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TEORIA DE UM BIG BANG CULTURAL PÓS-CONTEMPORÂNEOSÉRGIO PARREIRA2020-05-11
Vamos conjuntamente imaginar o seguinte cenário: Todos os espaços culturais no mundo, que gostamos e seguimos avidamente, desde galerias de arte, passando por museus, artistas individualmente, órgãos de difusão, a salas de espetáculo, decidiram na mesma semana, produzir uma inauguração, estrear um espetáculo, publicitar um novo artigo, ou realizar um evento especial… Como seria expectável, para promover e disseminar o acontecimento, todos estes agentes enviaram e-mails, newsletters, e publicaram nas suas redes sociais a boa-nova. Foi mais ou menos isto que aconteceu e continua a desenrolar-se numa periodicidade non-stop desde meados do transato mês de Março e sem um final anunciado. Tudo começou quando aquela que se pode considerar como a fração mais Ocidental do globo, que compreende as principais capitais comerciais do mercado mundial, e num período indefinido entre a primeira e a terceira semana do mês de Março de 2020, efetivando-se inequivocamente antes do final deste mesmo mês, declarou gradualmente um Lockdown. Num espaço temporal particularmente reduzido, o universo cultural e artístico, implodiu e renasceu reestruturado. Numa ação sem precedentes na história contemporânea da humanidade, os cidadãos do planeta foram encorajados a distanciarem-se fisicamente uns dos outros. Terminologias que até à data faziam parte de uma filosofia ficcionada de cataclismos no universo, distantes e indesejadas, tornaram-se palavras de ordem: quarentena, isolamento, confinamento e distanciamento social. Um incessante discurso protetor apelou e relembrou-nos repetidamente do quão vulneráveis somos, assegurando-nos que a nossa longevidade só poderia ser salvaguardada se respeitássemos um distanciamento físico dos outros seres humanos. Podemos afirmar que é característica comum da sociedade humana a necessidade de partilha e experimentação coletiva de significados, assim como uma experiência estética pode ser amplamente facilitada e amplificada quando partilhada ou impulsionada num contexto de entendimento de massas. Esta lógica é facilmente percetível se observamos, mesmo que superficialmente, ao longo da história da humanidade, a concordância que desde sempre foi seguida nas diretrizes formais da edificação de espaços culturais e de entretenimento. São escassos os exemplos em que a exposição do produto artístico tem como pré-requisito a experiência aleatória individual. Numa resposta contranatura ao ensaio estético, os agentes culturais e artísticos do universo, numa reação inata, atuaram vigorosamente na procura daquelas que poderiam ser as respostas para o perpetuamento deste ato coletivo, com degradado ajuste ao consumo individual. Numa espécie de precipitação virtual, assistimos e adaptámo-nos muito rapidamente ao consumo das novas soluções propostas, em muitos dos casos meros upgrades de sistemas informativos existentes, e noutros, reproduções visuais bidimensionais de séries de imagens em movimento (filmes) com aspiração a ocorrência estética. Não obstante das limitações óbvias das alternativas, a produção destas revelou-se extraordinariamente eficiente, e a oferta absolutamente incoerente com o potencial de atendimento individual. Ao sermos convidados a habitar um espaço caracterizado por uma não-geografia, os limites da mobilidade de consumo cultural dissipam-se e aquilo que até então funcionava como filtro catalisador de um estado de JOMO (Joy Of Missing Out), transforma-se num eterno estado de FOMO (Fear Of Missing Out) ou ansiedade de perda e falta de presença. Num passado presente e não muito distante, as plataformas culturais online tinham como ambição virtual a de despertar curiosidade do potencial espetador presencial. Perante a urgência da aplicação antagónica deste conceito, sem aniquilar os pressupostos iniciais, o anfitrião cultural canalizou as energias de um recrutamento presencial para um género de vampirização virtual. Examinada tangencialmente, esta transição faz imenso sentido sendo também a única viável e passiva de implementação. O espetador, seja este mais ou menos ativo, foi catapultado num período temporal extraordinariamente reduzido para um espaço de assédio cultural permanente, que transcende o entendimento dos próprios agentes. Antes da imposição por sugestão do distanciamento físico e social, o potencial espetador corpóreo pesquisava autonomamente a oferta cultural regional e mundial, com base num conhecimento disperso, de recoleção de informações assertivas, cruzadas e mesmo erráticas. Após a realização universal da benevolência do isolamento, a solidariedade informativa dos agentes transformou-se num género de bullying interativo, em que as newsletters, convites, sugestões semanais se transformaram em atualizações pluri-diárias. É capaz de ser ainda prematuro, ambicionar que os agentes entendam esta realidade, mesmo porque o espaço virtual é globalmente livre, predominantemente democrático e fluído, e ainda não assimilou os constrangimentos do calendário que o espaço geográfico impõe. Se na pré-pandemia os espaços físicos coordenavam calendários no intuito de facilitar um atendimento coletivo abrangente, num espaço virtual em que a presença e o calendário é categoricamente maleável, a espontaneidade ao incentivo torna-se tal-qualmente mais livre e menos limitada. São exemplo disto as centenas de convites, solicitações, estímulos, que rececionamos diariamente, por certo diferenciados, mas todos com um único objetivo, cativar-nos a estar presentes num endereço virtual. Na grande maioria dos casos trata-se de “inaugurações” de novas exposições, num formato mais ou menos consensual denominado de Viewing Rooms. Os Viewing Rooms eram particularmente desinteressantes há cerca de dois meses, hoje, estas exposições virtuais oferecem uma diversidade de documentação que vai desde filmes com