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O ESTADO DA ARTE


Nos Limites, de Radhouane El Meddeb, Mathias Pilet & Alexandre Fournier. Créditos Joana Patita. Cortesia Festival Materiais Diversos


Fábrica da Cultura, Minde. Créditos Joana Patita. Cortesia Festival Materiais Diversos


Conversas pós-espetáculo. Créditos Joana Patita. Cortesia Festival Materiais Diversos


Fora-de-Palco: aula de dança de Leonor Keil. Créditos Joana Patita. Cortesia Festival Materiais Diversos


Fora-de-Palco: Baile Fica no Singelo. Créditos Joana Patita. Cortesia Festival Materiais Diversos


De repente fica tudo preto de gente, de Marcelo Evelin (preparação). Créditos Joana Patita. Cortesia Festival Materiais Diversos


De repente fica tudo preto de gente, de Marcelo Evelin. Créditos Joana Patita. Cortesia Festival Materiais Diversos


A Mary Wigman Dance Evening, de Fábian Barba. Créditos Rui Gonçalves. Cortesia Festival Materiais Diversos


Conferência: A Mary Wigman Dance Evening and A personal yet collective history, de Fábian Barba. Créditos Rui Gonçalves. Cortesia Festival Materiais Diversos


Ha! de Bouchra Ouizguen, Compagnie O. Cortesia Festival Materiais Diversos


La 3ème chambre, de Kevin Chambre. Créditos Joana Patita. Cortesia Festival Materiais Diversos


La 3ème chambre, de Kevin Chambre. Créditos Joana Patita. Cortesia Festival Materiais Diversos


Oracle (G Version), de Lorenzo Senni. Créditos Rui Gonçalves. Cortesia Festival Materiais Diversos


Vontade de ter vontade, de Cláudia de Dias. Créditos Joana Patita. Cortesia Festival Materiais Diversos


Insight, de Francisco Campos & Leonor Keil. Créditos Rui Gonçalves. Cortesia Festival Materiais Diversos


Fica no Singelo, de Companhia Clara Andermatt. Créditos Rui Gonçalves. Cortesia Festival Materiais Diversos


Não Sou Só Eu Aqui, de Cláudia Gaiolas & Rita Rui de Sousa. Créditos Rui Gonçalves. Cortesia Festival Materiais Diversos


Concerto de Capicua. Créditos Rui Gonçalves. Cortesia Festival Materiais Diversos

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Sob o signo de um festival de artes performativas, coabitaram, entre as serras de Aires e Candeeiros, não somente gentes e materiais diversos, como distintas temporalidades e geografias. A sexta edição do Festival Materiais Diversos (FMD) decorreu entre 18 e 27 de Setembro. É agora tempo de prosseguir caminho.

Não deixa de ser inesperado observar que localidades como Minde, Alcanena, Torres Novas e Cartaxo, periféricas na sua relação com os principais centros de criação e mostra artística, acolhem anualmente um festival que se fundou a partir do eixo estruturante da dança contemporânea e da música. Todos os anos, a este território de beleza natural e arqueológica, com uma tradição industrial do têxtil e dos curtumes, chegam propostas internacionais e nacionais de grande pertinência, umas mais irreverentes, outras mais consensuais. Estas são apresentadas a par de trabalhos realizados com a comunidade local, e acompanhadas por diversas ações fora-de-palco, catalisadoras de reflexão e alargamento de público.

Na génese deste evento está, segundo Tiago Guedes (fundador do festival e, até à última edição, o seu diretor artístico), o desejo de criar um festival não citadino, que tivesse a capacidade de se tornar cosmopolita em si mesmo pela programação que oferecia.

As inquietações que o alicerçam podem traduzir-se em alguns questionamentos. Como se mostram objetos artísticos de circulação internacional a um público não habitual, permanecendo este na sua zona de conforto? Como são esses objetos artísticos percecionados por um público com outros códigos de legibilidade, sem os a priori, ou as expectativas de um público frequente de dança contemporânea? O que pode oferecer este público na sua receção, que o diferencia de outros públicos?

