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O ESTADO DA ARTE


Top ou flop? O "Partenon dos livros" de Marta MinujĂ­n (n. 1943, Argentina).


"Expiration Movement Manifest" de Daniel Knorr.


Vlassis Caniaris (n.1928, Atenas; f.2011) apresenta "Hopscotch" de 1974.


"Acropolis Redux (The DiretorÂŽs cut)" 2004, do artista sul-africano Kendell Geers (n. 1968).


Vídeo "27th February", 3', Thanassis Totsikas (n.1951 em Larissa, Grécia).


"The Landscapes of Greece" (2014), Yorgos Sapountzis (n. 1976, Atenas).


Stefanos Tsivopoulos (n. 1973), artista grego, radicado em Nova Iorque, apresenta um arquivo performativo.


"Monumento aos estrangeiros e refugiados" de Olu Oguibe (n. 1964).


Omnipresente em Kassel, a dupla franco-alemĂŁ PRINZ GHOLAM (Wolfgang Prinz n. 1969, Leutkirch, Alemanha - Michel Gholam, n. 1963, Beirute).


Marie Cool (n. 1961, Valenciennes, França) e Fabio Balducci (n.1964, Ostra, Itålia).


Cecília Vicuña (ao fundo à esquerda) e Guillermo Galindo.


Hiwa K concebeu "When We Were Exhaling Images", Instalação 20 condutas empilhadas.


A linha clara de Geta Brătescu em "Automatism" (2017).


Bela homenagem a Beuys. Sokol Beqiri (n.1964, Peja, Kosovo) apresenta "Adonis" (2017).


Como reconhecer traços criminosos? Pormenor de de "A War Machine" (2017) de Sergio Zevallos (n.1962, Lima).


A cabeça reduzida de Christine Lagarde em "A War Machine" (2017), de Sergio Zevallos (n.1962, Lima).


"The Dust Channel" (23 min.) de Roee Rosen (n. 1963 em Israel).


"Trassen", Olaf Holzapfel (n.1967 em Dresden).


"The Mill of Blood" (2017) de AntĂłnio Vega Macotella (n.1979 na Cidade do MĂ©xico).


Ibrahim Mahama (n. 1987, Tamale, Gana).


Instalação de Rasheed Araeen (n. em 1935, Karachi), pioneiro do minimalismo londrino e fundador da revista de arte Third Text.


Dançando sobre os escombros do bunker do Hitler, "And then there were none", Arin Rungjang (n. 1975, Bangkok).


Entre o real e a ficção - Maria Hassabi (n. 1973, Chipre) com "Staging".


O grande regresso de Michel Auder com "The Course of Empire", 2017.


O flamenco revisitado como arte dos oprimidos segundo Israel Galvån, Niño de Elche und Pedro G. Romero.

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"LEARNING FROM CAPITALISM"

TINY DOMINGOS

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"Learning from Athens" é o título escolhido pelo diretor artístico Adam Syzmczyk e a sua equipa de 12 curadores e consultores para a 14a Documenta, que se desdobra pela primeira vez por duas cidades e dois países. (A exposição de Kassel dura até 17 de setembro e foi antecedida pela exposição de Atenas que abriu a 8 de abril e encerra a 16 de julho).

Berço da democracia e da cultura ocidental, a Grécia simboliza hoje dois dos maiores desafios europeus: a crise económica (que apresenta inúmeras semelhanças com a portuguesa) que derrubou a sua frágil economia e tem ameaçado a coesão de toda a zona Euro e a crise dos refugiados que, aos milhares, tentam por todos os meios entrar no território europeu. Face ao necessário debate sobre o futuro da Europa e da União europeia, a equipa de Adam Syzmczyk decidiu lançar um olhar crítico sobre o passado eurocêntrico e colonialista do continente e oferecer um espaço de expressão a culturas e povos que o cânon ocidental tem ocultado (ou secundarizado). Uma releitura abrangente que inclui igualmente o complexo tema da restituição dos bens confiscados pelos nazis bem como dos artefactos e das obras guardados nos museus etnológicos e arqueológicos ocidentais que têm sido reclamados pelos países e pelos povos de onde foram retirados.

