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OS ARQUIVOS DA CARNE: TINO SEHGAL CONSTRUCTED SITUATIONSISABEL COSTA2017-12-20
A recente tendência da arte contemporânea de dar destaque à prática do arquivo tem desencadeado uma tendência para a auto-arquivação, que nos últimos anos que se tem vindo a revelar como uma prática artística. Há, em primeiro lugar, da parte da performance arte a preocupação de questionar diretamente a sua natureza efémera e, em segundo, a vontade da parte dos artistas de interferir na esfera institucional, ao desafiar estruturas arquivísticas participando na história e destino dos seus próprios arquivos. E ainda podíamos acrescentar uma terceira, o facto de os objetos artísticos ganharem cada vez mais vida, e mesmo os efémeros, se perpetuarem ou “sobreviverem” quase autonomamente. Neste artigo vou falar de Constructed Situations, de Tino Sehgal. Esta é uma série de obras de performance arte que têm no centro da sua preocupação a sua própria arquivação. E que, para além disso, procuram dar uma nova forma ao que temos vindo a compreender como as práticas e possibilidades do arquivo de arte.
Constructed Situations é composta por um conjunto de performances que se desenvolvem em torno de uma ação específica, ou de um “conjunto de circunstâncias”, a que o artista chama de “situações”. Com um grupo de performers, Sehgal cria performances que são apresentadas espontaneamente em espaços não convencionais dentro de museus e galerias. Na construção das suas peças, Sehgal cinge-se apenas à utilização de um material: o corpo dos performers. Desta forma, os seus materiais são a voz, a língua, o movimento e a interação entre os performers e os participantes. Acreditando na singularidade de cada evento, e por isso, na impossibilidade de o repetir, Sehgal proíbe qualquer tipo de registo das suas performances, impossibilitando qualquer registo físico do seu trabalho, e por isso qualquer arquivo físico tradicional. Constructed Situations é então perpetuada apenas na memória dos visitantes, participantes e intérpretes que fizeram parte do evento. Desta forma, Sehgal confia a história, ou até mesmo a “sobrevivência” do seu objeto, à memória dos participantes e dos seus intérpretes. Theses Associations é uma das peças que compõem Constructed Situations. Nesta performance, um conjunto de mais de 50 performers de idades diferentes circula pelo hall de entrada na Tate Modern a fingir que são visitantes. Só depois de algum tempo é que nos apercebemos que existe um padrão nos seus movimentos e que o grupo está a desenhar uma coreografia no espaço através de várias ações em loop. Este padrão não é fixo – funciona como um jogo com certas regras que compõem uma estrutura que os performers têm que seguir. Nas suas ações os performers integram o inesperado, procurando o inesperado na relação com o espectador. Kiss foi apresentado pela primeira vez no Museu de Arte Contemporânea de Chicago, em 2002. É uma escultura construída por dois performers que reencenam o momento antes e o momento depois de um beijo, fazendo referência através dos seus movimentos a míticos casais da história de arte. Kiss faz referência a The Kiss (1889) de Auguste Rodin, a The Kiss (1908) de Constantin Brâncusi, de Gustav Klimt (1907-8) e também a várias pinturas de Gustave Courbet, da década de 1860. "This is so Contemporary” é uma performance com três performers vestidos com o uniforme de guardas de museu que se passeiam discretamente nas salas do museu. Subitamente este trio começa uma dança muito agitada lembrando bailarinos de jazz, estalando os dedos enquanto cantam a frase “This is so contemporary, This is so contemporary...”. Logo depois voltam às suas posições iniciais e anunciam a performance que acabaram de executar, dizendo “This is So Contemporary! Tino Sehgal! 2005! Todas estas performances são apresentadas em espaços não tradicionais dentro de museus, tais como locais de passagem, halls de entrada e salas de exposição. Nestes lugares a variedade de estímulos exteriores à performance são aproveitados e integrados nestas on-going performances. A arquitetura destes espaços e a sua funcionalidade como espaço de trânsito para as muitas multidões que habitam o hall e os corredores dos museus, é integrada também. Funciona como uma “situação expandida” que prevê estas interrupções provocadas por estímulos exteriores e as integra como parte da situação que se tenta estabelecer. As situações de Sehgal, apesar de serem apresentadas dentro do museu, abrem-se para várias outras esferas, incluindo o espaço e o ambiente onde são apresentadas, mas também os objetos estáticos e em trânsito que habitam o espaço do museu.