Este festival, que pela sua programação poderia estar numa qualquer capital europeia, mas que foi desejado para este contexto particular, assenta numa ideia basilar para Tiago Guedes, a de que “a dança contemporânea é universalmente comunicante”.

 


Biografia de um nome

A legibilidade da dança e do gesto foi mote para outras criações de Tiago Guedes, nomeadamente, o seu segundo solo, também ele intitulado Materiais Diversos. É possível traçar uma certa linhagem deste nome na cartografia das artes performativas em Portugal. Materiais Diversos é simultaneamente um solo (2003), uma associação cultural sem fins lucrativos (2006), e um festival (2009), todos criados por Tiago Guedes (coreógrafo, programador e, recentemente, diretor do Teatro Municipal do Porto).

A perduração do nome revela alguns sentidos que permanecem: a exploração da elasticidade da matéria e dos objetos artísticos criados ou apresentados (respetivamente, no solo e no festival) e, com esta, o potenciar de todo um campo de alteridade nas leituras e posicionamentos do espectador em relação ao objecto apresentado (novamente, no solo, ou no festival).

Ainda, no que respeita o solo, o coreógrafo propõe algo aparentemente simples: repete os mesmos movimentos em dois momentos do espetáculo. No primeiro, os gestos surgem abstratos e o público intui possíveis significados. No segundo momento, a repetição dos movimentos faz-se com os objetos que os despoletaram, e que vão fazendo a sua aparição em palco à medida que o respetivo gesto o exige. Não só o coreógrafo ironiza sobre a previsibilidade das primeiras leituras do público, como lembra o quanto os nossos gestos e comportamentos estão codificados. Ao manusear os objetos de uma forma inusitada, subvertendo as suas funcionalidades mais óbvias (um rolo de sacos de lixo que desenha o curso de um rio, uma parede de folhas de jornais que se converte em montanha, um fio de pesca que arrasta cadeiras), o coreógrafo sublinha, de um modo lúdico, a comunicabilidade múltipla do gesto e da matéria.

O diverso contamina o conteúdo para, através dele, despoletar a pluralidade. Esta intenção encontra-se muito evidente na génese do Festival Materiais Diversos. Desde logo, um nexo que vemos confirmado na escolha geográfica para o festival, como no próprio desenho da programação, capaz de suscitar uma potencialidade tão disruptiva quanto catalisadora. Se um festival vive do signo do encontro, circunscrito na efemeridade de um lugar e de um tempo, encerra em si esta dualidade que reúne tanto o festivo como o confronto, pela tangência e transgressão de limites, mais ou menos porosos, entre materiais e gentes diversas.

A singularidade geográfica, cultural e humana do FMD é assumida como potencialidade e a integração da comunidade local é uma premissa basilar. A inclusão desta fez-se, desde o início, pela necessidade de resolução da logística de alojamento, numa localidade pequena como Minde, sem infraestruturas hoteleiras mas com uma longa tradição de acolhimento dos peregrinos a Fátima. Todos os anos um desafio é lançado aos habitantes locais: o de disponibilizarem a sua casa para acolher os visitantes, artistas e equipa colaboradora. Assim, naturalmente, os anfitriões tornam-se espectadores. E com o passar dos anos, a comunidade desta povoação acabou por adotar o festival como um evento seu, ancorado num sentimento de familiaridade com Tiago Guedes, natural de Minde.

Para além da partilha de alojamento, a relação com a comunidade promove-se através de residências e criações com os habitantes locais de diversas faixas etárias, e de atividades pedagógicas extra-palco, como workshops nas escolas e aulas abertas durante o festival, conferências paralelas, ateliers de crítica, e eventos de reunião e lazer, como festas, pic-nics, entre outros. Nesta edição destaca-se o espetáculo Octávio de Olhos Fixos, de Ângelo Cid Neto & Sara Chéu, exclusivo para o público escolar.

O dinamismo do festival alimenta-se dessa contribuição conjunta, que naturalmente faz estreitar laços, gerando uma teia de relações que, ano após ano, se ativa e se expande.