 


DO PÓS AO NEO-COLONIALISMO

Se a presença de 2000 jornalistas especializados vindos do mundo inteiro para cobrir a conferência de imprensa veio confirmar o grande interesse pela edição deste ano e a pertinência da escolha da Grécia como ponto de partida para uma reflexão que demonstra alguma liberdade em relação aos poderosos ditames do mercado da arte, a mostra peca pelo tom acusatório e moralista de alguns dos seus dispositivos e pela inclusão de obras que se limitam a ilustrar os clichés pós-coloniais e académicos mais expectáveis. Alguns críticos e profissionais deploram ainda o eurocentrismo de uma exposição que queria precisamente sair desse espartilho. A estas vozes se junta a de Yanis Varoufakis, o mediático e omnipresente ex-ministro das Finanças grego (casado com uma artista visual e co-fundador de uma plataforma artística) que veio denunciar o bloqueio dos recursos da cena artística ateniense e que teceu uma analogia entre a realização da Documenta em Atenas e a compra de 14 aeroportos gregos por uma sociedade alemã. Cúmulo da ironia: a Documenta que pretende dar grande espaço às perspetivas pós-coloniais, é ela própria apelidada de "neo-colonial".

 


O CLUBE DOS POETAS MORTOS

A rara presença de artistas jovens é mais um motivo de desapontamento por parte do público especializado, ansioso por aceder às mais recentes e intensas criações da vanguarda artística internacional: num total de 160 nomes, apenas há uma dúzia de artistas com idades entre os 30 e 40 anos e nenhum abaixo dos 30. A inclusão de muitos artistas já falecidos levou a imprensa local a falar (maldosamente) de "clube dos artistas mortos". O lado positivo desta escolha é a celebração de velhos mestres como por exemplo Geta Brătescu, grande dama da arte conceptual romena, que, aos 91 anos, apresenta um trabalho atualíssimo na Neue Galerie (voltaremos a ela mais abaixo).

 


"LEARNING FROM CAPITALISM"

O debate está aberto e irá perdurar. Ainda é cedo para tirar conclusões definitivas mas há sinais que não enganam: o tema da "crise curatorial das mega-exposições" e as críticas ao papel do curador "todo-poderoso" e à opacidade das suas decisões começam a circular na imprensa alemã... A curadoria fez um trabalho sério. Foram desenhadas algumas linhas de trabalho estimulantes e são várias as obras de alto nível que apontam para novas ou interessantes direções (e é sobre elas que nos iremos aqui deter) mas a sensação geral é que a mostra fica uns níveis abaixo da grande expectativa que gerou. Exemplo disso é o famoso Museu Fridericianum, habitualmente o coração da Documenta que, este ano, foi objeto de uma troca de espaços com o portentoso Museu Nacional de arte contemporânea de Atenas (EMST) que acaba de reabrir com a Documenta na capital grega. O Fridericianum recebe assim uma coleção de arte helénica e internacional que vai dos anos 60 até à atualidade e inclui nomes internacionais como Jan Fabre, Hans Haacke, Mona Hatoum, Bill Viola e Pedro Cabrita Reis. A troca é, sem dúvida, uma ocasião única em termos de visibilidade internacional de artistas gregos "institucionais" e de circulação da coleção. Um gesto simbólico que tem a sua beleza mas que não apaga as reações negativas de uma significativa parte do meio artístico ateniense. Na mira das críticas: a lógica "top down" da direção artística e o seu pouco interesse pelas iniciativas locais e a sua luta por melhores condições de trabalho. Sintomático do estado de espírito local, "Learning from capitalism" é um dos numerosos grafítis anti-Documenta espalhados pela paredes de Atenas.

