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Alexandre Melo, “Arte e Artistas em Portugal”. Capa do livro.

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Mesmo que o modelo possa ser cada vez mais contestado, não faltam ainda exemplos de livros em que um autor se propõe abordar de modo abrangente um determinado campo artístico, ou um determinado campo artístico num país, seja uma “história da fotografia”, uma “história da literatura inglesa” ou uma “história do cinema francês”. Do mesmo modo, existem panoramas do presente ou da história recente. Cada um é livre de escrever o que muito bem entender, no que considera ser as suas capacidades.

O caso já é mais francamente contestável quando se trata de uma encomenda oficial, e para promoção externa, feita a um autor único. É isso que sucede com “Arte e Artistas em Portugal” , encomenda do Instituto Camões a Alexandre Melo. Para crédito do autor, é sabido que ele se afirmou na década de 80, tendo sido por excelência o crítico “cúmplice” dos artistas que se consagraram ou emergiram nessa década, que foi, em todos os campos artísticos, nas dinâmicas culturais em geral, o da actualização estética em Portugal, e da “internacionalização”.

Nada a obstar que Alexandre Melo seja um crítico “parcial” e de “cumplicidades” – posicionamentos que também a mim me são caros, no sentido de claras tomadas de posição e de um diálogo privilegiado quer com os artistas quer com os públicos, em vez de um entendimento da crítica como exercício burocrático de recensões. Mas esse posicionamento “parcial” coaduna-se mal com a encomenda oficial e para divulgação exterior de uma perspectiva abrangente.

Não é preciso ir mais longe, mesmo que o âmbito seja outro: ao mesmo tempo que este volume de Alexandre Melo – que, se bem que sendo uma encomenda anterior, acabaria por só ser publicado na ocasião da Presidência Portuguesa da União Europeia (e foi aliás profusamente distribuído aos jornalistas que vieram cobrir as diversas cimeiras durante tal Presidência) – o Instituto Camões editou também um útil “Retrato de Portugal – Factos e Acontecimentos”, dirigido por António Reis, com uma longa lista de colaboradores (com as artes visuais a cargo de João Pinharanda).

Face a uma obra desta natureza, há uma tentação imediata de assinalar as omissões. Desleixado, apesar do tempo longo de feitura do volume, Alexandre Melo deu amplamente o flanco às objecções: de Joaquim Bravo (ausência verdadeiramente inexplicável) a João Maria Gusmão/Pedro Paiva e Ricardo Jacinto, passando por Ana Jotta, Ana Léon, Ana Vidigal, João Queiroz ou João Paulo Feliciano, etc., muitos são os artistas que não foram objecto de fichas específicas, cujas ausências, por assim dizer, saltam aos olhos. Todavia esse tipo de objecção, podendo ser a mais imediata, tanto mais dadas as características da obra, está longe de ser a mais substantiva.

Como já tive oportunidade de recordar na primeira parte deste texto, Alexandre Melo, além de crítico e curador, é também assessor cultural do actual Primeiro-Ministro, é doutorado em sociologia e professor. Pois bem, ou antes, pois mal, a obra em apreço está ferida de saltos epistemológicos inadmissíveis, para não dizer mesmo que fazem questionar a honestidade intelectual do autor. Tomemos o mais relevante exemplo na abordagem dos “Anos 90”, nomeadamente a páginas 85 e 89. Note-se que esta é a década imediatamente posterior àquela a que o autor esteve mais estritamente associado, àquela que, digamos, é mesmo, e com toda a legitimidade, a que lhe é mais cara em termos afectivos. A questão é que o salto a que procede é ilegítimo.

Ora, Melo começa por proceder a uma caracterização pertinente da viragem desses anos no contexto internacional (pág. 85), apontando designadamente “a recusa da ‘objectualização’ da obra de arte” e “o paradigma do artista enquanto etnógrafo”. Autor em tempos de um artigo no “Expresso” digno de uma antologia das simplificações, “Que viva a globalização!”, e de um livro de uma profusa bibliografia, tanta que a falta de reflexão sobre ela se torna patente no esquematismo da obra, “O que é globalização cultural?”, Melo não desconhece por certo como essa década de 90 assinalou em termos artísticos justamente os novos dados da globalização, mas também de um trinómio global/local/identidade(s), em qualquer caso novas questões de inscrição político-social e de modos de exposição pública.

