|
PARA UMA INGENUIDADE VOLUNTÁRIA: ERNESTO DE SOUSA E A ARTE POPULARLIZ VAHIA2014-06-18O Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG), nas suas propostas expositivas, vem desenvolvendo um trabalho no sentido de aproximar, através de dispositivos ligados à arte contemporânea, diferentes linguagens artísticas. Neste momento, o CIAJG tem patente a exposição Ernesto de Sousa e a Arte Popular: Em torno da exposição Barristas e Imaginários. Esta proposta regressa à exposição de 1964, organizada na Galeria Divulgação por Ernesto de Sousa e intitulada Quatro Artistas Populares do Norte: Barristas e Imaginários, onde se dá a conhecer trabalhos dos artistas Rosa Ramalho, Quintino Vilas-Boas Neto, Franklim e Mistério. A presente exposição no CIAJG retoma não só as peças da exposição original, mas também as investigações de Ernesto de Sousa em torna da arte popular, conjugando as obras dos artistas com material fotográfico e textos de Ernesto de Sousa. A inclusão na montagem expositiva das provas fotográficas originais (com as indicações de enquadramentos/cortes) mostram não só o método de trabalho de Ernesto de Sousa, mas dão também noção da importância do meio fotográfico para o estudo da escultura e o modo como este foi utilizado para fazer sobressair certas questões relacionadas com comparações entre produções artísticas e materiais diversos. Esta exposição faz emergir novamente as aproximações entre este tipo de arte popular e a arte dita erudita, tocando questões ainda hoje relevantes na discussão sobre práticas e agentes artísticos. Ernesto de Sousa foi uma das figuras que se destacou no período de sede etnográfica pelo país real e pela sua produção cultural. A oposição culta às políticas do Estado Novo tinha nos anos 1930/1940 a sua vertente mais activa no neo-realismo. Foi por esta corrente que Ernesto de Sousa se iniciou, como crítico de arte, para depois se interessar pelo cinema, pelo cineclubismo e mais tarde pela arte experimental. Mas é a partir de finais de 1950 que Ernesto de Sousa vai intensificar a sua militância, não só acolhendo os novos artistas que surgiam e se integravam na corrente neo-realista, mas sobretudo através da proposta de uma intersecção entre as várias formas artísticas, lutando pela não especialização do artista, do crítico, do intelectual, de forma a que a arte não caísse numa auto-referencialidade e se afastasse da sociedade. Em 1946 tinha organizado, em colaboração com Diogo de Macedo, a exposição “Semana da Arte Negra” na Escola Superior Colonial, onde se comparavam a arte moderna (Picasso, Matisse, Almada Negreiros, Amadeo de Souza-Cardoso e outros) com a arte primitiva (esculturas de Benim da Sociedade de Geografia de Lisboa). Em 1954 co-realizou o documentário O Natal na Arte Portuguesa, onde fazia uma abordagem ao tema do Natal na história da pintura e dos presépios desde o século XV, buscando os cruzamentos entre a arte erudita e a arte popular ao longo dos tempos. Outros filmes promocionais e documentários se seguiram, levando-o a percorrer o país e a contactar com a realidade rural portuguesa. Na década de 1960, Ernesto e Sousa vai aprofundar o seu interesse pela arte popular, em busca do país real que a propaganda turística do Estado Novo encobria. Com a ajuda da Fundação Calouste Gulbenkian, que lhe atribui uma bolsa durante dois anos, Ernesto de Sousa faz uma prospecção da arte popular portuguesa, mais concretamente da escultura popular. Estuda a escultura românica, gótica e renascentista com o objectivo de detectar as influências da arte de raiz pagã na arte erudita, comparando depois esses elementos que perduraram com as criações artísticas dos artistas populares contemporâneos. Em 1965 publica o livro Para o Estudo da Escultura Portuguesa, onde reúne textos inéditos à data e outros publicados anteriormente. O trabalho de Ernesto de Sousa sobre a escultura popular apresenta especificidades que o distanciam dos outros estudiosos da arte popular da mesma época. Ao contrário de outros enfoques, Ernesto de Sousa vai debruçar-se não sobre a produção artesanal, mas sim sobre a escultura de autor. São estas obras que fogem às formas previstas que irão representar o popular para Ernesto de Sousa, numa abordagem claramente modernista. Para Ernesto de Sousa esta arte, ao contrário da forma como era entendida a arte popular na época, não era o produto anónimo do povo como artista colectivo, mas antes a realização de artistas individuais que, vivendo à margem das convenções