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FUNDAÇÃO LOUIS VUITTONMARGARIDA MAFRA2014-12-02A já muito falada Fundação Louis Vuitton foi inaugurada no passado dia 20 de Outubro, no Bois de Boulogne, extremo oeste de Paris. Nos dias que se seguiram, as filas acumularam-se e toda a imprensa francesa cobria o evento. O principal ângulo? Um novo espaço dedicado à arte contemporânea na capital, mas desta vez sem a mão protectora do Estado francês, habitual gestor e impulsionador da cultura. Todo o projecto, cujo custo total terá rondado os 143 milhões de euros, foi encomendado pelo milionário Bernard Arnault, dono do grupo LVMH – Moet Hennessey Louis-Vuitton, grupo empresarial da indústria de bens de luxo sob as quais são geridas marcas como Dior, Givenchy e Loewe. A ideia de construir um edifício dedicado à arte contemporânea, albergando ao mesmo tempo a colecção do magnata, surge em 2006. O edifício seria o primeiro acto artístico da Fundação, afirma Jean-Paul Claverie, consultor artístico de Bernard Arnault [1], e neste sentido surge a necessidade de contactar um arquitecto de renome, neste caso, Frank Gehry. Esta associação entre o produto de luxo, a mercadoria, e o mundo da arte tem vindo a levantar várias vozes em protesto. No entanto, e quase que em resposta prévia às criticas esperadas, Arnault afirma estar consciente do facto de o grupo empresarial que gere estar em dívida para com a cidade de Paris, uma vez que o sucesso do qual goza está em muito ligado à imagem artística que o mundo associa ao país. Arnault pretende assim retribuir, dando apoio às artes e à educação na capital.[2] A construção do edifício teve início em 2008. Seis anos depois, aberta a fundação, a programação inaugural quer mostrar ao público várias facetas do longo processo de concepção e construção, num dialogo íntimo com a arquitectura. O edifício de Gehry inspira-se, como o arquitecto já nos tem vindo a habituar, no mar, no barco à vela, nos cardumes de peixes. Do exterior vemos 12 “velas” em vidro curvado, não muito distantes das curvas e contracurvas de um Guggenheim de Bilbao, por sua vez em titânio. Relatos da imprensa internacional tecem também comparações com o Grand Palais de Paris [3], monumento de vidro e aço que Gehry quereria homenagear. A construção abole a fachada, valorizando todas as perspectivas sobre o edifício da fundação, qual escultura moderna. Planeada de dentro para fora, a estrutura interna do imóvel é perceptível do exterior. A encomenda previa a necessidade de vários espaços expositivos, uma livraria/loja, um restaurante, um auditório, um grande lobby de entrada e duas torres correspondentes às escadas e elevadores. A envolvência do edifício merece também ser mencionada, sendo ela neste caso um dos elementos chave para a fruição da arquitectura pelo visitante. No meio do Bosque de Boulogne, rodeado de espaços verdes, o carácter escultural do edifício tem espaço para se afirmar. Do alto dos seus dois terraços, os limites das velas de vidro abrem perspectivas múltiplas para os arredores: de um lado, o Bosque de Boulogne, espaço verde, e a arquitectura moderna do bairro da Defense; de outro lado, a torre Eiffel e toda a cidade de Paris. De forma inesperada, enquanto percorre o espaço, o visitante levanta a cabeça e depara-se com maravilhosas paisagens, num dialogo perfeitamente explorado pelo arquitecto. Aliás, a visita à Fundação Louis Vuiton faz-se de forma simples e relaxada porque Gehry nos propõem um passeio: um percurso dinâmico e um percurso que apela a todos os sentidos, pela elegância com que as várias propostas culturais do programa inaugural encaixam com a arquitectura. Todas as divisões se encontram ligadas e podem ser percorridas livremente, sem consultar o mapa dos pisos ou o folheto da Fundação. A multidão de visitantes que esperava em fila para entrar no recinto parece agora ter desaparecido, na organização e encadeamento dos espaços, exteriores e interiores, permeáveis entre si. A programação cultural, já referida, remete também para o trabalho arquitectural, começando pela primeira exposição temporária apresentada, de nome La Fondation Louis Vuitton. Num “open space” de paredes negras, um espaço cenográfico destinado à imersão na temática, o comissário Frédéric Migayrou expõe o trabalho do arquitecto canadiano. O percurso começa nos primeiros esquissos, relativos ao contexto, programa arquitectónico e concepção, e leva-nos até aos acabamentos do edificado. A exposição faz-se ainda acompanhar de uma retrospectiva dedicada a Gehry, assinada pelo Centro Pompidou, primeira manifestação do género em França. Quanto às restantes actividades propostas, devemos ainda salientar as 11 galerias expositivas dedicadas à mostra de várias obras da colecção de arte contemporânea de Bernard Arnault, nas quais figuram artistas como Gerhard Richter, Pierre Huyghe, Christian Boltanski e Bertrand Lavier; as 8 obras encomendadas