Até onde irá esta situação expandida? Quando analisamos o trabalho de Sehgal, somos tentados a lê-lo a partir da perspetiva de quem deseja instaurar um regime de total imaterialidade da arte. No entanto, ao contrário das políticas de desmaterialização do final dos anos 60, onde a produção de trabalhos imateriais era considerada um escape ao mercado da arte, Sehgal não assume qualquer tentativa de proteger o seu trabalho de ser vendido ou exposto em museus ou galerias de arte. Pelo contrário, a sua relação com estas instituições estéticas é de extrema proximidade. Sehgal comercializa o seu trabalho. Porém, a compra das suas peças não é simples. Nada pode ser registado ou documentado em papel. Numa entrevista a Hans Ulrich Obrist em 2012, Sehgal descreve a venda da peça Kiss ao Moma. Ele descreve que a transação foi feita verbalmente, por um advogado, na presença de Sehgal, dos seus intérpretes e de dois curadores do Moma. Os intérpretes repetiram a peça e as condições sobre a reprodução da obra foram ditas em voz alta e confiadas à memória dos presentes. [1] Sehgal implica os corpos humanos envolvidos nas suas peças na “sobrevivência” do seu objecto, uma vez que nada do evento é documentado e que a “sua existência” é confiada à memória dos participantes, intérpretes e profissionais do museu. A situação expandida de Sehgal estende-se para lá da galeria do museu - ela entra para dentro do museu, modificando/operando a sua infraestrutura. No trabalho de Sehgal, o corpo é, em primeiro lugar, um objeto efémero - no momento da produção da peça e logo depois, no momento da sua “de-produção” [2] , o corpo passa a “testemunho vivo” da performance. Assim, o facto do trabalho ser de-produzido (desfeito e intencionalmente não documentado), não faz com que ele “pare de existir”, pelo contrário - por não existir nenhuma documentação, o trabalho é “guardado“, “armazenado“ na memória dos corpos dos performances e “transportado“ na memória dos participantes. “De alguma forma existe na minha cabeça, no meu corpo e nos corpos daqueles que sabem repeti-la, também existe na sua memória e na memória daqueles que a viram.” [3] O trabalho do antropólogo Alfred Gell pode ajudar-nos a entender como se materializa esta ideia de situação expandida de que falo. O seu conceito de objecto distribuído [4] reflete sobre os modelos não tradicionais de arquivo em sociedades não ocidentais. Um objecto distribuído é um objecto que se estende na memória coletiva de uma comunidade e que apenas por essa via resiste ao tempo, correndo o risco de se transformar ou até de desaparecer no processo de transmissão de memória coletiva. Da mesma forma, o trabalho de Sehgal cria este objeto distribuído não palpável, distribuído pelos corpos que experienciaram Constructed Situations.
Numa primeira leitura, podemos pensar que em Constructed Situations Sehgal tenta fugir à construção de um arquivo. Mas o que quererá dizer Tino Sehgal quando nos fala do ato “de-produzir” a sua obra (que confia aos seus intérpretes e participantes) e quando “obriga” as instituições a seguir um protocolo de “passagem de testemunho” de corpo para corpo de forma preservar a sua peça? Não será esta também uma forma de arquivar? Tino Sehgal em Constructed Situations mostra-nos que existe um arquivo do corpo, e que por isso podemos confiar, quase literalmente, na existência de um “arquivo da carne”. O que está aqui a ser proposto é que, nesta série, o corpo é explorado através de uma perspectiva materialista onde “o que o corpo faz”, tal como qualquer outro material ou objecto, é parte fundamental nesta peça. Se num primeiro momento o corpo é a matéria da obra, num segundo momento é um repositório onde está armazenado parte do evento. Como sugere Rebecca Schneider [5] no artigo “Performance Remains”, nos arquivos da performance arte apenas os ossos e os esqueletos dos eventos são salvos e admitidos no arquivo – ela refere-se a registos como a fotografia, o vídeo, ou o áudio. Já a “carne” é um objeto desconsiderado para conter memória. Sehgal, ao não documentar as suas peças, obriga o corpo, a ser o único vestígio e testemunho do evento. Ele vê a “carne” como um objeto material onde pode depositar e confiar o seu arquivo. É à natureza escorregadia e subjetiva do corpo que Sehgal confia a construção da sua peça e posteriormente do seu arquivo.
Como propôs Mauricio Lazzarato no ensaio “Art, Work and Politics in Disciplinary Societies and Societies of Security”, construir novos modos de existência regidos apenas pelo regime estético quando queremos entrar na esfera política - já não é suficiente. Ele defende que “Só é possível articular o que significa uma situação com uma ação capaz de a transformar.” [6] O argumento de Lazzarato pode relacionar-se com o trabalho de Sehgal. Ao produzir um objecto que sugere outro tipo de ordem dentro das estruturas de um arquivo, e consequentemente da infraestrutura do museu, Sehgal não propõe apenas uma nova forma de arquivar, ele vai mais longe - convida as instituições a mudanças radicais para poderem expor e preservar o seu trabalho. A sua obra projeta a arquitetura do seu próprio arquivo - como se a sua obra lançasse um braço invisível para dentro do arquivo das instituições. Mesmo quando nos dizem fazer o contrário, as instituições estéticas nas suas estruturas arquivísticas habituais fazem-nos acreditar que aquilo que constitui arquivos é eterno, firme, sólido e nunca efémero. O que Sehgal propõe é um arquivo cuja função não pode ser totalmente desempenhada por uma instituição. O seu arquivo é constituído e operado pelas memórias de seres humanos. Assim, através da natureza transitória e circunstancial da arte, Sehgal afirma a natureza transitória e circunstancial da construção um arquivo.
Isabel Costa
Notas [1] “Nós não levamos nada, não assinamos um contrato, não levamos um certificado, nem nos é permitido fotografar a obra” Klaus Biesanbach, Curator Chefe do Departamento de Média e Performance Arte no MOMA. [2] Termo usado pelo artista – significa o momento em que a peça se desfaz. [3] Tino Sehgal, entrevista com Hans-Ulrich Obrist, “Interview Project“, Volume II, 828. [4] Alfred Gell, “Art and Agency, An Anthropological Theory“ , Clarendon: Oxford, 1998,142. [5] Rebecca Schneider, “Performance Remains.” Performance Research, 2014: 100-108. [6] Mauricio Lazzarato, “Art, Work and Politics in Disciplinary Societies and Societies of Security,” Radical Philosophy 149, May-June 2008, 26
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