académicas e muitas vezes das comunidades onde se inseriam, eram já modernos sem o saberem. Por isso Ernesto de Sousa insiste na distinção entre arte e artesanato. A arte é obra do artista que cria e exprime o seu mundo, enquanto o artesanato é aquela onde a repetição e a imitação conduzem a decorativismo e ao anonimato. No artigo “Conhecimento da Arte Moderna e Popular” (1964), que escreveu para a revista Arquitectura, Ernesto de Sousa apresenta uma caracterização do artista popular enquanto autor: De um modo geral, uma das principais características de todo e qualquer artista popular é este sentimento de um começo absoluto, de uma imediata e total produção de si próprio nas coisas externas. O artista popular (e isto aplica-se tanto ao outsider da cidade, como, com outras razões e mais fundas raízes, ao artista radicado directa ou indirectamente num agregado rural), mesmo conformando-se estreitamente com a tradição, como geralmente acontece, age com a espontaneidade do demiurgo: é um criador de objectos com actividade própria e poder imediato de transformação do mundo. Do seu espírito está ausente a abstracção alegórica, como qualquer preocupação de cânon formal. A noção abstracta de harmonia é-lhe estranha, pois que ele nada produz que não seja imediatamente harmónico consigo próprio, com os seus hábitos e entendimentos do quotidiano, como com os seus desejos e aspirações de futuro. Em consequência disso a arte popular é mais expressiva do que formal, o seu ímpeto significante sobreleva a harmonia significativa dos seus diferentes elementos (o formalismo é-lhe completamente alheio). É regional e particularizante, e a sua beleza é característica e não canónica. [1] Para Ernesto de Sousa, a arte popular “conservou um sentido fundamental do começo do homem” sem deixar de encontrar-se com influências da arte moderna, encontros que Ernesto caracteriza, no mesmo artigo aqui citado, como “verdadeiros, necessários e fecundos”. O artista não vive alheado das transformações nem a arte popular é imutável. A aculturação pode beneficiar ambos os lados, pois a arte que reproduz e imita não é verdadeira arte popular, esta é sempre criativa, mesmo “assimilando com frequência (não sempre) temas e feições cultas”. Mesmo englobando esses elementos da arte culta, a arte popular vai fazê-lo sem perder a sua espontaneidade, pois para ela estas influências são sempre um ponto de partida para a criação particular e não para a imitação. Para Ernesto de Sousa a arte popular é mais expressiva que formal, sendo a manifestação de uma tradição colectiva que permeia as produções, apesar destas poderem englobar já novos elementos provenientes da cultura urbana e erudita. Ao contrário da arte dita culta, a arte popular seria capaz de manter um fundo colectivo, um eixo que liga o homem à natureza e ao mundo. A arte culta cria formas e cânones numa linha evolutiva, terminando num tecnicismo. A solução para Ernesto de Sousa seria então o eterno recomeço que a arte popular propõe como forma de encarar o mundo. Influenciado pelas propostas de Bertold Brecht, que também defendeu a inclusão de elementos da cultura popular na renovação da linguagem teatral, no final dos anos 1960 Ernesto de Sousa tinha já o seu programa teórico bem definido, propondo uma arte com capacidades revolucionárias. As características populares seriam absorvidas pela arte erudita, esbatendo-se assim as fronteiras entre os dois campos. Tal como no neo-realismo, aqui a arte e a vida deviam interligar-se. Ernesto de Sousa usa estes aspectos para constituir uma militância cultural onde defendia a anti-especialização do artista e a estreita comunicação entre este e o espectador, de modo a que o público pudesse ter um papel activo na produção artística. Como diz num artigo publicado em 1959 na revista Seara Nova, “o caminho do futuro é perfeitamente previsível: o espectador fará parte do espectáculo» [2]. Influenciado pelo movimento Fluxos, vai promover as manifestações artísticas totais como acontecimentos, a dissolução da fronteira arte/vida e a promoção do colectivo em detrimento do individualismo e da noção de autor. Na década de 1960 Ernesto de Sousa tornar-se-á num coleccionador, teórico e promotor da arte popular portuguesa, sendo reconhecido como o divulgador do trabalho do escultor popular de Esposende, Franklim. Para Ernesto de Sousa, o escultor Franklim encarna na perfeição esse primeiro olhar e esse renovar constante. No texto que escreve em 1970 para a Colóquio: Revista