 


O TRIUNFO DA PROVÍNCIA

Em Kassel, o ambiente é outro. Nesta próspera cidade de 200 000 habitantes, autointitulada "Cidade-Documenta", reina um espírito festivo. A população alegra-se por estar no centro da atenção mediática e turística (900.000 visitas na última edição e uma expectativa de mais de 1 milhão de visitantes este ano). Em Berlim, uma mega-exposição deste tipo perder-se-ia completamente no meio da trasbordante atividade da capital alemã. Aqui não. Tal como Münster (que inaugurou este mês uma ótima edição dos seus "Skulptur Projekte"), Kassel é mais um exemplo de um extraordinário sucesso popular e internacional, fruto de um metódico planeamento a longo prazo e da continuidade exemplar das políticas culturais a nível local e nacional. O crescente apoio das empresas locais e internacionais vêm completar o quadro e contribuir para este inegável triunfo da província sobre cidades e regiões teoricamente mais ricas e fortes. Certamente difícil de repetir noutros países este mega-sucesso é uma lição para cidades e regiões periféricas que queiram entrar (e ficar) nos grandes circuitos culturais ao nível internacional.

 


AS OBRAS

O ex-libris da Documenta 14 é o "Partenon dos livros" de Marta Minujín. A maior obra pública na já longa história da Documenta, montada em plena Friedrichplatz (praça central de Kassel que foi palco de uma queima de 350 000 livros durante a época nazi). Uma réplica em tamanho natural do Partenon. Trata-se, segundo a artista de "uma homenagem à democracia como invenção grega e à liberdade de expressão". Todos os livros aqui expostos foram proibidos por motivos políticos ao longo da história. Em 1983, a artista já tinha erguido um „Partenon de los libros" em Buenos Aires (em escala 1:4) com os volumes proibidos durante a ditadura argentina. Colocada mesmo em frente do Museu Fridericianum, a instalação funciona bem em termos arquitetónicos e simbólicos apesar da artista não ter conseguido angariar os 100 000 livros inicialmente previstos. Parte da estrutura metálica está por isso desprovida de livros, deixando uma imagem de "work in progress" e de "obra de fachada" para os críticos. As opiniões dividem-se de facto: para uns, a instalação constitui um dos pontos altos da mostra (uma homenagem ao livro e à informação impressa em plena era digital) e para outros, trata-se de um... flop (uma obra inacabada apesar do chorudo orçamento e dos 5 anos de preparação). Diga-se em abono deste último argumento que a organização do preview deixou, também ela, bastante a desejar com a ausência de inúmeras fichas técnicas para identificar os artistas e a falta de preparação dos vigilantes a dificultar grandemente o trabalho dos jornalistas e profissionais.

Ainda na Friedrichplatz: a contínua exalação de fumo branco do alto da torre do Fridericianum interroga os transeuntes e vem relembrar as queimas de livros e os campos de concentração nazis bem como a própria destruição do edifício pelas chamas em 1941. Título da obra: "Expiration Movement Manifest" de Daniel Knorr.

No Fridericianum, os grandes temas aqui são "emigração", "fronteira" e "democracia". Vlassis Caniaris (n.1928, Atenas; f. 2011) apresenta "Hopscotch" de 1974, uma instalação de seis figuras humanas e nove malas sobre um tapete em que as várias etapas do percurso dos emigrantes estão registadas a giz. Palavras como "Serviço de estrangeiros", "consulado" e... "desorientação".

Outra obra que não perdeu nada da sua mordacidade: "Acropolis Redux (The Diretor´s cut) " 2004, do artista sul africano Kendell Geers (n. 1968), uma instalação de rolos arame farpado dispostos sobre estantes de metal.

Com uma grande simplicidade de meios, o vídeo "27th February“, 3 min) de Thanassis Totsikas (nasc. 1951 em Larissa, Grécia) mostra um idoso a ser transportado nas costas de um jovem numa fronteira montanhosa. Uma interrogação sobre o fechamento das fronteiras e a solidariedade intergeracional.

