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ÁLBUM DE FAMÍLIA – UMA RECORDAÇÃO DE MARIA DA GRAÇA CARMONA E COSTAJOANA CONSIGLIERI2024-04-23
My careful heart was free again, — Emerson, R. W. (1993, p. 39) Friendship
Um gosto. Uma memória. Uma família. Da recordação, vislumbramos a possibilidade de um caminho e de uma narrativa por imagens no mundo das Artes em Portugal. Maria da Graça Carmona e Costa edifica por uma história de imagens uma narrativa estética que vislumbra um gosto muito peculiar, em que tece entre suaves fios de seda a passagem pela arte contemporânea. Presencia-se um gesto e um gosto na experiência artística, mais do que uma coleção, reflete-se uma intensa jornada da atividade da colecionadora e o seu amor pela arte, que se desenlaça em galerista (Giefarte), colecionadora e mecenas (Fundação Carmona e Costa [FCC]). Assim, mergulhamos através do seu olhar num tempo suspenso na arte, onde no gesto vibra a memória, do seu olhar, o outro. A dinâmica da liberdade de escolha que espelha um gosto de um colecionador viabiliza múltiplas questões sobre a “lógica de um colecionador” (Groys, 1993). Viajamos sobre um discurso fragmentado por imagens que representam a unidade de um gosto e a idealização estética da colecionadora. A operação de construir um discurso a partir de uma coleção permite ao espectador sentir para além do discurso estético, do valor da obra de arte, ou mesmo, do mercado artístico. Maria da Graça Carmona e Costa revela-nos através das suas escolhas, o gesto, a memória de um tempo e o momento sensível dessa seleção. Para cada obra de arte, vibra a experiência estética do olhar de quem perceciona o interesse pela experiência do sentir. Maria da Graça aspirava a possibilidade de querer contribuir para uma mudança qualitativa do mundo da arte portuguesa, tanto na perceção como no gosto. Esboçou um caminho muito próprio de uma enorme sensibilidade artística, que se aproxima da sensação da criação, esboça uma narrativa por imagens artísticas, que pretendem desafiar o olhar estético contemporâneo por um gesto subtil magnânimo. Através de Álbum de Família, somos convidados a experimentar o seu olhar estético, sentimos o outro, que faz parte da sua família. Desdobra-se, desta forma, por vários caminhos dos quais Maria da Graça viveu e presenciou nos seus últimos 50 anos. Apresentam-se quatro momentos principais de exposições de obras de arte – um no edifício Central do MAAT, outros dois momentos na sede da Fundação Carmona e Costa e um outro na Appleton [Box]. Em diferentes contextos e experiências artísticas, divergentes em obras de arte, estilos e artistas. No MAAT, convoca-se à fruição estética expandida por um diálogo de séries dos artistas. A comunicação germina com a contemplação artística dos catálogos, num registo, uma memória, uma forma em dialogar com o espectador. Na exposição, os artistas relacionam-se entre si como uma espécie de simbiose estética, de modo a estabelecerem uma conversa espacial da fruição. A exposição é pensada no encadeamento entre os artistas, mas também no modo de ver uma coleção, entre artistas e entre séries. Fruímos a convergência estética das séries com a obra de arte singular, estabelecendo, deste modo, o prazer da fruição de uma obra de arte na coleção. No espaço, temos um diálogo estético, a título de exemplo, contemplamos os desenhos de Rui Chafes com os de Pedro Calapez, que se encontram opostos na mesma sala. Os desenhos de Pedro Cabrita Reis que comunicam numa pequena sala interior com o seu specific object; as aguarelas de João Queirós, que percorrem um determinado espaço; a tapeçaria de Ilda David que atravessa uma sala; as duas esculturas de Manuel Rosa que emergem entre séries e a obra de José Pedro Croft; as duas cabeças de Rui Sanches que se destacam entre pinturas; e a instalação de Pedro Valdez Cardoso rodeada por desenhos de Francisco Tropa. Na Fundação Carmona e Costa, parte I e II, somos impelidos a olhar para os detalhes e pormenores. Cada obra segue-se uma à outra numa narrativa da sensibilidade como se de uma ordem se estabelecesse, depois da desordem do impulso sensível da aquisição. Presenteia-nos quase como uma parte do todo de uma coleção. As imagens narram a sua história. Destacam-se a obra Mapa de Maria José de Oliveira ou trabalhos fotográficos de Jorge Molder. As pequenas esculturas de Miguel Branco que se misturam na coleção da Fundação, tal como em “Poço #9” de Rui Horta Pereira, que comunica entre cerâmicas. O negro circular da Cristina Ataíde narra com a instalação de Moirika Reker e Gilberto Reis. O informe ecoa lado a lado, da pintura de Michael Biberstein para a de Catarina Pinto Leite. Num gesto expressivo do vazio de Graça Pereira Coutinho vibra em contraponto com a cor “não-cor” de Fernando Calhau. Porventura, sobressai-nos como vento ou sinais a delicada escultura de madeira de Alberto Carneiro, mas também, conjuntos de obras como as de Pedro Chorão ou a instalação-escultórica de Rui Matos.
