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Os museus constituem, do ponto de vista histórico e simbólico, e nos seus acervos e práticas, um dos vértices capitais do sector público da cultura: eles representaram a abertura de usufruto pelo “povo”, pela comunidade, do espólio artístico, e por consequência da possibilidade de fruição e conhecimento.

Ora, a rede nacional, aqueles incluídos no âmbito do Instituto dos Museus e da Conservação (IMC) – 28 museus a que com a última reestruturação orgânica se vieram acrescer cinco palácios nacionais anteriormente na alçada do Instituto do Património, o Paço dos Duques de Guimarães e os Palácios de Mafra, Queluz, Sintra e Ajuda – é um dos sectores mais fragilizados do sector público da cultura, com particulares problemas crónicos de suborçamentação (que determinaram em anos recentes encerramentos parciais por falta de garantias de segurança nos Museus Nacional de Arte Antiga (MNAA) e do Chiado, ou mesmo, e contra toda a lógica e princípios, que verbas provenientes do mecenato fossem desviadas para as despesas de manutenção corrente) e também problemas de dimensão, consistência e âmbito da própria rede, meramente de ordem burocrática e institucional, sem atender a realidades e valores materiais, simbólicos e estratégicos muito diversos.

Todavia recorde-se que no desastroso quadriénio governativo anterior, o de Sócrates I, o discurso da ministra Isabel Pires de Lima fazia-se de multiplicação de museus (alguns certamente necessários, como os do Côa e do Douro, mas é do discurso global que se tratou) e, se calhar pior ainda, o impávido e quase invisível José Pinto Ribeiro, insistiu na transformação do Museu de Arte Popular num novo museu do Mar da Língua, deu luz verde ao processo da previsivelmente catastrófica transferência do Museu Nacional de Arqueologia de Belém para a Cordoaria, e, pior ainda, se demitiu das suas responsabilidades ao ser (ao deixar-se ser) alheio à iniciativa do seu colega da Economia Manuel Pinho, responsável pela tutela da Sociedade Frente Tejo, de construir um novo Museu dos Coches, projecto do galardoado arquitecto brasileiro Paulo Mendes da Rocha, e projecto “que ninguém havia solicitado” (os termos são os da Câmara Municipal de Lisboa), de um custo de 31,5 milhões de euros (num sector cronicamente suborçamentado, repita-se, e com necessidades bem mais urgentes) e que, tal como foi assinalado numa petição pública contra o projecto, “constitui um verdadeiro ‘terramoto’ de verdadeiro ricochete na museologia nacional” (*)

A nomeação de Gabriela Canavilhas no governo Sócrates II foi acolhida entre a surpresa, a incredulidade perante alguém sem peso político e também, mais minoritariamente, alguma expectativa de que me fiz eco em crónica anterior. Passados alguns meses, verifiquemos os factos: por um lado mantêm-se a níveis residuais o orçamento do ministério, por motivos é certo justificados pela contenção e rigor de um OE determinado pela grave crise financeira do Estado, mas que ainda assim não deixa de ser sintomática da falta de consideração estratégica do sector cultural (por parte do governo mas também, diga-se, das oposições sem excepção), numa altura aliás em que ironia, veio a público um estudo elaborado pelo ex-ministro da Economia Augusto Mateus sobre “O sector cultural e criativo em Portugal” que inequivocamente concluí pelo relevo e dinâmica acrescida do mesmo.

Feita a ressalva estrutural e crónica, não podem todavia deixar de se referir as nomeações para os cargos superiores do ministério e as primeiras decisões políticas da nova ministra. Se a mais mediática nomeação foi a de Maria João Seixas para a Cinemateca Portuguesa (a melhor nomeação possível dentro da área política do governo), é de notar que o secretário de Estado Elísio Sumavielle, um quadro burocrático e político-partidário, escolheu para lhe suceder no IGESPAR a sua “alma gémea”, Gonçalo Couceiro, sofrível director regional da Cultura no Algarve conhecido sobretudo pelo seu interesse na criação de cavalos (se calhar outro património, mas que nada tem a ver com edificado), e que para o Instituto dos Museus e da Conservação foi indicado João Brigola, nomeação que “à priori”, em termos de curriculum, podia ser desfasada das realidades e das urgências, pela sua especialização em história dos museus.

