer crescer com trabalhos independentes. A sua identidade - aquilo que conhece melhor - marcada pela origem angolana e nascimento em Portugal em 1997 e a formação em psicologia pelo Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida (ISPA), ramificou-se no interesse pelas artes, construindo uma estrutura que se foi desenvolvendo pelas vivências ancestrais e coletivas.
Entre o Casal Santa Filomena, Damaia, Cova da Moura, Queluz, Cacém e Algueirão-Mem Martins unem-se estes e outros locais físicos e simbólicos da comunidade africana além continente, ao longo da linha férrea - do Rossio a Sintra - a Linha de Sintra. Um caminho que espalha raízes de resiliência, criatividade e autonomia perante e independentemente do “abandono do Estado”.
Funda-se a Kubata, uma casa de potencialização artística fundada por várias mãos, tais como, a de Nael D’Almeida. Curadora e diretora artística que partilha com a Artecapital o seu percurso de vida e aprendizagem através de um olhar circular, demonstrando como “a cultura é um meio de expressão que movimenta muito o panorama social”.


 

 

FB: Como se construiu o processo de entendimento de que querias trabalhar com curadoria?

NDA: Não foi algo que surgiu na faculdade apesar de ter tido psico-drama. Não foi um entendimento imediato, mas formado pelos acontecimentos da vida. Eu comecei a trabalhar com produção e management artístico de forma muito espontânea, por querer participar e ajudar um amigo meu da época - o Tristany (músico e produtor). Fazia muitas coisas sem ter noção de qual era a coisa específica em que me queria focar, depois fui afunilando e percebendo o que realmente me interessava e sobretudo o que o meu corpo conseguia fazer, não conseguindo fazer tudo ao mesmo tempo. Primeiro com música: na associação Filho Único fiz produção e coordenação para uma residência direcionada a músicos juntamente com a Melissa Pereira e também cheguei a fazer produção no programa de concertos “Noites de Verão” da mesma entidade.
Comecei a fazer outros tipos de produções, alguns trabalhos mais de programação, nomeadamente o Festival Rama em Flor e a trabalhar com outros artistas a nível de management, por exemplo, o Luan Okun, nas artes performativas. Não foi algo que eu percebi logo. A partir do momento em que eu começo a interessar-me por expressão artística e a desenvolver mais trabalhos relacionados com isso é que consegui ter a perceção de que na arte também estava aquilo que me levou a querer estudar psicologia: o entendimento do eu, do ser e a expressão disso. Fui-me apercebendo com o tempo. Quando eu estava a estudar psicologia concluí que eu queria ter um trabalho social, um trabalho dentro das comunidades com as quais me relacionava, me revia e compreendia que havia uma necessidade grande de investimento e de presença. Quando comecei a trabalhar com artistas e pequenos projetos artísticos, foi numa fase em que percebi que queria crescer e fazer crescer com projetos independentes. Em 2020 surge a Fonte, nasce num lugar de muita pesquisa, reflexão e depois sim de curadoria com um propósito político bastante acentuado, sempre em busca do ser e da existência.
Tenho trabalhado com artistas independentes, não me interessa trabalhar com grandes instituições, nunca foi esse o meu objetivo com a arte, foi mais ligar-me a comunidades que são periferizadas das quais eu também faço parte. Diria que a arte é um meio de expressão que movimenta muito o panorama social e inconscientemente talvez tenha sido isso que me levou a trabalhar com o que trabalho hoje.


FB: Pensando como determinadas áreas científicas podem ter uma intersecção com meios de expressão ou de entendimento, tal como, a arte, especificando a psicologia como a ciência que conduz uma pessoa à autodescoberta, compreensão sobre as suas dificuldades e a forma com que se relaciona com o seu “mundo interior” e exterior. Como tens compreendido a relação do teu trabalho curatorial, com a arte e a psicologia?

NDA: A gestão de pessoas foi o primeiro impacto que senti. Tive uma facilidade maior em conseguir coordenar equipas, pessoas e artistas ao meu redor por ter essa facilidade na comunicação e conseguir entender o outro e o seu comportamento. Comecei a compreender também como trabalhar a autonomia com artistas independentes, porque numa psicologia bem aplicada tens de trabalhar a autonomia com a pessoa. A pessoa tem que ter meios para conseguir fazer acontecer sem ti. Tu simplesmente vais ser uma fonte ou um veículo para que a pessoa chegue a um determinado sítio e foi isso que eu também tentei e tento fazer com os artistas com os quais eu trabalho.
Também compreender mais do subconsciente, o que me permite perceber muitas vezes com facilidade o que é que a pessoa está a pensar sem que a pessoa ainda tenha racionalizado ou intelectualizado o que quer transmitir, ajuda-me na minha prática curatorial porque tenho mais facilidade em perceber qual é a linguagem que está por trás, direcionar ou montar.
Sem dúvida que a psicologia foi e é uma base para toda a minha prática porque é o entender o outro, e se eu trabalho com pessoas, para mim essa é a questão base.