para a ocasião da inauguração; e variadas performances, peças de dança contemporânea, concertos e recitais de poesia, todos eles em correlação com o espaço que os envolve. Duas das obras encomendadas por Arnault são especialmente valorizadas pelo dialogo com a arquitectura: a criação de Ellsworth Kelly, Color Panels, que pontua de cor o anfiteatro da fundação e a instalação de Olafur Eliasson, Inside the horizon, instalada no Grotto, espaço exterior desenhado para servir como futura passerelle de desfiles de moda. Inside the horizon é a sucessão de 43 colunas sob a forma de prismas, cujas superfícies são espelhadas ou emitem luz amarelo néon, criando-se assim um jogo de luz e reflexos que interage com a passagem do visitante. No que toca à performance, podemos destacar Composition for a New Museum, de Oliver Beer, no qual o artista britânico escolheu transformar as paredes de uma das galerias do terceiro piso em instrumento musical: três performers entoam notas musicais que por sua vez ecoam no espaço vazio da galeria. O programa da fundação para o seu primeiro ano de abertura é repartida em três fases, de Outubro 2014 até Setembro 2015, cada uma com uma nova exposição temporária, uma nova mostra parcial da colecção do magnata e um novo programa de actividades [4]. A primeira destas três fases de programação cultural corresponde ao mês que se seguiu à inauguração, terminado a dia 24 de Novembro e sobejamente debatido pelos media. Em causa encontram-se questões como a relação pouco saudável, promíscua e interessada, sem benefícios ao mundo cultural, entre a iniciativa privada e as artes. Em França os museus privados são a excepção: falamos aqui de um país no qual o Estado custeia e controla de perto o sector cultural. No entanto a crise que afecta toda a Europa tem vindo a dificultar esta tarefa. O país vê-se obrigado a revisitar o seu modelo de financiamento e gestão das artes, percebendo que em tempos difíceis, o rico benfeitor pode financiar o projecto que as finanças públicas não podem: grandes museus, como o Louvre ou Orsay recorrem ao crowdfunding para restaurar as suas obras; o Palais de Tokio aluga as suas salas, nova fonte de receitas, por exemplo à marca de luxo Chanel, tendo daí resultado uma exposição dedicada à fragrância Chanel Nº5 [5]. No mês de Outubro, paralelamente à inauguração da Fundação Louis Vuitton, Paris assistiu também à inauguração do renovado Museu Picasso. As diferenças entre os dois projectos ilustram bem o shift que parece surgir no apoio das artes, do poder económico estatal para os capitais privados, frequentemente provenientes da indústria dos produtos de luxo. Enquanto que a Fundação de Arnault foi criada discretamente, reservando as luzes e a ribalta para a inauguração, o longo processo de reestruturação do museu Picasso foi seguido de perto por todos, arrastando-se ao longo de 5 anos, com grandes dificuldades sobretudo ligadas à gestão dos dinheiro públicos aí aplicados. Uma das principais acusações feitas à Fundação e à sua natureza prende-se com a ideia de “golpe publicitário”: não é possível negar o impacto que a criação de uma tal instituição, alojada numa obra arquitectónica de renome, terá para o grupo LVMH. No entanto, não é também possível reconhecer-se o valor desta inauguração para Paris? A cidade tenta há muito recuperar o estatuto de principal centro de criação do qual gozou outrora. Apesar dos grandes projectos culturais e arquitectónicos desenvolvidos nas últimas décadas, como o Centre Pompidou, o Grand Louvre, a Cité de la Musique ou o Institut du Monde Arabe, a França continua atrás de nações como a China e os Estados Unidos [6]. Outras vertentes do debate são desenvolvidas no artigo “L’art n’est-il qu’un produit de luxe?” publicado na revista online Mediapart, assinado por nomes internacionais do mundo das artes, como Georges Didi-Huberman e Giorgio Agamben [7]. O artigo é uma tomada de posição do grupo de intelectuais, que chamam a atenção para os perigos deste novo tipo de mecenato: falam-nos da permeabilidade entre os conceitos de mercadoria e de arte e alertam para a especulação das cotas no mercado da arte dos artistas representados pelos grandes grupos financeiros. No passado terão ficado os nobres mecenas, sem interesses pessoais e financeiros, para dar lugar ao que chamam os “especuladores”. Distanciando-nos deste debate, legítimo, importante, fecundo, cabe-nos constatar que o impacto da Fundação Louis Vuitton no panorama cultural francês resta ainda a ser determinado no decorrer das suas próximas manifestações. Por agora, a fundação parece revelar-se um projecto cuidadosamente reflectido, criativo, feito de conteúdos programáticos agilmente articulados.
Margarida Mafra
::: Notas [1] “Gehry’s Paris coup”, por Paul Goldberg, Setembro 2014, Vanity Fair. Em http://www.vanityfair.com/culture/2014/09/frank-gehry-foundation-louis-vuitton-paris (consultado a 01/12/2014). |