e de artista, a comentários com curadores e galeristas, passando pela apresentação de obras e objetos, estejam estes disponíveis ou não para aquisição. Nos casos específicos das galerias comerciais o objetivo é muito claro, comercialização de obras de arte, e não é de estranhar que a sofisticação destes espaços remotos de visionamento esteja a passar por uma revolução quase diária. Simultaneamente às iniciativas individuais, há ainda “mega galerias” que acolhem virtualmente nas suas plataformas outras com caráter comercial, proporcionando a sites com menos capacidade “virtual” a contingência de se apresentarem rapidamente ao mundo sem prejuízo de investimento na criação de novas plataformas de disseminação. Ainda no contexto comercial, as feiras de arte que pré-pandemia eram um dos mais significativos geradores de receita e difusão das galerias, também tiveram inevitavelmente de se renovar. As feiras de arte são provavelmente o ponto de interrogação mais definido do mercado contemporâneo da arte. Estes eventos caracterizam-se por tudo aquilo que numa era de pandemia deve ser evitado, começando nas deslocações e terminando na intencional concentração de meios num espaço físico reduzido e temporal. Estes eventos, hoje, também transitaram para um formato digital que pode oferecer aos promotores uma garantia de receitas, e aos expositores um espaço quantitativo de apresentação de uma ou mais exibições partilhadas com os demais participantes e com acesso público universal. Se no caso das feiras de arte de renome se continua a tentar espelhar no espaço virtual o calendário dos acontecimentos físicos, nos restantes sítios virtuais de exposição a lógica é bastante diferente e tem pautado por uma agressividade reativa em muito representativa da incerteza e medo generalizado que afeta todo o sector. Adicionalmente às ininterruptas múltiplas inaugurações diárias, somos confrontados com as igualmente infindáveis apresentações ao vivo live, que requerem a nossa presença a uma hora específica num fuso horário a calcular, e que em alguns casos está sujeita a confirmação prévia. Palestras, debates, conversas, visitas, seja qual for o formato com a presença de múltiplos seres humanos no mesmo espaço de “discussão”, pode agora ser reajustada a tipologia de ecrã conversacional multi-seccionado numa zona não-geográfica, doméstica e universal. Algo também característico do assoberbamento comunicacional desta nova era, será aquilo que podemos considerar de não-notícias, também elas representativas de uma atitude precipitante face ao desconhecimento do paradouro da audiência. Espaços físicos que tinham por segura a identificação presencial do cliente ou público em geral, ao perderem esta faculdade exorcizam a incerteza através de notificações eletrónicas. As newsletters por vezes tornam-se repetitivas, aditam pouco à anterior, e muitas das vezes o único resultado da intervenção é o de ativar no recetor uma vontade desnorteada de atualizar as definições para trimestral, anual, ou cancelamento de subscrição. Seguramente que tudo o que refiro também apresenta vantagens, muitas delas estão sobriamente na aptidão da ativação de iniciativa, destacando-se destas a acessibilidade a um conhecimento temático, por vezes involuntário, cuja consequência não despoleta contraindicação e no pior dos casos mantêm-nos culturalmente mais informados. Antagonicamente à inflação da atividade online, assistimos à aniquilação dos recursos no espaço real. Numa operação sem precedente, o mundo cultural físico desfaz-se do supérfluo à manutenção, que numa fase inicial, com prolongamento, se traduz na dispensa de recursos humanos não essenciais à administração informática. Analogamente a este frenesim, iniciámos coletivamente um período de reflexão sustentado pela indefinição, sobre o que serão as nossas ações futuras enquanto consumidores presenciais da criação artística. Perante uma inédita filosofia do ceticismo, vamos reequacionar o atendimento condicionado a deslocações aéreas, a presença nos momentos caraterizados pela socialização, e potencialmente redefinir o conceito de celebração temporal que prioriza uma estreia e um termo, em prol de um “tempo-morto” intermédio. Colocando em perspetiva, e na antecipação da abertura ressuscitada do modelo clássico de usufruto estético pré-pandemia, é possível visionar o atendimento seguro a espaços de exposição de objetos de arte. Se existe, amanhã, um local protetor que não requer uma atitude individual ativa de interação, é por definição o espaço museológico, a galeria de arte, ou ainda qualquer espaço de aceção contemplativa. Ultrapassados os obstáculos de acesso ao local, no interior de um “museu” nada mais nos é solicitado para além da observação. Numa visão romântica, simultaneamente apocalíptica e real, podem estar prestes a acontecer, todos aqueles momentos, em repetição, que múltiplas vezes ambicionámos: o de estarmos sós com uma obra de arte. O instante na história que “habitamos” vai transformar irreversivelmente o mundo da arte. Apesar desta evidência, podemos com legitimidade humana, antecipar nostalgicamente o momento em que tudo regressará ao “normal”. No decorrer dos últimos meses testemunhamos passivamente a implosão de uma estrutura resultante de décadas de transformação e edificação. Durante este processo súbito e particularmente violento (em decurso), participámos de forma mais ou menos construtiva na reconciliação das partes, contribuindo para a manutenção do ânimo num momento de espera. É certo que não sofremos a total desintegração do nosso sistema arduamente conquistado e organizado, no entanto, à semelhança da teoria do Big Bang, fomos reeducados a depreender a “matéria”, o espaço expandiu-se com o tempo e impôs o aumento físico entre pontos em movimento. O instante atual, por aceção, não deixa de ser contemporâneo, mas o futuro do mundo da arte vai recriar-se indubitavelmente pós este momento.
Sérgio Parreira |