FB: Em fevereiro de 2024 é lançada a Kubata, uma casa de potencialização artística na Linha de Sintra construída “por várias mãos” voltado para artistas emergentes desta região metropolitana e da África Global, como referem nos primeiros posts de apresentação do projeto. Sendo uma dessas mãos a tua, enquanto diretora artística, este espaço foi-se concretizando também a partir de toda a experiência que adquiriste anteriormente?

NDA: Eu estava a trabalhar em diversos projetos independentes. A vontade e o interesse em querer estar em todo o lado e fazer muitas coisas era grande. Foi bom pela experiência porque aprendi a fazer muitas coisas, no entanto, sentia que não tinha estrutura e nós vivemos num mundo controlado pela capital, isso ia sempre falar mais alto.
Senti-me a trabalhar individualmente com determinados artistas em processos que dependiam muito da minha existência e eu acredito no trabalho coletivo. Não acredito que nada possa crescer sem essa parte coletiva e foi aí que começou o desejo de conseguir concretizar um projeto que pudesse proporcionar essa estrutura de potencialização artística. Confesso que não era a Kubata que eu idealizava, mas a partir do momento em que comecei a trabalhar com arte e com o Tristany, a ideia sempre foi conseguir que houvesse espaços culturais artísticos na periferia ou nas zonas que são periferizadas a nível de território. Naquela altura era uma motivação, mas ainda não era uma ideia concreta.
Nasceu a Kubata em conversas com a Maíra Zenun (Co-fundadora e diretora artística) em que percebemos que tínhamos a mesma vontade. A Kubata é o entendimento de uma vontade transformada e materializada.
É importante referir que para nós enquanto pessoas negras tudo é um processo muito mais lento porque é muito mais difícil: são acessos e recursos que nós ainda não temos, sendo que temos todo um strugle de sobrevivência associado, então o nosso tempo é curto. As coisas se vão desenvolvendo sempre num ritmo que caiba nas nossas vidas. Eu e a Maíra conseguimos idealizar uma equipa nuclear do projeto que poderia acolher e trazer práticas em que os artistas se sentissem respeitados, onde pudessem potencializar as suas práticas. Precisaríamos de recursos financeiros para tal, portanto fizemos um processo de candidaturas, porque é importante essa parte do dinheiro. Para artistas negros periferizados, a parte do dinheiro é crucial porque normalmente não têm trabalhos estáveis em que se consigam sustentar. Queríamos um local onde proporcionaríamos além de espaço, uma bolsa e uma equipa destinada a apoiar os artistas. Foi isso que fizemos nesta primeira edição de residências da Kubata.
Começámos por mapear espaços, tentar fazer parcerias institucionais - com camaras e concorrer a candidaturas - que são sempre super difíceis de fazer. Depois de montarmos a equipa escolhemos artistas da Linha de Sintra.


FB: Kubata é uma palavra em Kimbundo - uma das línguas nacionais de Angola - utilizada para descrever as casas circulares das aldeias africanas construídas de forma comunitária. Existem fotografias que retratam a fundamentação do projeto no vosso perfil oficial no Instagram. Como foi a pesquisa para a construção destas bases?

