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O ESTADO DA ARTE


Vista da exposição Revoluções 1960 - 1975, Atelier-Museu Júlio Pomar. © António Jorge Silva/ AMJP


Vista da exposição Revoluções 1960 - 1975, Atelier-Museu Júlio Pomar. © António Jorge Silva/ AMJP


Vista da exposição Revoluções 1960 - 1975, Atelier-Museu Júlio Pomar. © António Jorge Silva/ AMJP


Vista da exposição Revoluções 1960 - 1975, Atelier-Museu Júlio Pomar. © António Jorge Silva/ AMJP


Vista da exposição Revoluções 1960 - 1975, Atelier-Museu Júlio Pomar. © António Jorge Silva/ AMJP


Vista da exposição Revoluções 1960 - 1975, Atelier-Museu Júlio Pomar. © António Jorge Silva/ AMJP


Vista do interior da Black Box de desenhos. © José Frade / AMJP / EGEAC


Júlio Pomar, Sargaço # 1, 1961. Óleo sobre tela, 65x46 cm. Colecção Sáragga Leal.


Júlio Pomar, Portrait d’Août / Retrato de Agosto, 1974. Acrílico sobre papel «marrouflé» em tela, 75,5 x 56,5 cm. Acervo Júlio Pomar. © António Jorge Silva/ AMJP


Júlio Pomar, Longchamp, 1965. Óleo sobre tela, 65 x 81 cm. Coleção Millennium bcp.


Júlio Pomar, Cena na Praia, 1959. Óleo sobre tela, 130,50 x 162,50 cm. Coleção CAM – Fundação Calouste Gulbenkian.

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O “caso” Pomar continua. E é talvez o que menos controverso e menos superlativo pode dizer-se sobre a exposição Revoluções 1960-1975, em torno da produção do pintor entre aquelas datas. Na verdade, será até uma observação consoladora, por devolver a expressão de prodígio que lhe atravessa a vida artística longeva, e que essa longevidade pode ser que tenha tornado habitual. Há um caso Pomar como houve um caso Agustina, um caso Lobo Antunes, e continua a haver um caso Pessoa. E medimos bem os termos de comparação, isto para nos ficarmos pela literatura. Neste pé, convirá recordar o que “caso” aqui quer dizer: o advento continuado de uma dimensão artística a um tempo tão indómita e tão apreciada, mas também tão portentosa quanto idiossincrática, que vai resistindo a todas as oficializações, extracções e vulgarizações, persistindo nela um resíduo sempre inapropriável e enigmático, o que a torna irresistível. E relembrar que o caso Pomar começa com o artista, mal entrado na casa dos vinte, e no imediato pós-guerra, a oferecer, num panorama sócio-cultural muito constrangido, dois quadros que têm na iconografia da arte em Portugal posição obrigatória, mesmo que, ao tempo, sem o beneplácito das vozes sintonizadas com o estado de coisas [1].

 

Júlio Pomar, Almoço do Trolha,1946-50. Óleo sobre aglomerado, 120 x 150 cm. Coleção Manuel de Brito.

 

Júlio Pomar, Resistência, 1946. Óleo sobre aglomerado, 33 x 73 cm. Coleção do Museu de Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa (doada pelo artista). Em depósito no Atelier-Museu Júlio Pomar/ EGEAC.

 

Obras que além de mostrarem consciência política brilhantíssima, foram executadas com mestria tão fina e segura que provocaram sobressalto. Arregimentaram admiradores tal como embateram em indiferentes. Mas, sobretudo, encarregaram-se de inscrever Júlio Pomar no neo-realismo estético, de que ele é praticamente o fundador nas artes plásticas. Inscrição que foi sendo atribuída de forma recalcitrante – insensata também –, pelo que não vai mal dizer que há um grosso do trabalho posterior que é feito a expensas de encontrar-lhe uma refutação, isto por conta de como o neo-realismo estava enredado numa malha intrincadíssima entre figurativismo, naturalismo, objectivismo, anti-abstraccionismo, anti-surrealismo, realismo socialista e, mais sério, realismo soviético. Tudo etiquetas que a corajosa mente artística de Pomar execrou. E Pomar não era então somente um “prometido” da arte, era ainda um jovem ensaísta abundante e audaz, com textos de intervenção estética que publica desde 1945, sempre com uma mão a contrapelo de quaisquer hostes, mesmo daquela em que foi tido como chefe de fila, a neo-realista, precisamente. Veja-se como defendia o primado da subjectividade artística contra a hegemonia das narrativas reçues, o que não podia deixar de desagradar aos espíritos “gorkiescos” mandatados para conduzir a marcha da solidariedade colectiva:

«Não nos parece que, senão grosseiramente, se possa reduzir o conteúdo do quadro à história que se conta [...]; pelo menos para nós, o conteúdo é, sim, a história vista e narrada e enriquecida pelo artista. […] De nada lhe serve o mais belo pensamento, se não é na própria carne que o vai encontrar, dramaticamente. Há uma experiência insubstituível, que é a própria, e ai do que a ela não estiver atento, que não tenha, na própria carne, e só nela, travado o combate que o tornará de escravo em senhor» [2].

