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A OBRA DE ARTE NA ERA DA SUA REPRODUTIBILIDADE DIGITAL (II)AUGUSTO M. SEABRA2012-01-04Quando se proclamou que a Biblioteca compreendia todos os livros, a primeira reação foi de uma felicidade extravagante O conjunto das obras consagradas à arte não reproduz um museu que não existe – sugere-o e, mais rigorosamente, constitui-o, cria um lugar imaginário que só existe por si Google é o nome de um motor de busca e o de uma empresa fundada em 1998 por Larry Page e Sergey Brin quando eram ambos doutorandos da Universidade de Stanford na Califórnia. Mas “Google†tornou-se também num termo corrente, tanto que em 2002 a American Society a considerou a “palavra mais útil†do ano, dando mesmo origem a um verbo, “to Googleâ€, consagrado pelo Oxford English Dictionary e o Webster’s Online Dictionary em 2006 – “eu googloâ€, “tu googlasâ€, “ele googlaâ€. Sem dúvida alguma, o Google é-nos hoje um instrumento de trabalho crucial – como outros meios digitais, caso da Wikipedia. Mas aquilo que ora trabalhamos é muito mais que um utensÃlio. O grande escritor inglês Evelyn Waugh dizia que “the language is a mindsetâ€, que a linguagem e a lÃngua são um sistema de pensamento. O que ora sucedeu com as tecnologias de informação e os meios digitais é uma autêntica rutura epistemológica, isto é, uma mutação radical dos nossos sistemas de pensamento e de perceção do mundo, que será ainda maior nos que desde a infância usam essas possibilidades. As tecnologias da Microsoft, da Apple, do Facebook e sobretudo do Google mudaram os nossos padrões de conhecimento e formas de sociabilidade. Há agora um “homem virtualâ€, na simbiose do seu cérebro com as tecnologias, como tem sido teorizado por Joël de Rosnay, na biologia, ou Pierre Lévy na filosofia do conhecimento, em obras como O Cérebro Planetário e O Homem Simbiótico (Rosnay), ou Cibercultura, Ciberdemocracia ou A Máquina Universo (Levy), de tÃtulos tornados aliás em expressões largamente divulgadas. Na origem dos trabalhos de Page e Brin esteve a procura de “backlinksâ€, de reenvios, bem como a de “organizar a informação do mundo e torná-la universalmente útil e acessÃvelâ€, quando trabalhavam no projeto de “biblioteca digital universal†de Stanford, qual concretização da “Biblioteca de Babel†de Borges. Até agora, ao recente lançamento de uma nova rede social, Google+, a empresa tem desenvolvido uma panóplia tecnológica que tem também suscitado inúmeras controvérsias. Há ações “antitrustâ€, sobre o abuso de direito de concorrência, movidas até pelo Congresso americano e a Comissão Europeia. A 14 de dezembro de 2004 a Google anunciou o projeto de digitalizar, no prazo de seis anos, uma quinzena de milhões de livros impressos. Associações de autores, das mais relevantes, moveram-se contra a disponibilização grátis e em linha de textos e obras. O historiador Jean-Noël Jeanneney, então diretor da Biblioteca Nacional de França, publicou um virulento manifesto, “Quand Google défie l’Europe – Plaidoyer pour un sursaut†(“Quando a Google desafia a Europa – em defesa de um sobressaltoâ€). Mas há mais. Uma célebre capa do diário britânico The Independent, de 24-05-07, assimilava a Google ao projeto totalitário do “Big Brother†em 1984 de George Orwell – “Google is watching youâ€. Em causa estava (está) a possibilidade de acumular uma base de dados sobre cada utilizador, de cada cidadão. Não menos polémico foi o lançamento do Google Street View, que não se fica pelas ruas e pode entrar pelas casas dentro, violando o próprio conceito de “privacidade†e de “espaço privadoâ€. Pois foi justamente usando a tecnologia do Street View que foi lançado um novo e deveras ambicioso projeto, o Art Project (www.googleartproject.com), em parceria com museus como o MoMA, o Hermitage, a Tate Britain, a National Gallery, o Van Gogh, os Uffizi, Versalhes, etc., 17 no total. Mas não há só a Google: recentemente em Portugal, a Casa das Histórias Paula Rego, em parceria com a Microsoft, disponibilizou o Deep Zoom (www.tinyurl.com/7zbuu4k), com obras da artista dos anos 70. Não são apenas sites, como a generalidade dos museus e das instituições tem, mas trata-se da introdução da possibilidade de fazer um percurso, de olhar cada obra com diferentes aproximações, perspetivas e percursos. As mutações tecnológicas vieram também introduzir profundas potencialidades no modo de fazer arte, da “poeisisâ€, como aliás, ainda de modo ambivalente, fora prognosticado por Heidegger (“AÃ, onde existe o perigo, aà também / cresce aquilo que salvaâ€, em liminar citação de Hölderlin). Mas possibilidades novas também no modo de circulação e referência das obras de arte – num exemplo recentÃssimo, e ao extremo paradoxal, porque a “street view†por definição é para ser apreendida no local em que foi concebida e concretizada, o site www.houhouhaha.fr propõe-nos uma seleção da “melhor arte de rua de 2011â€. Implicará esta nova possibilidade de reprodutibilidade digital da arte, a agudização do atrofiamento da “aura†da obra, do seu “hic e nunc†como Walter Benjamin já analisara? Ou permite uma concretização inédita e muito mais consequente do “museu imaginário†delineado por André Malraux? Conclui na próxima coluna Augusto M. Seabra |