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O CALÍGRAFO OCIDENTAL. FERNANDO LEMOS E O JAPÃOJOSÉ OLIVEIRA2024-12-01
No mês de Setembro o evento cultural mais esperado foi a reabertura do Centro de Arte Moderna (CAM) da Fundação Calouste Gulbenkian, depois do seu encerramento para obras de remodelação durante cerca quatro anos. Previamente, uma programação de artes contemporâneas japonesas, denominada Engawa, alimentou a expectativa relativamente à reabertura do espaço, remodelado pelo traço do arquitecto japonês Kengo Kuma, com o acrescento de um novo jardim na concepção do arquitecto paisagista Vladimir Djurovic. O conceito de Engawa, que em japonês significa mais do que apenas uma zona de transição entre o jardim e a casa, está na base do projecto de Kengo Kuma que tem justamente como objectivo essa ligação e esse encontro entre o exterior e o interior (entre a natureza e a casa) através de vidraças de grande dimensão e de uma enorme pala/alpendre que veio a constituir a nova identidade visual do CAM. É na sequência deste projecto sob o signo do Japão que, apropriadamente, o CAM apresentou na sua reabertura a exposição “O Calígrafo Ocidental. Fernando Lemos e o Japão”, aproveitando o facto de ter sido a própria Fundação a conceder-lhe uma bolsa, em 1962, que lhe permitiu durante seis meses estudar in situ a caligrafia e arte japonesa. Esta foi também a oportunidade para não só mostrar ao público quinze provas fotográficas feitas no Japão (impressas em 2018) e adquiridas pela Gulbenkian a Lemos em 2019, mas também proporcionar uma visão alargada do seu trabalho que inclui obras desde o final dos anos 40 até 2019 (ano do seu falecimento) em diálogo com peças de outros companheiros e artistas representados na colecção do CAM ou pertencentes à Fundação (estampas japonesas [2]).
Adequadamente, a exposição de Fernando Lemos decorre na galeria do CAM hoje denominado de Engawa que, pré-existente à remodelação, tem agora uma ligação com o jardim sul e com o grande alpendre proporcionada pela nova pala, não só através de vidraças ao longo de todo o espaço, mas também pela utilização no tecto da galeria de madeiras idênticas à pala numa aparente continuidade, só quebrada pela transparência do vidro. O ambiente criado pela cenografia da exposição, pensado por Rita Albergaria, é o de uma casa japonesa com diferentes divisões que se ligam entre si e com o espaço exterior através da utilização de tabiques/armações de madeira nos quais foi aplicado, de ambos os lados, um papel translúcido (originalmente no Japão seria papel washi), invocando um elemento importante da arquitectura tradicional japonesa (painéis shoji) no sentido de proporcionar uma iluminação suave e difusa entre o exterior e o interior ou na passagem entre divisões. Na ligação entre as quatro “salas” criadas para a exposição, pontua a pintura e o azulejo, suportados em estruturas idênticas aos tabiques de madeira, e um vídeo/entrevista de Lemos num espaço em que, para assistir, o visitante tem à sua disposição um banco corrido de madeira, material natural também utilizado nas ripas de apoio às tabelas das obras ou nos longos expositores das salas, numa evidente solução de simplicidade e valorização das texturas e materiais naturais tão importantes na cultura tradicional japonesa.