Com The Landscapes of Greece" (2014), uma lúdica vídeoperformance de 7,10 min., filmada no seu atelier, Yorgos Sapountzis (n. 1976, Atenas) traz uma agradável lufada de ar fresco para o Fridericianum.

Stefanos Tsivopoulos (n. 1973), artista grego, radicado em Nova Iorque, apresenta um arquivo performativo. Uma coleção de 900 imagens, recolhidas ao longo de 10 anos, retrata os momentos políticos mais relevantes da Grécia do pós-guerra, da época da ditadura grega e da guerrilha marxista "17 de novembro". Se o arquivo e as projeções fotográficas já são visualmente apelativos, a instalação transforma-se e ganha uma dimensão original com a intervenção de performers que trocam as imagens, entoam ares de ópera e dialogam com os visitantes numa multiplicação de combinações e situações.

Recentemente erguido na movimentada Koenigplatz, o "Monumento aos estrangeiros e refugiados" - um obelisco de 16,20 m. de altura com a famosa citação bíblica "Era estrangeiro, e acolhestes-me" do Evangelho segundo São Mateus - é desde já o local preferido para as selfies dos jovens imigrantes de origem turca e árabe que gostam de ler a mensagem traduzida nas suas línguas. Lembrando a universalidade dos valores humanistas e da hospitalidade, Olu Oguibe (n. em 1964), artista norte-americano de origem nigeriana que sobreviveu à guerra do Biafra (um conflito que levou à morte de cerca de 2 milhões de pessoas de 1967 a 1970) faz aqui um grandioso apelo à cultura de abertura e de acolhimento.

Omnipresente em Kassel: a dupla franco-alemã PRINZ GHOLAM (Wolfgang Prinz n. 1969, Leutkirch, Alemanha / Michel Gholam, n. 1963, Beirute) combina imagens de arquivo, video-performances e desenho, recriando e recontextualizando as poses escultóricas ora expressivas, ora marciais da tradição clássica e neo-clássica.

Outra dupla binacional: Marie Cool (n. 1961, Valenciennes, França) e Fabio Balducci (n.1964, Ostra, Itália). Banais secretárias empilhadas e colocadas na vertical criam uma instalação espacial onde Marie Cool executa performances silenciosas. A autonomia e a delicadeza dos seus gestos reforçam a tensão espacial e outorgam poesia e beleza ao impessoal mobiliário industrial, associado às normas e à monotonia do mundo dos negócios.

A grande sala da Documenta-Halle é dominada pelas duas esculturas: um "quipoem", instalação imersiva constituída por gigantescos fios de lã que sincretizam referências mitológicas gregas e andinas da autoria de Cecília Vicuña, poetisa e artista visual chilena exilada em Nova Iorque desde os anos 80 e "Fluchtzieleuropahavarieschallkörper" (em tradução caseira: Corpoderessonânciaavariaeuropadestinopararefugiados) de Guillermo Galindo (n. 1960, na cidade do México): um conjunto de destroços de barcos de refugiados, de remos e de boias de salvação transformados em instrumentos musicais com peles de cabras, cordas de piano e de címbalo, ferro-velho e metal. Galindo não visa uma execução musical no sentido estreito da palavra mas sim a expressão sonora da materialidade e da carga simbólica dos objetos encontrados.

Hiwa K (n. 1975, Curdistão iraquiano) concebeu uma obra que remete diretamente para o sucesso de uma viagem até a Itália de vários refugiados escondidos num transporte de condutas por camião TIR. Para a Documenta, Hiwa K concebeu "When We Were Exhaling Images", uma instalação de 20 condutas empilhadas (cada uma delas, podendo servir de abrigo temporário). Artista em rápida ascenção, Hiwa K acaba de ganhar o Prémio da Fundação Schering e tem atualmente uma exposição individual no KW Institute for Contemporary Art de Berlim.