NDA: Antes de ter um contacto visual direto e das fotografias das casas, comecei a pesquisar na internet e surgiram-me de uma forma muito natural espaços africanos de produção artística. Tive contacto com alguns como por exemplo o Lapa (Espaço comunitário artístico em Brixton, Reino Unido), o 32º East (Espaço artístico em Kampala, Uganda) e a FEDE (Galeria de arte em Barcelona, Espanha).
Ir a Angola permitiu-me um contacto mais visual e perceber os espaços circulares que são as Kubatas. Nós sempre tivemos como propósito ter um espaço circular onde não existe uma relação hierárquica, mas que se cria sempre uma roda de aprendizagem.
Em 2023 fui para Angola. Estava com muitas saudades, precisava de descansar porque nessa altura já estava no processo de enviar candidaturas e recebia respostas negativas. Lembro-me também como se fosse hoje do momento em que fui para Angola, estive com Pamina Sebastião (artiste e ativiste co-fundadore do Rompe) que me falou do nascimento do Rompe (Espaço artístico comunitário em Luanda, Angola), que pela dinâmica do fazer acontecer independentemente das circunstâncias e do contexto, foi uma inspiração.
Perceber outros espaços africanos que estavam a fazer acontecer no continente africano e pensar: “Eu estou aqui na Europa, já portuguesa. Nós também temos que exigir os nossos espaços aqui neste território”.
Angola surgiu num tempo para respirar. Entretanto enquanto se respira acontecem coisas naturalmente bonitas como eu me deparar com Kubatas durante uma viagem para o sul de Angola.
Estava a ir com os meus pais de Luanda para o Lobito e o carro teve um problema a meio do caminho. Nós tivemos que ir de reboque para a província mais próxima. Ao subirmos de reboque ficámos mais altos e tivemos acesso a uma vista que não tínhamos no nosso carro, porque os limites da estrada eram cobertos de vegetação que impediam a visão para o horizonte. Eu conseguia ver de longe as aldeias todas com as Kubatas, foi bué fixe para eu conseguir fotografar.


FB: Na época o projeto já se chamava Kubata?

NDA: Sim já, então foi engraçado. Foi um imprevisto: Mankaka Kadi Konda Ko [risos]


FB: O que querem dizer com uma “casa de potencialização artística"?

NDA: A Kubata é um espaço que em primeiro lugar vai ter atenção à expressão e vivência do corpo presente enquanto ser social. Somos um espaço que ajuda na concretização do pensamento de um projeto. Trazemos apoio à produção artística, curadoria e comunicação. A nossa perspetiva sempre é que o artista adquira recursos para a tal autonomia que falei, por isso, além do espaço e da equipa, nós entendemos que existe uma parte de formação e workshop durante o processo para que os artistas fiquem com essas ferramentas e daí as levem para outros trabalhos. Pensamos nas etapas que envolvem uma criação e a exposição dessa criação, e de que forma enquanto equipa conseguimos cumprir com essas necessidades, mas também, cumprir com aquilo que são as necessidades individuais de existência, compreensão sobre os corpos que estão à nossa frente.


FB: Sobre o formato circular da Kubata nos níveis materiais e simbólicos, gostaria de entender como apresentas todas essas relações de identidade do espaço no contexto português?

NDA: A arquitetura portuguesa é colonial, hierárquica e quadrada então é um desafio grande trazermos uma arquitetura circular. Quando digo uma arquitetura circular já nem é do ponto de vista simplesmente material ou físico, mas subjetivo ou mais efémero. Um espaço circular é um espaço em que toda a gente se vê. Quando estás num círculo consegues olhar para toda a gente que está à volta e esse é um dos grandes pontos. Quando toda a gente se vê, consegue conversar, expor aquilo que são as suas necessidades.
Esse é o nosso desafio: conseguirmos ter um espaço que mesmo que não haja sempre um entendimento de todas as questões há a possibilidade de se refletir, conversar e as pessoas se possam ver umas às outras e perceber as suas diferentes expressões.


FB: Que ausências e necessidades a Kubata revela sobre o pensamento da construção social?

NDA: Eu nasci, cresci e vivi a minha vida toda na Linha de Sintra. A Linha de Sintra surge como o espaço onde os nossos corpos foram periferizados, o meu e o da Maíra Zenun. Eu enquanto pessoa nascida em Portugal e vivendo naquele espaço a vida toda: os meus avós vieram de Angola para o Casal Santa Filomena, um bairro de autoconstrução na Amadora que já não existe e depois foram morar para o Cacém. A Maíra como imigrante onde encontrou um lugar de acolhimento na Cova da Moura e depois na Damaia.
Estamos a refletir, tivemos uma vontade grande de fazer acontecer naquele espaço também pelas nossas experiências, existência, sendo que, foi aquele território que os nossos corpos foram periferizados e nos deparámos com uma presença negra tão grande, uma presença cultural africana de uma mistura de vários pontos de África, mas também, da América do Sul quando falamos do Brasil. É como se estivéssemos a enaltecer e ao mesmo tempo a ressignificar o espaço onde vivemos, assim como, a retribuir ao espaço aquilo que nos deu. Avaliando a minha experiência, aquele espaço fez-me sentir em casa. não propriamente pela arquitetura material mas pela arquitetura mais efémera: a subjetividade das existências que ali estavam. Sempre me foi permitido ver pessoas como eu, ver realidades como a minha, e isso para mim, nunca foi uma dificuldade para estar em espaços como por exemplo a escola, porque eu sempre tive ao meu redor pessoas semelhantes a mim.
A Linha de Sintra é um lugar ausente de várias políticas públicas e uma delas é a ausência de espaços culturais e espaços destinados à expressão artística, então a nossa proposta foi exatamente essa: trazer um espaço de potencialização artística. Existe ainda uma ausência maior quando falamos de corpos racializados e se pensarmos na Linha de Sintra como um território com uma dimensão enorme de população negra, torna um espaço com mais escassez, porque há um interesse muito reduzido em querer desenvolver espaços de lazer, cuidado naquele território. A Kubata propós e trouxe um espaço de cuidado, visibilização das vidas existentes na Linha de Sintra e um espaço de acolher e expressar essas mesmas existências.