Tal como indica a curadora Leonor Nazaré no seu ensaio incluído no catálogo, o título da exposição é derivado da afirmação de Lemos “Eu era uma espécie de calígrafo ocidental”[3] , que expressou numa carta endereçada ao director do Serviço de Belas-Artes da Fundação Calouste Gulbenkian (Artur Nobre Gusmão) em julho de 1963, após a sua estadia no Japão. Alguns anos mais tarde, seria a historiadora e crítica de arte Aracy Amaral a mencionar esta qualidade na obra de Lemos ao referir-se às suas obras dos anos de 1965/67 como “Versões de um caligrafismo absorvido pelo formalismo ocidental” [4], indicando claramente esta assimilação da experiência da passagem pelo Japão no seu trabalho. Mas, apesar do título da exposição referir especificamente o Japão, a mostra não é sobre o trabalho desenvolvido por Lemos neste país quando o visitou em 1962/63, nem mesmo sobre as imagens feitas por Lemos nessa altura (algumas impressas só em 2018), mas antes sobre os paralelos e influência que esta visita teve na sua vasta obra. Deste modo, não é uma exposição cronológica, nem formalmente se afirma através de especificidades do fazer artístico, mas antes se subordina a temáticas desenvolvidas ao longo de seis núcleos, a partir de frases/afirmações do próprio Lemos, em que as suas obras dialogam por vezes com obras de outros artistas (alguns muito próximos, como Fernando Azevedo ou Marcelino Vespeira) ou com estampas japonesas da colecção de arte da Fundação Calouste Gulbenkian, na possibilidade de afinidades ou proximidades formais nesses encontros. Este modo orgânico de estruturar a exposição a partir de frases de Lemos permite, por um lado, que o visitante tenha um primeiro contacto com o universo poético (por vezes enigmático) do artista [5] e, por outro, oferece ao curador a abertura suficiente para delinear percursos e olhares diversificados que se somam num todo, como capítulos de um livro. Esta opção teve em conta certamente não só a personalidade do artista, que privilegiava o diálogo (mas não desdenhava por vezes o confronto), mas também o carácter eclético da sua obra que se desdobrou na pintura, poesia, fotografia, desenho, ilustração, edição, grafismo, design… ao longo de um mixed-media temporal que não obedecia a uma ordenação de sentido único e a uma programação prévia. Na verdade, a obra de Lemos é um novelo com várias “pontas soltas” que nos remetem para uma totalidade em que é difícil distinguir começos e fins, ou finalidades em si. Não se pode observar a fotografia desligada do grafismo e da pintura (e até da política), ou o desenho sem a poesia, o design sem a caligrafia, porque o universo de Lemos é múltiplo tendo eventualmente, como denominador comum, uma liberdade sem compromisso que sempre presidiu à suas opções (políticas, artísticas, e de vida). Seria o próprio Lemos a afirmar em entrevista “Escrevo como se fizesse fotografia, faço fotografia como se pintasse, pinto como se estivesse fazendo desenho […] As pessoas têm dificuldade de me encaixar em algo, não sabem onde me colocar.” [6] De um modo consciente, os “diálogos” entre obras na exposição são diferentes dos apresentados no catálogo. A extensão da parede não se compadece com a limitação da página dupla da publicação. Porém, há opções que funcionam melhor no catálogo do que na exposição de que é exemplo a imagem “Design Final” (1963-2018) (pg. 299) que sobressai e beneficia do espaço de uma página em branco do lado oposto, mas que na exposição não tem o destaque que merecia, apesar da pequena distancia da série que a precede. Aliás a questão do espaço é, na exposição, talvez o aspecto menos positivo, pecando por defeito face ao excesso de trabalhos apresentados, o que vai, de algum modo, contra uma certa ideia de minimalismo que se pode encontrar nos interiores da arquitectura tradicional japonesa, a manter-se o conceito do ambiente cenográfico desenvolvido para a exposição. Interessante notar a pontuação de obras de artistas portugueses da colecção do CAM que estabelecem paralelos com o trabalho de Lemos nomeadamente a “ocultação” de Fernando Azevedo, que teve reflexos na sua fotografia (exposições múltiplas), os grafismos de Ana Hatherly que, do mesmo modo que Fernando Lemos, lançou mão da poesia (visual) e inspirou-se no estudo da caligrafia oriental para o seu trabalho [7], ou a fotografia a preto e branco de Jorge Molder que, entre luz e sombra, parece evocar algumas imagens de Lemos (de carácter mais surreal) realizadas entre 1949 e 1952. Das imagens do fim da década de quarenta e inícios de cinquenta, pelas quais Lemos é mais conhecido, apenas algumas mais gráficas e um único retrato, igualmente gráfico, o de António Pedro de costas em Moledo, realizado depois de Lemos lhe ter anunciado a sua decisão de partir para o Brasil. E esta é, essencialmente, uma mostra do trabalho de Lemos na sua aventura brasileira, tendo como ponto de partida a incursão e as imagens realizadas no Japão em 1962/63, que foram realizadas numa abordagem diferente das produzidas nos anos 40 e sem o compromisso de retratar uma geração engajada de intelectuais e artistas para memória futura. As imagens do Japão são quase registos/apontamentos num diário descomplexado, nas quais o retrato com identificação perde importância face à surpresa da linha e forma no espaço e na arquitectura, em que sobrevém claramente a ilustração da afirmação do próprio Lemos que disse sentir-se sempre um gráfico naquilo que fez [8].