Vista da exposição Álbum de Família - Obras da Coleção Fundação Carmona e Costa, Appleton [Box]. © Pedro Tropa
No espaço da Appleton [Box], temos uma visão mais documental, entre registos, cartazes, pequenos livros de autor ou de artista, impressões ou portefólios, folheamos pormenores de alguns artistas da coleção. Apresenta-se, assim, um modo de ver e de contemplar os pensamentos, formas, matérias, registos ou vestígios do interior do ser. O maior desafio sem dúvida da parte dos curadores João Pinharanda e Manuel Costa Cabral seria como compor as múltiplas imagens (obras de arte), que expressam mais do que um gosto ou uma memória, mas um tempo alegórico de uma sensibilidade.
Vista da exposição Álbum de Família - Obras da Coleção Fundação Carmona e Costa, Appleton [Box]. © Pedro Tropa
Maria de Graça presenteia-nos com o seu gosto em obras seriais ou minimais, das quais contemplamos, por exemplo, através de Francisco Tropa, Rui Chafes, Pedro Calapez, Maria Capelo ou António Poppe. Ou seleciona a obra por narrativas de cada artista como em Jorge Santos, Paulo Brighenti, Jorge Martins, Helena Almeida, Lourdes Castro, Teresa Segurado Pavão ou Maria Pia Oliveira. Assim, o amor pela obra de arte é desvelado nos seus múltiplos gestos, que expressam as suas ideias, convicções e valores da sua história pessoal, num tom muito singular. Uma ordem que se apresenta mais na desordem de estilos e de pensamentos, nos diferentes artistas, desafiando, desta forma, os sistemas do mercado de arte, confina em recordações da sua vida pessoal e profissional. Oferece-nos uma visão muito própria de uma colecionadora, como sustenta Benjamin (1987, p. 228) “a existência do colecionador é uma tensão dialética entre os polos da ordem e da desordem”. Descobrem-se caminhos de um passado que nos incide perante os olhos. Estamos, portanto, diante de uma coleção que se definiu como uma pintura moderna numa forma de “pensamento por imagens”:
[a] pintura moderna, isto é, o cinematógrafo, isto é, formas que caminham em direção à palavra; muito exatamente, uma forma que pensa. (Godard. [1998]. Histoire(s) du cinema, pp. 54-55)
Através das obras de arte, encontramos trilhos de ideias delineados pela colecionadora. Segundo Benjamin (2013, p. 22), “as ideias relacionam-se com as coisas como as constelações com as estrelas”. A magia desta metáfora leva-nos a intuir que Álbum de Família se desenlaça em si na incompletude do espectador entender as várias manifestações do pensamento subjacente da colecionadora quando adquire uma dada obra de arte. Maria da Graça Carmona e Costa flutua na sensibilidade das ideias, o que lhe confere mais a um estado sensível e poético da perceção. A História da Arte passa a ser reescrita num outro formato, o da sensibilidade emocional, ou melhor “uma história da sensibilidade estética”. Lembra-nos de outro modo, talvez mais próximo de uma metáfora da qual citamos “uma História de Arte sem palavras” de Aby Warburg para a sua coleção Mnemosyne “O Atlas de Imagens” (Bilderatlas), onde a História da Arte se converte mais num espírito multidimensional de antropologia visual, na qual Didi-Huberman descreve como um espírito que oferece e abre “balizas visuais não de uma história da Arte, mas de uma memória impensada da história” (Didi-Huberman, 2010, Atlas. How to carry the world on one’s back?).
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