de Artes e Letras, Ernesto discursa sobre esse encontro primeiro, o olhar ingénuo que permite ver o mundo como se fosse a primeira vez, como se existisse um “cogito pré-reflexivo”: O encontro com as coisas, com o mundo, era sempre um encontro primeiro, uma origem. Em Franklim realizavam-se assim as condições de um olhar ingénuo; olhar físico ou olhar mental (no sentido husserliano): tudo estava de antemão co-presente e num horizonte obscuramente consciente de realidade indeterminada, mas realidade. As suas ideias e conceitos confundiam-se num presente absoluto, no qual se concentravam heranças e habilidades adquiridas e potenciais reflexões projectivas. Como a propósito de todo o artista ingénuo, e, aqui incluído, todo o artista popular, podemos a seu respeito falar de um cogito pré-reflexivo. [3] Franklim é um artista e não um artesão, o olhar ingénuo que materializa nas suas obras uma mistura de tradição e modernidade numa espontaneidade que está ausenta já da arte culta, disciplinada numa auto-censura por parte do artista dominado pelo academismo. O artista possuidor de um olhar ingénuo não aprende e repete formas, assimila maneiras de fazer como ponto de partida e não como ponto de chegada. Do seu trabalho sobre as permanências e as evoluções nas manifestações da arte popular e particularmente do seu contacto com o escultor de Esposende, Ernesto de Sousa vai desenvolver o conceito de “ingenuidade” enquanto categoria estética e ferramenta teórica. Para desenvolver este conceito vai recorrer a algumas ideias da fenomenologia e do estruturalismo, nomeadamente os conceitos de essência, redução, variação, intencionalidade. Partindo da fenomenologia para chegar à percepção pura, ao retorno ao evidente, reconhecemos na ideia de “redução fenomenológica” de Husserl a intenção do olhar primeiro de que fala Ernesto, o olhar ingénuo. Esta redução leva depois à ideia de essência, a invariante que permanece inalterada apesar das variações. É o objecto sem a construção que o sujeito faz sobre ele. A essência é então a redução ao que é constante, mas só na variação é que a podemos encontrar. Lévi-Strauss fala disso mesmo quando estuda a estrutura do pensamento mitológico. Os mitos não são relatos desordenados, possuem uma estrutura interna complexa que só é perceptível pela análise simultânea de vários mitos. Só assim se poderão perceber as relações entre cada um dos seus elementos. Para Lévi-Strauss o pensamento mítico é na sua essência transformador e a estrutura do mito, apesar de distorcida pelas sucessivas alterações, preserva ainda o carácter de conjunto. A preocupação de Lévi-Strauss era mostrar a unidade do espírito humano e que a diversidade cultural se apoiava numa estrutura psíquica comum constituindo-se numa unidade intelectual do ser humano, sendo particularmente visível numa actividade de todo o homem que é a propensão para classificar. O simbolismo cultural seria a forma de pensamento comum a todos os homens e não característica de uma etapa primitiva do pensamento, nem se reporta exclusivamente às sociedades não ocidentais. Para Lévi-Strauss, o pensamento selvagem é, portanto, um pensamento que não está ainda sujeito a regras definidas, ainda não foi trabalhado, ou melhor, domesticado. Logo, as estruturas psíquicas encontram-se aí mais acessíveis, menos encobertas pelo desenvolvimento de técnicas artificiais de apoio e organização do pensamento, da memória. Estas ideias de redução e essência provenientes do estruturalismo e da fenomenologia, juntamente com a intencionalidade do eu, o sentido que o próprio atribui ao mundo, vão influenciar Ernesto de Sousa no desenvolvimento de uma teoria da ingenuidade. Mais do que explicar o objecto que se propõe estudar, esta teoria da ingenuidade pretende ser um modo de encarar o mundo, tanto para o artista, como para o crítico ou o espectador. Com o termo “ingénuo”, Ernesto vai restringir o campo da arte popular aos objectos produzidos num contexto rural caracterizado pela oralidade e pelas tradições. Estas tendem a condensar o conhecimento num presente constante, conjugando o que foi transmitido com as ferramentas para uma reflexão. A informação nova, entendida como um fragmento-estímulo, é modelada a uma nova situação. Tem o que Ernesto chama “valor de uso”, um valor que é a utilidade que tem para o artista esse fragmento de informação, neste caso, a potencialidade de um começo absoluto. É a atribuição de valor de uso às influências que faz com que o artista popular