FB: Eu tinha um colega que dizia que não morava na Linha de Sintra, mas sim, em Sintra. Sempre achei essa afirmação, uma forma de delimitar/separar o território, principalmente se pensarmos que existem estações ao longo da Linha de Sintra onde há maior concentração de pessoas negras.

NDA: No fundo a Linha de Sintra começa no Rossio mas quando as pessoas querem mencionar o que é a Linha de Sintra, fazem-no distinguindo as zonas periferizadas e de onde está a população negra imigrante: começa na Damaia com a presença do Bairro das Fontainhas, o 6 de Maio, Estrela de África, uma série de bairros que hoje já não existem, só ficou a Cova da Moura, depois a Amadora onde tinha o Casal Santa Filomena e, existe o Casal da Boba.
Nós tivemos uma visita guiada com a Maíra que consistia em apanhar o comboio da Linha de Sintra - desde o Rossio até Monte Abraão. Almoçámos na feira de Monte Abraão porque é a única feira daquela dimensão que ainda existe com mais movimento e tem mais expressão a nível da diversidade cultural. Constrói-se por um espaço em que tens de alugar uma banca, mas existem uma série de vendedoras que não têm: vendem no chão da entrada e do final da feira. Tivemos a participação da Elisia, uma feirante que vende pastéis e outras comidas de Cabo Verde, faz parte das vendedoras que vendem na entrada da feira. É o lugar da pessoa migrante que não consegue ter uma banca e tem que vender naquele local.
Esse passeio foi exatamente para refletir sobre o percurso da linha férrea e de como foi se movimentando e modificando. É importante dizer que a Linha de Sintra antes da presença africana com tanta expressão, era um lugar para pessoas pobres, era um meio mais rural e que pessoas que migravam de outras zonas do país iam morar para lá.
No passeio, a Maíra também fala do facto da Linha de Sintra ser um dos lugares mais policiados: a questão das cancelas que se repararmos na Linha de Cascais não existem em todas as estações ou se formos para a Linha da Azambuja idem. A Amadora é um concelho que tem câmaras de vigilância a vigiar a população e uma massa policial bastante grande a nível de esquadras, por exemplo.
Fizemos este passeio para refletir a linha férrea e como foi se modificando, assim como, a desconstrução dessa conotação do que “é a Linha de Sintra”.


FB: O que acrescentarias nesse processo de reflexão sobre a Linha férrea para além do policiamento, o abondono do Estado, a resiliência e a criatividade?

NDA: De modo geral, aquilo que são as conquistas feitas pela população negra. Acrescentaria que é um lugar onde existem políticas específicas para que se mantenha periferizado, numa ausência e invisibilização daquilo que são as vivências que estão lá, ao mesmo tempo, tens uma movimentação contrária das pessoas que lá vivem para modificar as dinâmicas do local, as arquiteturas e fazer com que seja um espaço onde se possa viver.
É do interesse do Estado que as coisas se mantenham assim. É importante realçar todo o esforço feito pelas populações que lá estão para que seja um espaço habitável, onde tenhamos vida, crianças a poderem crescer de forma saudável.
As pessoas têm que construir as suas próprias casas porque as que o Estado supostamente dá não têm essas condições. As associações surgem muito para criar uma unidade que consiga dar resposta às ausências. A Kubata também surge nesse contexto de ausência a nível cultural e como um local para combatê-la, assim como, a visão da Linha de Sintra como um lugar de dormitório. Pelo contrário, um lugar onde possamos viver e nos expressar.