Geta Brătescu, já acima mencionada, apresenta “Automatism” (2017) na Neue Galerie. Um breve vídeo (2:13 min) de uma simplicidade linear: um homem dirige-se para uma tela, rasga-a com uma facão e passa pela abertura, continuando o seu caminho até uma nova tela que volta a rasgar e a atravessar. Uma obra recentíssima (2017) mas cujos depuramento e fluidez se devem a uma longa reflexão: na origem deste trabalho está um texto da artista, "The Automatism Produces Violence. Project for an Action" datado de 1974.

Ainda na Neue Galerie, Sokol Beqiri (n. 1964, Peja, Kosovo) apresenta Adonis (2017): documentação de uma performance, vídeo digital, contrato, faturas. Beqiri enxertou uma pequena árvore em Atenas com ramos de um dos famosos 7000 carvalhos que Beuys plantou em Kassel nos anos 80. Algum tempo depois, o artista voltou a Kassel com ramos da árvore de Atenas para enxertar o carvalho que se encontra mesmo em frente do Fridericianum, no centro da Documenta.

Com um excelente ator e imagens envolventes, "Such a Morning" (2017), vídeo de Amar Kanwar (n. em 1964 em Nova Deli), consegue cativar o público (geralmente apressado) da Documenta apesar da sua duração (84 min!). Mostrando de modo sereno e muito pausado como um matemático, no auge da sua carreira, decide retirar-se do mundo para passar a viver em reclusão. O vídeo é um convite à meditação e à introspeção num mundo onde dominam as tensões e os conflitos regionais. Uma mensagem que parece seduzir grande parte dos visitantes da exaustiva maratona artística de Kassel.

Na instalação e performance "A War Machine" (2017), Sergio Zevallos (n.1962 em Lima) faz uma reapropriação da etnografia como arma de guerra. Personalidades do mundo da política, economia, indústria do armamento foram selecionadas consoante o grau de "canibalismo" das suas atividades. As cabeças destes "finalistas" (na realidade retratos tridimensionais realizados com matérias orgânicas) foram sujeitas a um processo de encolhimento segundo o método da cultura amazónica Shuar (Ecuador e Peru). Temos assim acesso às "cabeças" de diretores de bancos internacionais, da atual ministra alemã da defesa e de Christine Lagarde, diretora do Fundo Monetário Internacional. A planta da sede do Deutsche Bank em Frankfurt e um retrato freudiano de Marine Lepen completam a instalação.

Um exemplo dos últimos desenvolvimentos da vídeo-arte: The Dust Channel (23 min.) de Roee Rosen (n. 1963 em Israel). Uma opereta que, num curioso zapping, associa o ódio à sujidade de um casal pequeno-burguês israelita à realidade do conflito israelo-palestiniano e a um clima de xenofobia latente.

Olaf Holzapfel (n. em 1967 em Dresden) ocupa todo um piso no Palais Bellevue com ZAUN (Vedação): uma série de trabalhos à volta da noção de barreira/delimitação que inclui maquetes, quadros abstratos realizados com palha e um vídeo contemplativo, filmado nas paisagens montanhosas do Chile - aqui também: o convite à contemplação, à meditação e ao regresso ao mundo natural presente em muitos vídeos -. Trassen (Linhas/Traçados) é o nome da portentosa estrutura de madeira que Olaf Holzapfel realizou em parceria com artesãos da indústria madeireira para o aprazível parque Karlsaue. Uma grande escultura que combina a tradição alemã das casas de vigamento à vista com desconstrutivismo arquitetónico.