 


Um grito no topo da serra, que adora o silêncio dos espetáculos...

Desde a primeira apresentação, esta foi a edição do FMD que ofereceu maior número de propostas internacionais, em diálogo com algumas recentes produções nacionais e encomendas diretas a artistas para projetos realizados com os habitantes locais.

Do Brasil chegou a peça do coreógrafo Marcelo Evelin, De repente fica tudo preto de gente, que reflete sobre a relação entre as massas (de gente e de corpos), o poder e o medo, partindo de um livro de Elias Canetti “Massas e Poder” (1960).

De entre Quito e Bruxelas, surgiu a maravilhosa e desconcertante proposta do jovem coreógrafo e bailarino equatoriano Fábian Barba, A Mary Wigman Dance Evening: a reactualização/recriação de um recital de 1930 de Wigman, expoente da dança moderna e expressionista alemã. Aqui, abalam-se as categorias historicistas de passado/presente/futuro – ou, se pensarmos na história da arte, do clássico/moderno/contemporâneo – para, tão delicadamente, nos lembrar que o agora é não-uno, tanto na coexistência de temporalidades, como na suas inúmeras geografias. Este terá sido um dos momentos singulares do festival, tanto mais por ter sido ancorado numa conferência proferida por Fábian Barba no dia anterior, seguida de uma conversa com Anabela Silva e Ana Dinger. Num tom de dádiva, Fábian expõe fragilidades e inquietudes sobre o seu pensar e fazer a dança, sobre a experiência que trazia do Equador versus os padrões europeus e norte-americanos professados em escolas como a P.A.R.T.S. em Bruxelas, onde fez a sua formação recente. O que é o contemporâneo da dança e onde reside a diferença entre este e a categoria “dança contemporânea”? Que relações de poder e (pós)colonização se estabelecem nestas classificações, quando olhadas e aplicadas territorialmente entre países periféricos (entendidos como subdesenvolvidos) e outros centralizados, ou desenvolvidos? No final, ao dançar Mary Wigman (afinal, não tão distante do Equador), Fabian Barba lembra-nos o quão pouco temporal e territorial é o contemporâneo.

De Marrakech, a jovem coreógrafa marroquina Bouchra Ouizen, em colaboração com as três companheiras de viagem e de trabalho – Kabboura Aït, Ben Hmad, El Hanna Fatéma, Naïma Sahmoud -, senhoras de meia-idade e cantoras Aïta, propôs Ha!, uma peça-experiência sobre a loucura, sua e de quem se permitiu penetrar no seu ritual extático. Ficaríamos satisfeitos somente com os dez primeiros minutos da peça, e a premissa da coreógrafa realizar-se-ia: não a apresentação de uma peça de dança, mas o convite à experiência. Próximo da hipnose, a atenção do público é capturada nas vozes e gritos exalados que se repetem, nas cabeças e no corpo agitado, devolvendo à plateia uma energia tão perturbadora quanto vital.

Kevin Jean, coreógrafo francês, usa um episódio de lesão física nos pés para questionar os cânones do virtuosismo na dança contemporânea, e fá-lo apresentando a proposta La 36ème Chambre, um solo com o corpo em posição invertida e suspenso pelos pés. Com outra perspectiva espacial e corporal, Kevin Jean propõe toda uma nova dança.

Partindo da evocação da ausência física trabalhada em diversos sentidos, o coreógrafo tunisino Radhouanne El Meddeb dirige Nos limites, uma história comovente protagonizada pelo duo de acrobatas franceses, Alexandre Fournier e Mattias Pilet, que reitera o desejo de mostrar a beleza da fragilidade humana.

Finalmente, de Itália, Lourenzo Senni traz um concerto audiovisual onde explora as potencialidades hipnóticas da música transe, acompanhada pelo desenho minimal dos lasers no espaço cénico.