FB: Trata-se de um local de residência e criação voltado para artistas emergentes. Qual a definição de emergente?

NDA: É sempre debatível a questão dos artistas serem emergentes porque no fundo nós sentimos que eram artistas que precisavam de uma estrutura de acolhimento aos seus projetos, e que precisavam de um espaço para criar que ainda não tinham.
Escolhemos a Carolina Elis (Carol Elis), uma artista com algumas obras lançadas, um percurso mais solidificado, mas pelas conversas que fomos tendo nos apercebemos disso: que precisava de um espaço que acolhesse as suas necessidades enquanto uma pessoa que vive com uma doença crónica. Tentámos proporcionar-lhe isso e trazer a Carol foi um desafio nesse sentido. É alguém que tem bases sobre aquilo que pretende e a Kubata seria o espaço que permitia a existência dela e da sua criação.
A Sarita Ferreira e o Roque G são duas pessoas da Cova da Moura que criam de forma muito expontânea e talentosa, mas que talvez não se tinham imaginado num contexto mais profissional da sua arte então trouxemo-los para este desafio. A Vânia Andrade que se começou a ver enquanto artista muito recentemente, também nunca teve um espaço de profissionalização, de mais consistência, algo que uma residência pode proporcionar, então quisemos trazê-la.
A Edvânia Moreno já está um pouco mais profissionalizada mas eu via-a muito em contextos de projetos de outras pessoas. A ideia foi trazê-la para aquele espaço para criar um projeto da sua autoria.
Tivemos três mentores: A Petra.Preta, uma artista multidisciplinar que para além de trabalhar com artes visuais também trabalha com teatro, então achámos bastante completa para auxiliar e passar a sua experiência aos nossos artistas dentro desta vertente mais ampla das artes visuais e performativas. O Di Jah, artista plástico que também se vê como artesão trouxe uma visão muito material - não tão teórica mas num contexto mais prático - inclusive iniciou-se uma obra com ele no workshop que estará em exposição; e o Luan Okun, um artista que trabalha com movimento, com o corpo e a espacialidade.
Estas três pessoas serviram como mentores durante o processo com os artistas, além de darem os workshops, tiveram reuniões individuais consoante o interesse de cada artista. Eu e a Maíra também fomos mentoras: a Maíra mais no contexto do cinema e das artes performativas e eu no campo da burocracia e profissionalização, isto é, na reflexão sobre como é a construção de uma carreira artística.


FB: Deste um workshop sobre isso.

NDA: Sim exatamente, para que os artistas percebam quais são os espaços estruturados dentro do contexto português para conseguirem formalizar a carreira. Começando por questões básicas como a documentação, porque para um artista imigrante será sempre uma questão. Essas partes mais burocráticas necessitam de algum cuidado que, muitas vezes, não são acauteladas dentro do setor artístico e foi por aí que tentei mentorar os artistas.


FB: Na vossa página oficial do instagram é possível obter informação da agenda da primeira edição. Para além do teu workshop e da visita guiada realizada pela Maíra Zenun já aqui referida, existiram atividades desenvolvidas pelos mentores, para além disso, houve a contribuição de José Baessa de Pina - mais conhecido como Sinho -, ativista e vice-presidente da Associação Cavaleiros de São Brás, situada no Casal da Boba, com a visita guiada NOZ STÓRIA.