Pomar, o “caso”, foi tendo ainda momentos que sustentam uma mitologia artística que só a noção de “genialidade” consegue honrar, por muito que seja um nexo exorbitante e traidor do modo humílimo como o artista perseguiu o ofício e a vocação da pintura. Génio, portanto. Destruiu obras suas que estavam documentadas. Repintou Ucello e glosou Ingres quando todos queriam Picasso. Deu o corpo às críticas de ter contraído aburguesamento. Neste último, a exposição que aqui se comenta tem, em sua secção documental, trunfos vários, todos a bem de uma honestidade exigente quando se trata de trilhar o caminho da história, e rara em instituições de salvaguarda. Um deles, emocionantíssimo, é o de dar a ver o recorte de jornal com o exacto artigo de Nelson di Maggio, «Alla Maniera Di Boldini», sobre pinturas de Júlio Pomar na Galeria de Arte Moderna [SNBA], publicado no Jornal de Letras e Artes (1966), com teor que, apesar dos mais de cinquenta anos que leva, continua a soar gravoso: «O autêntico criador de formas está ausente. E o que se evidencia ostensivamente é o pintor sensível, agradável e superficial, para contentar o gosto de uma burguesia cómoda e satisfeita. Como Boldini no século passado. Todas as telas estão muito bem resolvidas e calculadas. Quem poderia ficar indiferente? Quem poderia deixar de sentir um sentimento fruitivo? […] Que importa! O bom burguês procura uma digestão tranquila, com uma pontinha de emoção, mas não muita, que o possa perturbar» [3]. Ora, o que há de continuado no “caso” Pomar em Revoluções 1960-1975, parece vir assim traduzido no texto que a apresenta: «As mudanças, que caracterizam toda a sua obra, foram neste tempo tão radicais que os quadros e as pesquisas do artista poderão, por vezes, julgar-se trabalho de diferentes autores». O “caso”, portanto, seria agora o da descoberta de vários pintores-Pomar que o esquecimento não teria perdoado. Na verdade, tal asserção só é compreensível à luz de um escrúpulo de divulgação, mormente para incautos educados na procura do estilo pessoal e que ali se vejam em apuros para encontrá-lo. O que, escutando os testemunhos do pintor, não encontra sustentação teórica. Filológica, pelo menos. O testemunho central surge muito precocemente em Pomar, no texto «Caminho da Pintura», logo em 1945, e refere-se a uma citação de Amédée Ozenfant: «a única revolução, necessária hoje em arte, deve consistir em romper com as revoluções sem motivo» [4]. Terá sido isto que sempre veio a nortear o trabalho de Pomar. De tal jeito que, para pôr cobro a qualquer tremor revolucionário “imotivado”, i.e. arbitrário, a única forma parece ter sido acompanhar os tempos, e colocar-se no posto de uma revolução de fundo, motivada pela necessidade de pintar enquanto processo maior de devolver o espectáculo do mundo. E que mais não é do que o exercício convoluto a que se dedica quem está do lado da “grande pintura”. É isto que sucede em Revoluções 1960-1975, e que a transformam, quem sabe, na exposição mais desafiante que aconteceu em período dos 50 Anos de Abril. Pois que o que ali se vê, chame-se-lhe linguagens sucessivas, ou séries, ou fases – e em que «cada mutação [desfoca] a série anterior» [5] –, é um mosaico extensíssimo das muitas revoluções que Pomar abraçou, e que foi executando sempre com engenho evidente e visão maior. É preciso notar que, mesmo movido por uma disposição exploratória, nunca caiu em experimentalismos sem prumo. Cada trabalho, adopte ele uma gestualidade franca, não dissolvida totalmente em abstracção árida (onde «nada de humano ficou nas telas» [Aragon]); adopte antes a «forma precisa, nítida, e recortada de cor lisa, que não é desenho preenchido» [5], mais afim ao gosto pop; cada trabalho ocupa um lugar de originalidade tão saliente que é difícil ao visitante não arriscar a dispersão. O que esta exposição terá o condão de reparar, aliás, é a injustiça que se faz a Pomar deixando-o, na iconografia da arte portuguesa, representado apenas pela alvorada neo-realista, pelos cerâmicos do metropolitano e pelo retrato presidencial. Há em Revoluções 1960-[…] motivo que baste para que assim não seja.