Para além do respectivo catálogo da exposição, foram editadas mais duas publicações complementares - “Dicionário da Travessura” e “Japão” - que abordaremos brevemente. O “Dicionário da Travessura” é um pequeno livro ilustrado concebido pela curadora Leonor Nazaré “dedicado à disrupção verbal espontânea do artista”, como referido na contra-capa, em que um conjunto de entradas de A a Z são o mote para os pensamentos frases/aforismos/perplexidades/humor de Lemos, que mostram bem a sua “forma irreverente e livre de estar na vida”, como refere a curadora, e um complemento para entender o universo do artista em que a escrita, a par da obra plástica, esteve sempre presente. “Japão” é uma achega inédita e importante para o entendimento do alcance da obra de Lemos porque, na verdade, vem ao encontro da modalidade que escolheu para a mostra das suas imagens realizadas nesse país, mas que nunca chegou a ser concretizada. Trata-se de um livro de artista com a impressão dos negativos de pouco mais de 130 imagens aproveitando-se o trabalho já estruturado pela editora e designer Isabel Santana Terron. A ser realizado na altura, não seria a primeira vez que Lemos mostraria impressões de negativos das suas imagens. Na verdade, nas fotografias que realizou entre 1949/1952 são exemplos da ampliação da reprodução de negativos “Janela” e “Iluminação” [9] em que, eventualmente, o grafismo da imagem seria, para Lemos, mais importante do que a realidade apresentada nas provas em positivo. Neste livro, agora publicado com as imagens do Japão, é ainda mais evidente a intenção de Lemos em subverter a realidade da imagem servindo-se do aspecto “surreal” do negativo para relevar o artista gráfico que sempre foi. Por fim, o catálogo da exposição, bilingue e com mais de 350 páginas é, em si mesmo, uma edição admirável não só pelo conteúdo dos ensaios, mas também pelo cuidado no seu design em que se consegue descortinar uma certa influência da cultura tradicional japonesa. Um exemplo é a utilização da escrita na vertical tanto no título da exposição na capa, como nos separadores interiores. Um outro aspecto interessante, e não por acaso, é o desnível em relevo da capa do catálogo dado por uma folha espessa de cartolina negra que assenta numa imagem a tinta-da-china sobre papel de Lemos representando pássaros e árvores estilizadas. Poderia passar despercebido, mas, efectivamente, estamos perante uma insinuação do conceito de Engawa na arquitectura japonesa, numa ligação simbólica entre a natureza (obra de Lemos) e a casa, em que tradicionalmente o alpendre (zona de sombra e de transição) se coloca num plano superior ao jardim. Acresce ainda no catálogo a distinção entre a reprodução das obras de Lemos e as dos outros artistas jogando com as dimensões dos cortes de páginas e da gramagem do papel, (ambos mais reduzidos no último caso) remetendo-se, de uma maneira acertada, as suas tabelas (rigorosas) para um índice final, não comprometendo assim a visualização e as relações formais que o leitor possa estabelecer entre as diferentes obras. Nota final para a surpresa que constitui no catálogo a inclusão de um fac-simile de um postal intervencionado por Fernando Lemos, a exemplo de outros que são apresentados na exposição.
Uma exposição não é só a mostra das obras, é importante a maneira como são apresentadas e são, do mesmo modo, importantes os materiais de apoio para as contextualizar (catálogos, folhas de sala e outras publicações). Aqui tudo foi pensado de uma forma integrada para se dar a ler a obra de um artista multifacetado como Fernando Lemos numa exposição que poderá ser equacionada como uma segunda parte ou complemento, da mostra de referência Fernando Lemos: À Sombra da Luz, realizada igualmente no CAM há exactamente trinta anos, mas focada apenas nos retratos de 1949/52. À pergunta, como se exibem as quinze fotografias de Fernando Lemos sobre o Japão adquiridas pela Fundação em 2019, a resposta não podia ser mais surpreendente do que esta exposição abrangente sobre o seu trabalho. O que retenho de Lemos é a sua irreverência, o seu espírito de humor, a sua humildade, as suas histórias, o seu companheirismo… tudo qualidades humanas que não tem a ver com a sofisticação de um discurso elitista sobre arte contemporânea. O discurso de Lemos é sobre a vida, sobre os encontros, sobre a sua maneira de estar no mundo, sobre os muitos amigos que fez, sobre a sua maneira multifacetada de dar a conhecer o seu mundo, o modo como o via e o fazia chegar aos outros encontrando na escrita, na poesia, no desenho, na fotografia, na pintura, na ilustração, múltiplas formas que organicamente se cruzaram no tempo, sem atropelos nem pressas. “O tempo nunca se preenche, escoa…” escreveria num dos seus postais [10], e foi nesse escoar que Lemos se deixou levar e se preencheu, vendo e inventando o que via.
José Oliveira
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Notas [1] Frase num postal intervencionado por Fernando Lemos patente na exposição, numa variante do seu poema “Quanto Mais Desejo”. |