Frente à Orangerie, uma outra escultura vem ilustrar a perspetiva pós-colonialista da mostra: "The Mill of Blood "( 2017) de António Vega Macotella (n. 1979 na Cidade do México), uma réplica em tamanho natural de uma máquina de cunhagem de moedas boliviana, em uso durante o domínio espanhol, que era acionada pela população andina escravizada. "Mill of Blood" denuncia a exploração até à exaustão dos recursos naturais e humanos da era colonial até aos nossos dias bem como a instrumentalização do ser humano pelo sistema económico vigente.

Ibrahim Mahama (n. 1987, Tamale, Gana) tem recoberto uma série de edifícios por todo o mundo com os seus sacos de juta, sinónimos de um comércio global que ignora as consequências sociais, laborais e políticas do seu desenvolvimento desenfreado. Chegou agora a vez do edifício das Portas de Kassel. Os sacos foram cozidos por refugiados e ajudantes na Praça Sintagma, praça central de Atenas (frente ao Parlamento grego) e palco de inúmeros protestos ao longo da crise económica que se prolonga no país.

Voltando à matriz pós-colonial, a emancipação do então chamado "terceiro mundo" é o tema do vídeo "Two Meetings and a Funeral" de 2017(85 min.). Nele, BanNaeem Mohaiemen (n. em 1969 em Londres) debruça-se sobre os meandros da história recente do Bangladesh e narra, de forma documental, os anseios e o fracasso da aliança do Sul Global que pretendia pôr um termo à hegemonia ocidental durante os anos 70.

Na Neue Neue Galerie: destaque mais que merecido para Rasheed Araeen (n. em 1935, Karachi), pioneiro do minimalismo londrino e fundador da revista de arte Third Text (empenhada em alargar a discussão teórica para além da perspetiva euro-norte-americana) que expõe "The reading room" (2016-17), grande instalação com uma série de telas geométricas, mesas de vidro e aço, bancos de madeira (os seus famosos cubos) e exemplares da revista Third Text.

A instalação da "The Society of Friends of Halit" revela problemas e disfuncionamentos da sociedade contemporânea através de vídeos e fotografias sobre a série de crimes cometidos nos últimos anos pelo grupo neonazi NSU e de investigação sobre o controverso papel do Serviço Alemão para a Proteção da Constituição (autoridade de controlo para a segurança interna tristemente conhecida na Alemanha pelo duplo jogo de vários dos seus informadores e frequentemente associada a entraves policiais, judiciais e mediáticos). O vídeo central, uma meticulosa reconstituição espacio-temporal do assassinato de Halit Yozgat num cibercafé de Kassel a 6 de abril de 2006 é uma "prova arquitectónica" que esbate as fronteiras entre arte, arquitetura, investigação criminal e ativismo cívico. Eyal Weizman, principal investigador do Forensic Architecture (agência de investigação baseada na Goldsmiths, Universidade de Londres) defende que uma exposição de arte não deve tratar apenas de beleza mas também de verdade. A documentação das manifestações de solidariedade para com as vítimas vem completar o projeto e apelar à participação cidadã. Para quem não puder ir até Kassel, o vídeo está disponível em: http://www.forensicarchitecture.org/case/77sqm_926min/
Não longe dali, um trabalho sobre desenraizamento e integração. Ao retratar o habitat e o quotidiano de 2 comunidades "deslocadas" de Kassel na série de 53 fotografias que constitui o seu projeto "Heimat" (simultaneamente "terra de origem" e "pátria"), Ahlam Shibli (n. 1970, Palestina) estabelece um inédito paralelismo entre os 15 milhões de refugiados alemães que tiveram de abandonar a Europa centro-oriental em 1945 /1946 e as grandes ondas de emigração vinda do Sul da Europa, Turquia e Norte de África a partir dos anos 50.

O que sobra da memória histórica no espaço que habitamos? Arin Rungjang (n. 1975, Bangkok) tem investigado documentos, relatos e processos de legitimação política através do uso de símbolos e monumentos idealizados como afirmação "democrática" mas cujo autoritarismo acaba por ser revelado pela História. Os protagonistas do seu vídeo "And then there were none" esboçam movimentos poéticos no banal parque de estacionamento que se encontra hoje no local exato da antiga Chancelaria e do bunker de Adolf Hitler em Berlim.