Porém, o que, a bom ver, perpetua o “caso” Pomar na exposição Revoluções 1960-[…] é qualquer coisa de uma ironia seguramente cruel e de um apuro praticamente inconfessável. É que este Pomar, visto, em 2024, por todos nós que logram apreciá-lo e que com ele se catapultam, parece transformar-nos em autênticos conservadores em matéria de gosto, o que assim não queríamos. Basta ver a trivialidade em que se afundou a pintura em Portugal nas gerações que se seguiram. Atente-se para isso na exposição que o MAAT agora apresenta, Hoje soube-me a pouco - Introversões e utopias artísticas no pós-25 de Abril: no Júlio Pomar único que ali se mostra [Sem título, 1974], quadro que combina um cromatismo aggressive-pop com um recorte gráfico naked-op, há mais rebeldia do que nos demais artistas por junto.

Cumpre asseverar a justeza da curadoria de Revoluções 1960-[…], sobretudo no que respeita à montagem abundante das peças, que, temerária, parecerá, num primeiro relance, não ter acautelado um módico de respiração e de distanciamento. Acontece, de modo inadvertido ou não, que o efeito de acumulação resulta numa atmosfera cheia de glória. Mercê da heterogeneidade das peças e do aspecto heteróclito da disposição, aquilo a que se tem acesso é a um genuíno Wunderkammer [“Gabinete de Curiosidades”], com tudo o que semelhante recinto comporta de imersão profunda e calada, mas também de desagravamento da pompa a que as grandes exposições sujeitam quem as vê, pois que tudo ali são bagatelas, humor muito propício ao deleite do trabalho de Pomar. E fica também assim evitado o deslize maior que seria, no Atelier-Museu, realizar essa manobra muito gasta, e a fortiori redundante, de replicar o cenário do atelier do artista. Como cúmulo deste ambiente no limiar do insólito, há a assinalar o ponto altíssimo que é a Black Box de desenhos.

Pede visita redobrada. Merece ser posta a viajar. Por muitos motivos, dos quais o que mais nos convoca é estar nela exposta, à sua parede mais funda, a série muito rigorosa das cinco Ilustrações para «A Selva» de Ferreira de Castro (1960). E em modo tal, que lhes está ali oferecido um pequeno santuário. Que elas bem merecem.

À volta das bagatelas, na volta das revoluções, o crítico faz-se explorador – ou agent provocateur –, e revela os seus achados, denuncia os seus eleitos. Com aqueles que a seguir abaixo se deixam, faziam-se, no mínimo, quatro revoluções: 1) uma revolução lunar, 2) uma revolução solar, 3) uma revolução hípica e 4) uma revolução marinha. E preenchiam-se quatro cantos vazios da iconografia da arte em Portugal. Quanto ao mais, o “caso” pode continuar.

1) Sargaço # 1, 1961; é tela em que a matéria da pintura está contorcida pelo objecto que nela tenta representar-se, e que ele mesmo se transfigurou; é como um Bacon que tivesse sido pintado ao luar;
2) Portrait d’Août, 1974; tudo indica que seja um retrato, mas também é possível que seja o perfil de um acidente topográfico, ou o corte geológico sobre uma meseta dourada; há nele um pingo radioso de pop-ethniticy.
3) Longchamp, 1965; um Turner que tivesse aparecido nas corridas de cavalos.
4) Cena na Praia, 1959; investigação supliciante sobre os limites da verosimilhança, marcada por um expressionismo gestual mergulhado em lirismo sombrio.

 

 

João Borges da Cunha
Doutorado em Estudos de Cultura, Universidade Católica Portuguesa. Arquitecto, Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa. Professor no Departamento de Arquitectura da ECATI [Escola de Comunicação], Universidade Lusófona. Investigador nos centros ARQ.Id e CECC. Publicou ensaio, teatro e ficção.

 

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Notas

[1] Almoço do Trolha (1946-50), Resistência (1946).
[2] Excerto de comentário aos trabalhos do neo-realista Lima de Freitas in Pomar, Júlio, Notas sobre uma arte útil, Parte Escrita I, pp. 219-221, apud Pomar, Alexandre (2023), Júlio Pomar : depois do novo realismo, Lisboa: Guerra e Paz, p. 23.
[3] Nelson di Maggio, «Alla Maniera Di Boldini» in Jornal de Letras e Artes, 1966, p. 8.
[4] in Pomar, Júlio, Notas sobre uma arte útil, Parte Escrita I, pp. 30-37, apud Pomar, Alexandre (2023), Júlio Pomar : depois do novo realismo, Lisboa: Guerra e Paz, p. 77.
[5] Pomar, Alexandre (2023), Júlio Pomar : depois do novo realismo, Lisboa: Guerra e Paz, p. 171.

 

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Revoluções 1960-1975

11.07.2024 // 24.11.2024
Atelier-Museu Júlio Pomar