NDA: A programação da residência começou a 26 de fevereiro e a primeira atividade foi o workshop da Petra.Preta no Forno Espaço Cultural, em Rio do Mouro. Passou a visão dela enquanto artista: como tem construído a sua carreira e como se movimentava entre a parte mais visual - a pintura - e a parte mais performativa - da formação em Teatro, tanto que foram realizados exercícios baseando-se nisso. Foi curioso que a Petra nunca tinha feito workshops para adultos.
Os mentores não vinham num lugar de sabedoria máxima, mas como pessoas que também poderiam potencializar aquilo que têm sido as suas práticas - nós queríamos proporcionar isso aos mentores também. Lembro-me que a Petra estava super nervosa, a questionar-se como iria montar este workshop porque apenas tinha experiência com crianças. Correu super bem, todos ficaram super apaixonados com o workshop. Foi muito importante para os nossos artistas.
A visita guiada que o Sinho deu sobre os bairros de autoconstrução da Linha de Sintra inspirou muito algumas das obras que vamos ver em breve. Refletiu-se sobre o desenvolvimento - nunca reconhecido, sempre estigmatizado - feito por imigrantes.
Houve uma troca entre os artistas e o Sinho porque ele está a construir recentemente esta visita orientada de forma mais solidificada. Fizemos uma visita guiada fechada para os artistas e outra aberta ao público, ou seja, também fomos um espaço de potencialização para o Sinho. Foi uma troca.
Seguiu-se o workshop do Di Jah na oficina de artes e oficíos do Gave (Grupo de artistas vale de Eureka), na Vila Operária do Palácio de Queluz, um bairro muito interessante porque foi construído pela Rainha para os seus trabalhadores. Apesar de não serem pessoas negras, a dinâmica foi interessante porque foram pessoas trabalhadoras pobres que construíram aquele espaço. A atividade aconteceu num espaço de artesãos, o Di Jah já tinha começado uma obra, trouxe para o workshop e decidiu-se que seria uma obra coletiva porque nós abrimos a programação a toda a equipa.
Para além da visita guiada, a Maíra deu um workshop ligado ao cinema, pensando questões simbólicas a partir da visualidade.
O workshop do Luan Okun aconteceu no meio de uma mata onde foram trazidos alguns rituais, questões sobre o corpo e sobre a natureza. Foi um momento muito bonito. Foi um workshop muito bom para conseguirmos respirar, para ouvirmo-nos.
Para refletir sobre os frutos da primeira edição, organizámos um dia aberto ao público. Um dia muito bonito. Não esperávamos tanta gente. Tivemos a sala cheia, artistas mais velhos a passar a sua experiência de como vivendo e crescendo na Linha de Sintra nunca tiveram um espaço: alguns sentiram necessidade de sair para o centro de Lisboa e/ou para outros países para conseguirem ver a sua prática a acontecer, a ser reconhecida, expressada. Tivemos muita abertura para novas parcerias. Falou-se de como estávamos a criar um espaço de resistência, mas também, de amor. O mais interessante é que as pessoas foram aparecendo sem um convite direto. O dia aberto serviu para partilharmos e falarmos com o público o que estamos a trazer, a querer criar e também para receber deles, e recebemos muito. Todas as partilhas que tivemos foram muito boas. O dia aberto foi bastante importante e deu-nos um senso de responsabilidade de conseguir fazer continuar o projeto e não deixar que ele morra. Este vai ser o nosso grande desafio daqui para a frente: saber como vamos conseguir tornar a Kubata sustentável.


FB: Nesse dia aconteceu a performance de duas artistas residentes: a Vânia Andrade e a Edvânia Moreno.

NDA: Não tínhamos planeado nenhuma performance mas elas tinham muita vontade de fazer chegar algo. A Vânia tinha um poema sobre a Kubata. Quando convidámos a Vânia para a residência, ela já tinha um poema sobre a sua Kubata, então foi engraçado porque acabou por se refletir naquilo que ela já tinha criado, mas também, no que foi a Kubata. A Edvânia acompanhou, deu uma ambiência com o som.


FB: Toda esta agenda aconteceu em quanto tempo?

NDA: Durou um mês e uma semana. Esta foi uma das nossas falhas, corrijo, foi uma das nossas aprendizagens. Numa residência futura não faremos tantas atividades. Nós preocupámo-nos muito com os artistas e com o que queríamos oferecer mas, a certo momento, estávamos a esquecer de nós. Isso foi uma aprendizagem que trouxemos, porque se estamos a criar um espaço que seja de acolhimento para toda a gente também tem de ser para nós. A determinada altura estávamos bastante cansadas porque ninguém vive da Kubata e todos nós temos outros trabalhos a acontecer. Gerir tantas atividades num mês foi complexo.


FB: A certo momento desta conversa disseste que “vivemos num mundo baseado no capital”. Recordo-me da entrevista contigo e com o Henrique J Paris (co-fundador da Fonte) para o meio de comunicação Gerador, em que numa conversa pergunto se pensam monetizar uma das atividades da Fonte e passo a citar parte da resposta: “Nós já temos valor antes de termos capital, porque temos capital zero e conseguimos perceber o valor do que estamos a fazer…” e o Henrique diz: “Podemos meter um preço sobre algo, mas nós temos muito cuidado com as questões do capitalismo e do que é capitalizar, e as nossas conversas impedem-nos de ter abordagens capitalistas. Nós podemos fazer, mas vai sempre haver esse cuidado no formato”. Como tem sido pensar a monetização do trabalho artístico com a Kubata, isto pensando nas várias áreas que o incluem?