Já aqui tínhamos referido o destaque dado este ano à performance. Em "Staging" da artista e coreógrafa nova-iorquina Maria Hassabi (n. 1973, Chipre), os performers são esculturas que dialogam entre si e alteram os espaços que ocupam introduzindo a noção de lentidão máxima e de que quase imobilismo na alta-velocidade da circulação, do funcionamento e do consumo da arte contemporânea.

Mais um arquivo artístico. Desta vez de uma artista da ex-R.D.A. pouco conhecida do grande público: Ruth Wolf-Rehfeldt (n. 1932, Wurzen) que retirou das suas gavetas 31 desenhos realizados nos 1970-80. Belíssimos trabalhos minimalistas (que lembram Sol Lewitt) realizados com uma rudimentar máquina de escrever.

Artista dos artistas e „enfant terrible" da entourage de Andy Wahrol e da cena artística underground de Nova Iorque, o realizador franco-americano Michel Auder (n. 1945) apresenta "The Course of Empire", vídeo-instalação de 14 canais (20 min.) no piso inferior da estação de Kassel. "The Course of Empire" é uma vibrante colagem de imagens captadas com Iphone que desconstrói a noção de Império recorrendo a citações de James Baldwin, Donna J. Haraway, Arthur Rimbaud e sobretudo de Alexander von Humboldt (na sua descrição da escravatura na América du Sul). Excelente este seu regresso a Kassel depois de ter mostrado os seus primeiros filmes num dos ciclos da última edição da Documenta.

Na Gottschalk-Halle, Israel Galván, Niño de Elche und Pedro G. Romero executam uma empolgante performance onde o flamenco é revisitado como arte dos oprimidos numa perspetiva anárquica, queer e pós-colonial. Ao seguir as deambulações dos performers na penumbra, o público acaba por caminhar sobre centenas de moedas colocadas no chão e que fazem parte do cenário minimalista....

 


UM MOMENTO EPIFÂNICO

Com coprodução portuguesa (da Maumaus/Lumiar Cité), "an Opera of the World " (2017) é a última obra vídeografica (70 Min) de Manthia Diawara, escritor, realizador e professor na New York University (n. 1953 em Bamako, Mali) que regressou à sua cidade natal em 2008 para filmar uma ópera inteiramente realizada e encenada por africanos: "Bintou Were, a Sahel Opera". Eis o ponte de partida para uma reflexão alargada sobre os movimentos migratórios, as influências recíprocas e as interdependências entre o Norte e o Sul. Inspirado pelos conceitos de creolização, de poética da relação (que define a identidade humana pela diversidade das suas relações e não pela sua ascendência étnica) e de nomadismo circular (por oposição ao nomadismo linear dos colonos) do escritor e filósofo Eduard Glissant (1928 – 2011), o filme inclui vários excertos de uma estimulante conversa do realizador com Alexander Kluge e Richard Sennett. Sennett concentra as suas reflexões sobre a questão da emigração (para os Estados Unidos), da importação da mão de obra e simultânea recusa da cultura do emigrante. Baseando-se na sua vasta cultura operática, Alexander Kluge dá sugestões concretas para a criação de uma verdadeira ópera africana a partir daquilo que constitui a sua essência e razão de ser: a universalidade dos sentimentos humanos. Entrevistas com diversos ensaístas e imagens de arquivo mostrando o drama de milhares de náufragos abandonados em pleno Mediterrâneo lançam perguntas prementes e refletem todo o paroxismo da atual crise migratória. Um filme que consegue a proeza rara de denunciar disparidades intoleráveis e de nos estimular intelectual e emocionalmente com uma mensagem em prol da criação artística, do empoderamento e da diversidade cultural.

 

 


Tiny Domingos