Das propostas nacionais, Cláudia Dias apresentou Vontade de Ter Vontade, uma travessia em terreno incerto (um retângulo de areia), marcado pela passagem do tempo (e da vida), pautado pelo texto e pelo despir, onde os passos da coreógrafa vão deixando rasto. Ao perguntar-se continuamente “se eu for por aqui...”, Cláudia Dias transporta-se para destinos imaginários que vão do norte da Europa, às ex-colónias, apoiados numa reflexão irónica sobre o estado atual do país, da Europa, das clivagens e ambiguidades norte-sul, central-periférico, colonizador-colonizado. Quais as condições de possibilidade para um futuro próximo ou distante? Onde alicerçar a vontade resiliente de ficar, ou a vontade de ir?

Francisco Campos e Leonor Keil trazem Insight, um trabalho que procura expor, de modo caricatural, a agitação interna dos pensamentos, acompanhados de um movimento coreografado em loop, tornando audível o texto que cada personagem discorre dentro de si e com o outro.

Em Fica no Singelo, de Clara Andermatt, a proposta debruça-se sobre o encontro entre o património popular e a cultura artística, matéria para aquilo que na linguagem dos corpos lhes transmigra e é comum – o prazer de dançar. Note-se também a importância da música e o arrastar das noites longas animadas por Dj’s, a força da palavra dita por Capicua, que apresentou cabeça e cauda do seu álbum Sereia Louca, e o hino desta edição FMD de 2014 “Casa de Campo”.

Enquadrado nos projetos com a comunidade, Cláudia Gaiolas & Rita Rio de Sousa, com a participação dos trabalhadores de algumas das indústrias de curtumes do concelho de Alcanena, apresentam a peça de teatro e vídeo Não Sou Só Eu Aqui. A partir do espaço, da memória e dos movimentos do trabalho que se enraíza no corpo, este projeto oferece à comunidade envolvida um espaço de abertura para um outro olhar sobre si mesmo.

Tempo do Corpo é o nome de outro projeto realizado com a comunidade local dirigido pela coreógrafa Sofia Silva à população sénior, com mais de 65 anos de idade. São duas semanas de trabalho intensivo, com pessoas sem experiência em dança e algumas já com certas limitações físicas, que resultam numa apresentação pública comprovando que não há limites intransponíveis para o corpo. Quadros preenchidos por contrastes entre o limite físico e a energia vibrante que pulsa dentro desses corpos desgastados e marcados pela passagem do tempo. Contudo, é através desse mesmo corpo que se esbatem fronteiras entre a matéria física e aquilo que não se vê, mas que se sente e se percepciona.

 


No mapa nacional de festivais de artes performativas, de onde destacamos, nomeadamente, o alkantara, um festival bienal em Lisboa, ou o Circular – Festival de Artes Performativas, evento anual em Vila do Conde, o FMD assume uma certa radicalidade no confronto com o contexto sociocultural e geográfico onde se insere. Se existe uma vantagem estratégica nesta descentralização, que facilita inclusivamente o apoio ao financiamento, ela propõe-se também como catalisadora do desenvolvimento socioeconómico da região, assim como impulsionadora de formação artística. As seis edições comprovaram já uma certa fidelização do público ao evento, potenciador sobretudo nas camadas mais jovens. Contudo, o desejável será que este evento pontual seja capaz de, com o decorrer do tempo, cimentar as bases para um desenvolvimento cultural contínuo e produtivo na região.

 

O próprio futuro do FMD irá desenhar-se de uma outra forma. A direção artística, até ao momento vinculada a Tiago Guedes, irá assumir um formato mais colegial, partilhada pelos artistas associados da Materiais Diversos.

Assim, a pluralidade dos materiais dissemina-se à pluralidade das escolhas.

Ficamos a aguardar.

 


 

Alexandra Balona, Ana Dinger, Rita Xavier Monteiro e Sofia Soromenho

 


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Nota: As reflexões detalhadas sobre os espetáculos do FMD 2014 estão publicadas em http://www.materiaisdiversos.com/index.php/festival/festival-materiais-diversos-2014/forum-de-reflexao.