NDA: Acho que é importante dizer que é uma fala dita no contexto de uma entrevista com a Fonte.
A Fonte e a Kubata não têm as mesmas dinâmicas de funcionamento. A Fonte cai num lugar onde o pensar o capital e o dinheiro vem de uma forma mais distante, porque sempre assumimos primeiro como um espaço de conhecimento, de identificação. Não é que não circule dinheiro porque nós somos chamados para fazer atividades e é um trabalho que fazemos, mas sinto que não têm os mesmos moldes.
Não tem sido difícil essa relação. Difícil no sentido em que, eu penso num mundo ideal em que o capital não seria o que nos governa mas no entanto eu consigo ser bastante consciente ao ponto de perceber que sem isso nós não conseguimos viver. Não conseguindo viver, nós queremos que o dinheiro não seja uma preocupação, isto é, além do que são as preocupações do criar e existir profissionalmente no ramo artístico e enquanto artista negro, é importante conseguirmos criar esse espaço em que o dinheiro não seja um problema para o artista nem para a instituição. Ainda não cheguei lá de todo, mas vejo a importância disso. É muito diferente porque a pessoa vai estar um mês em residência com a noção de que ao final do mês tem uma bolsa que vai cobrir as suas contas e não vai precisar de estar a trabalhar em mil e uma coisas. Vai entregar-se àquele processo sem a preocupação constante de como irá conseguir dinheiro.
Talvez até existam pessoas que possam ter tido essa preocupação, mas eu acho que conseguimos ter um valor minimamente aceitável para aquilo que é a realidade portuguesa. Pensamos nas questões de dinheiro para que possamos respirar e criar sem essa preocupação e entendendo que se nós somos contribuintes, pessoas que ajudaram esse país e esta Europa a desenvolver-se, o dinheiro que a Europa gera também é nosso, então o trabalho que nós produzimos tem que ser remunerado.
É este entendimento: é trabalho, precisa de remuneração.
O grande sufoco é percebermos se vamos conseguir essa sustentabilidade para as próximas edições. Estamos na tentativa, mas ainda não podemos assumir a Kubata como um espaço autossustentável porque ainda não é. O grande objetivo é que a Kubata consiga produzir e através das suas produções e do seu trabalho consiga se autossustentar, enquanto isso, estamos na batalha de adquirir dinheiro através das instituições.


FB: Quando falas de um projeto autossustentável, ele sustentar-se-ia a si mesmo de que forma?

NDA: Eu diria através da aquisição de capital proveniente das atividades e propostas que estamos a trazer (venda de obras de arte, espetáculos, filmes, etc.), uma vez que trouxemos artistas de cinco áreas diferentes. Conseguimos nos movimentar dentro do mercado artístico e pretendemos que essas movimentações continuem a ser acessíveis à população que nós queremos que tenha acesso mas que, ao mesmo tempo, chegue a outras populações que já estejam estabelecidas e que possam garantir que a Kubata se consiga sustentar. Falta-nos um espaço nosso - que estamos em processo de conseguir - isto é, não depender de instituições.


FB: Quando te referes a um “valor minimamente aceitável”, como defines no contexto artístico português?

NDA: O contexto português é precário e a arte é um setor que quase não tem apoio do ponto de vista do orçamento de Estado então é muito pouco, no entanto, pensamos num valor superior ao salário mínimo porque os artistas são independentes: por si só existem uma série de taxas e de questões relativamente ao ser-se um trabalhador independente. Na verdade ninguém vive com o salário mínimo em Portugal. Tudo o que for acima disso eu penso que já entramos num campo do que é o “aceitável”, ou seja, da pessoa conseguir num mês em residência artística, receber dinheiro suficiente que garanta que as contas serão pagas.


FB: Qual é o equilíbrio que tens feito entre qualidade, quantidade e gestão financeira, pensando no número de pessoas para fazerem parte da equipa, assim como, dos artistas que usufruirão da potencialização da Kubata?