atinja a máxima liberdade criativa. E é esta ingenuidade que começa a ser procurada pelo meio artístico e cultural da época, através de um interesse crescente pelas produções não só dos artistas populares, mas também dos outsiders e “primitivos”. Daí que Ernesto de Sousa proponha então como caminho a “ingenuidade voluntária”, tomando para si um termo de Almada Negreiros [4], cuja citação abre o texto que Ernesto escreve sobre o escultor Franklim. A ingenuidade não está só presente nos artistas populares, ela é a capacidade de gerar novas e inesperadas conexões a partir de tudo o que nos chega. Ernesto não quer um retrato do país com o seu estudo sobre a arte popular, quer aprender com uma realidade que desconhece, transformar o que vem da alteridade presente numa tradição cultural popular em valor de uso e intervir assim na arte culta, de maneira a resgatá-la do seu definhamento formal. Converte-se no que Mariana Pinto dos Santos classifica como “artista-como-antropólogo-como-herói”, fazendo uma junção de termos de alguns dos textos já clássicos sobre o papel do artista na sociedade: o artista que usa o que vem do Outro para salvar a seu próprio meio cultural. A integração deste princípio da ingenuidade voluntária no seio da arte culta é o que permitirá ultrapassar a ineficaz linguagem do neo-realismo, que quer alterar a sociedade, mas não consegue mudar a forma como o faz. O neo-realismo tem que se transformar numa atitude perante o mundo. Pensar uma nova linguagem artística através da introdução de um olhar ingénuo voluntário é transformar a arte por dentro. Como resume Mariana Pinto dos Santos no seu livro sobre o percurso teórico de Ernesto de Sousa: Ernesto concebeu a ingenuidade como categoria estética e encarou-a simultaneamente como permanência do passado e possibilidade de futuro. A ingenuidade por ele teorizada possibilita a incorporação sistemática de informação em redes constantemente estabelecidas e desfeitas, e em seguida refeitas, entre imagens, obras, autores, artistas, materiais, etc. E possibilita ainda a incapacidade de constantemente refazer o passado à medida do que se absorve no presente. É portanto, instrumento para a invenção e reinvenção de si. [5] Franklim e a arte popular em geral, para Ernesto de Sousa, manteriam esta característica de autenticidade e pureza que é transmitida pela ingenuidade. No texto sobre Franklim, Ernesto afirma: “foi exemplo vivo (pela sua indesmentível realidade existencial) de um perdido paraíso original, ao qual não há que voltar, é certo, mas de que poderemos tirar grande lição.” Este revisitar da exposição original de Ernesto de Sousa pelo CIAJG é uma oportunidade para um encontro com as obras destes artistas, num formato onde a apreciação estética se liga a uma “grande lição” para a arte contemporânea. Liz Vahia Licenciada em Antropologia e doutoranda no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra. ::: Notas [1] Ernesto de Sousa (1964), s/ p. [2] Ernesto de Sousa em «Artes Plásticas», Seara Nova nº 1367, Setembro 1959. Citado por Mariana Pinto dos Santos (2006), s/p. [3] Ernesto de Sousa [1970] (1995), p. 29. [4] “«Sou um ingénuo voluntário» - dizia Almada Negreiros, que algures fez o elogio da ingenuidade.” In Ernesto de Sousa [1970] (1995). [5] Marina Pinto dos Santos (2007), p. 22. ::: BIBLIOGRAFIA BRITO, Joaquim Pais de – No tempo da descoberta de um escultor. In Onde mora o Franklim? Um escultor do acaso. 1ª ed. Lisboa: Museu Nacional de Etnologia, 1995. LEAL, João – Metamorfoses da arte popular: Joaquim de Vasconcelos, Vergílio Correia e Ernesto de Sousa [PDF]. Etnográfica, Vol. VI (2), 2002, pp. 251-280. Disponível em URL: ceas.iscte.pt/etnografica/docs/vol_06/N2/Vol_vi_N2_251-280.pdf PINTO DOS SANTOS, Mariana – “Neo-realismo em Ernesto de Sousa: Raízes de um percurso insólito”. In Nova Síntese — textos e contextos do neo-realismo nº 1 (coor. António Pedro Pita), Campo das Letras, 2006. PINTO DOS SANTOS, Mariana – Vanguarda & Outras Loas. Percurso teórico de Ernesto de Sousa. 1ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007. SOUSA, Ernesto de – “Conhecimento da Arte Moderna e Popular” [online]. Revista Arquitectura, nr. 83, Setembro 1964 [consultado em 20 de Janeiro de 2012]. Disponível em URL: http://www.ernestodesousa.com/?p=245 SOUSA, Ernesto de – “Um escultor ingénuo” [1970]. In Onde mora o Franklim? Um escultor do acaso. 1ª ed. Lisboa: Museu Nacional de Etnologia, 1995. ::: [a autora escreve de acordo com a antiga ortografia] |