A ministra assumiu, de modo mesmo politicamente excessivo, o projecto excedentário e pernicioso do Museu dos Coches (“por mim já estaria feito”, disse), mas até ao momento teve os focos políticos mais intensos em dois aspectos muito positivos: um empenho na criação de uma Cinemateca no Porto, e justamente a área museológica, decidindo-se, contra o seu antecessor, pela manutenção do Museu de Arte Popular (defendida por um amplo movimento cívico), obra que para além do seu acervo próprio e potencial é exemplo único representativo de uma concepção cultural do Estado Novo, que importa preservar como parte da História, e dando a conhecer um Planeamento Estratégico do IMC que finalmente faz face às realidades – e que mostrou também ser acertada também a escolha de Brigola.

Não sem atabalhoamentos, o ministério fez primeiro saber da demissão de Paulo Henriques da direcção do Museu Nacional de Arte Antiga (quem por decisão política entrou, no processo de afastamento de Dalila Rodrigues, por decisão política saiu) e que os novos directores de museus seriam sobretudo gestores, para no dia seguinte emendar a mão, ao anunciar a nomeação para o Museu Nacional de Arte Antiga de António Filipe Pimentel, que é um académico ilustre e não um funcionário de gestão, e as linhas gerais do planeamento estratégico.

Recordo que Paulo Henriques disse que iria concentrar-se no interior do museu. Ora, a um director de museu hoje exige-se, além da indispensável competência própria, que sobretudo saiba planear estrategicamente a instituição, projectá-la para o exterior, relacionar-se com a colectividade e também com o meio empresarial onde podem ser colhidos mecenas. Dir-se-á que Pimental tem escassa concreta experiência de direcção de museus, apenas estando há pouco tempo na direcção do Museu Grão Vasco de Viseu, mas não só tem amplo curriculum nos domínios da história da arte e também na das mentalidades, como há um outro ponto estrutural que importa ressalvar: é necessário e urgente acabar com o estatuto dos directores de museus como funcionários de carreira, abrindo de resto a possibilidade, como tem defendido Raquel Henriques da Silva, de uma “contratação por projecto”, aliás já possível no âmbito geral do funcionalismo público.

Em traços genéricos, o documento estratégico apresentado é de facto o primeiro sinal político de reconsideração das realidades dos museus da esfera exclusivamente pública, ao propor nomeadamente a “transição faseada para tutelas municipais, ou afectação a Direcções Regionais de Cultura, de alguns dos 28 museus do Ministério da Cultura/Instituto dos Museus e da Conservação, seleccionados com base em critérios patrimoniais e museológicos, e assente em contratos-programas” e a introdução “a título experimental” de “compromissos de financiamentos plurianual no pressuposto de uma relação de gestão contratualizada entre as direcções de museus, a direcção do Instituto e o Ministério da Cultura”, entre outras medidas.

Não faz com efeito qualquer sentido, é mesmo aberrante, que estejam equiparados como agora um Museu como o de Arte Antiga ou o dos Coches e, por exemplo, um outro vincadamente regional, como o Joaquim Manso da Nazaré, ou até, para não se supor que a questão é exclusivamente de ordem regional, uma pequena e muito específica instituição em Lisboa como a Casa-Museu Anastácio Gonçalves. E é fundamental dotar os principais museus de instrumentos de planeamento estratégico com os respectivos meios financeiros.

Para além da concretização destas perspectivas importa notar que restam dois problemas importantes: um, o de autonomizar de facto e de jure o MNAA, como defendia Dalila Rodrigues, museu de que aliás a importância particular, não comparável a qualquer outro, foi confirmada pela sua escolha para primeiro exemplo de um novo modelo de directores, e outro, mais urgente e complexo, porque envolve um confronto político com tutela diversa, o ministério da Defesa, de impedir que a vontade expansionista do Museu da Marinha expulse do conjunto dos Jerónimos o Museu de Arqueologia, facto que a acontecer não só fragilizará em muito aquele museu, como correlativamente acaba com as características únicas do espaço para onde se transferiria, a Cordoaria Nacional.
Mas ao fim de tantos anos, e embora com tanto a concretizar, e com os inevitáveis problemas orçamentais, pode dizer-se: há uma estratégia para os museus, enfim.



(*) Por iniciativa de João Belo Rodeia, que depois de ter sido apagado director do Património nos governos PSD/CDS, e é agora Presidente da Ordem dos Arquitectos, houve um contra-documento de apoio ao projecto de Mendes da Rocha, subscrito por praticamente todos os “barões” da arquitectura. Rodeia disse que tomou a iniciativa a título individual e não como presidente, mas se não foi um documento da Ordem, enquanto instituição, foi com certeza outro lamentável exemplo da “ordem” dos arquitectos, do pensamento corporativo e auto-centrado que tanto se faz sentir no sector, ignorando o tal “terramoto” museológico e as prioridades, que são bem outras, do sector cultural português.



Augusto M. Seabra
www.letradeforma.blogs.sapo.pt