Acontece que, depois do ter assinalado as características no contexto internacional a págs. 85/86, ele procede a um exemplar exercício de dislexia intelectual quando, abordando o contexto nacional a págs. 86/88, e tomando como momento de viragem (incontornável de facto) a exposição “Imagens para os anos 90” em Serralves, comissariada por Fernando Pernes e Miguel von Hafe Pérez (exposição que sucedia, recordo, à de “10 Contemporâneos”, a da consagração dos artistas dos anos 80, comissariada pelo próprio Alexandre Melo), começa o autor por escrever o seguinte: “A exposição inaugura, também, uma polémica que percorre toda a década entre duas formas de entender a prática artística: uma preconizando uma atitude mais essencialista [terminologia no mínimo muito discutível, note-se] e a-histórica, a outra mais alerta em relação às questões e problemas da conjuntura cultural e social, advogando uma prática artística interventiva e comprometida”. Mas logo depois, no parágrafo sucessivo, faz uma caracterização surpreendente: “O extremar destas posições denota, antes do mais, uma condição periférica que Portugal estava ainda longe de ultrapassar, (re)produzindo assim em solo nacional um debate que a Europa já havia assistido na década de 30”. Mas que quer ele insinuar com isto? Que houve na década de 90, e especificamente em Portugal, uma instrumentalização política da arte? No entanto, o que ocorreu de facto não terá correspondido sim, para seguir a terminologia do autor, à “recusa da ‘objectualização’ da obra de arte” e ao “paradigma do artista enquanto etnógrafo”, assinalados pelo próprio em termos de contexto internacional?

Para um doutorado em sociologia da arte, e mesmo tratando-se de uma obra de divulgação, esta dislexia conceptual assinala não só nem sobretudo desleixo mas sim preconceito – o que é tanto mais grave numa obra de divulgação para difusão sobretudo externa. A partir daqui, de facto, torna-se patente que o autor está encerrado no seu casulo dos anos 80, o que fatalmente limita de modo grave o propósito do livro.

Aparentemente para Melo os anos 90 foram no entanto um hiato, os anos do seu descontentamento, porque “A Primeira Década” (do século XXI) já seria de novo aquela em que “uma nova geração é fluente na língua franca da arte contemporânea”, no qual, em jeito de exercício de mandarinato, escolhe mesmo os seus favoritos, Vasco Araújo, Filipa César, João Onofre e João Pedro Vale – lista em que aliás, em relação a um precedente elenco de escolhas por parte do crítico, ocorre o súbito e inexplicável desaparecimento de João Vilhena.

Abordando um pouco mais em concreto as obras, Melo não deixa contudo de escrever, na pág. 116, que “Vasco Araújo e João Pedro Vale cruzam a questão da identidade individual com uma análise (desconstrução e desvio, teatralização e reconstrução) dos imaginários sociais colectivos”, formulação que nestes termos pode afinal caber ainda na tal outra do “paradigma do artista enquanto etnógrafo” (o que, acrescente-se, até será em especial pertinente no trabalho de João Pedro Vale, com frequência operando a nível simbólico e de desconstrução com elementos de “identidade nacional”) – só que desta vez já não se trata do tal extraordinário regresso à “década de 30” por causa da condição periférica, mas de, como escrito na pág. 120, “maturidade cultural da democracia portuguesa” (ena!), e de, na pág. 125, no parágrafo conclusivo, “cosmopolitismo congénito”, do qual Melo exorcizou quaisquer traços locais e de periferia (donde provavelmente as apontadas referências “nacionais” de um João Pedro Vale não têm afinal cabimento).

Tenho repetidamente assinalado que as questões de “gatekeeping”, de selecção, legitimação e poder no campo das artes visuais, se processam em Portugal de modo estreitíssimo. Não menos tenho acrescentado que o paradigma dominante, ou, como se queira, a estrutura do poder neste campo específico, tem origem no momento de afirmação dos anos 80, a exposição “Depois do Modernismo”, e recordado a propósito, não sem amarga ironia, que tendo aquela também tido um objectivo político claro, contra o sistema crítico encarnado em José Augusto França, acabou por a prazo produzir um outro crivo apertado e um sistema crítico de poder.

“Arte e Artistas Portugueses” é a esse respeito um objecto a ser devidamente considerado, já que o facto de um crítico que até é agora assessor cultural do Primeiro-Ministro produza em forma de livro um discurso oficioso sobre a arte em Portugal conduz o estreitamento ao seu grave pico unipolar, e unipessoal, para mais tão duvidoso em termos de escrúpulos éticos e integridade intelectual.


Augusto M. Seabra