NDA: Relativamente aos artistas residentes que tivemos, nós conseguimos fazer uma boa gestão.
Pensámos em várias possibilidades de ter um número mais reduzido de pessoas, mas achámos que cinco seria uma interação muito interessante entre eles. Surgiram muitas partilhas. A todos nunca vamos conseguir chegar e não vale a pena estarmos a pensar: “Eu queria muito chegar a toda a gente e usar 1000 euros repartidos por dez pessoas”. Nós vamos conseguir ter impacto com as pessoas com quem nos vamos cruzando e partilhando trabalhos e processos.
A bolsa de artista foi de 1100 euros por mês, deu para os meios de subsistência naquele mês. A nível da equipa tentámos não alargar muito a quantidade de pessoas mas existiam algumas necessidades. Não posso dizer que a equipa tenha tido um pagamento completamente justo, mas surgiu neste espaço de investimento para as pessoas que estavam lá. Quando se cria uma circularidade em que se dá e recebe, as pessoas também querem fazer parte para potencializarem os próprios trabalhos. A Denise Santos como designer da Kubata vai explorar as práticas que ainda não tinha explorado. O Joni Rico (videomaker da Kubata) no vídeo, fotografia trará o seu talento e autenticidade. O Ness Costa que esteve enquanto produtor executivo o mês todo e eu enquanto curadora e diretora artística, uma prática que estou a explorar agora e a aprender mais. É um espaço que reconhecemos que talvez a nível monetário ainda não é autossuficiente mas se for esse espaço onde temos a vertente circular e que toda a gente contribui e recebe, vai além da questão monetária.


FB: Que considerações finais podem ser feitas sobre a primeira edição?

NDA: É relevante e urgente aquilo que nós estamos a fazer. É potente em todas as suas vertentes mas, ao mesmo tempo, convidamos outras pessoas a surgirem com parcerias, ideias porque nós ainda não temos a sustentabilidade que desejamos alcançar. Um dos nossos grandes objetivos é ter um espaço físico nosso e parcerias que contemplem a nossa programação.
Temos a proposta de fazer workshops abertos durante o mês de maio relacionados à música: falar sobre todas as questões burocráticas para a solidificação da carreira musical porque existem muitas burocracias que não são faladas e não há interesse dentro do sistema capital da música de que sejam faladas. Todos esses momentos são teasers para a exposição que irá acontecer em Junho, para trazer a público as obras criadas durante a residência. Vamos ter uma multidisciplinaridade de obras sentidas, vividas, expressas com bastante cuidado e amor.


FB: Dentro de todo o processo de trabalhar profissionalmente sobre as bases da psicologia e da curadoria, o que é possível para ti continuar a imaginar?

NDA: Com o trabalho que estou a desenvolver com a Kubata eu quero solidificar as minhas práticas curatoriais inclusive ter mais formação, mas sobretudo, o meu grande objetivo é conseguir ter esse espaço solidificado e autossustentável. Desejo que os meus projetos tenham muito do meu input e que possam crescer numa base que eu vou dar, mas que depois seja de todos aqueles que quiserem fazer parte. Uma coisa só é grande se for maior do que nós. Depois de eu dar aquilo que quero dar à Europa e a essa África ramificada que está na Europa, eu não tenho mais nada para fazer em Portugal, diria que o meu caminho é retornar para Angola e poder ter a minha intelectualidade a ser expressa lá. Espero que este sonho se concretize e estou focada. O processo é muito interessante porque descobrem-se novas formas de futuro.

 

 

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Nael D'Almeida
Acreditando que o meu dom estaria em empoderar outros iniciei a minha base de formação: Psicologia. Já na academia, percebi que o empoderamento não seria apenas dar, mas também adquirir a capacidade de ser. Na busca pela essência do ser, tornei-me pesquisadora e curadora na Associação de Intervenção e Difusão Cultural - Nossa Fonte, bem como membra do coletivo MNE (Mulheres Negras Escurecidas).
O contacto constante e a minha paixão pela arte, levaram-me ao management e produção artística.

 

Filipa Bossuet
Filipa Bossuet é o culminar do interesse pelas artes, jornalismo e tudo o que me faz sentir viva. Nasci em 1998, sou uma mulher do norte com memórias do tempo em Lisboa. Guiada pela sede de informação e pesquisa autónoma licenciei-me em Ciências da Comunicação e penso também sobre as influências dos estudos de mestrado em Migrações, Inter-Etnicidades e Transnacionalismo, criando um diálogo e questionamento entre os campos do saber. Colaborei como jornalista estagiária no Gerador, uma plataforma independente de jornalismo, cultura e educação, e no Afrolink, uma rede online que junta profissionais africanos e afrodescendentes residentes em Portugal. Utilizo performance, pintura, fotografia e vídeo experimental para retratar processos identitários, negritude, memória e cura. O meu trabalho transdisciplinar tem sido apresentado em espaços como a Bienal de Cerveira, Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT), Teatro do Bairro Alto, Festival Iminente e o Festival Alkantara.