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O BURACO NEGROAUGUSTO M. SEABRA2010-10-29A tempestade sem precedentes que assolou o sector cultural em Portugal em finais de Junho e primeira quinzena de Julho deve ficar devidamente registada e ser rememorada, pelo que em si representou e porque agora, já sem os grandes holofotes mediáticos, persistem efectivamente muitos dos problemas, e alguns dos mais gravosos, no respeitante ao incumprimento por parte do Estado de compromissos contratuais. Vamos então aos factos. O orçamento para o Ministério da Cultura para este ano previa uma verba de 236,5 milhões de euros, menos de 0,4% do OE – um valor portanto quase residual – um dos mais baixos dos últimos anos. Com a aplicação do PEC, Plano de Estabilidade e Crescimento, entretanto aprovado na Assembleia da República, e de acordo com o art.º 49 do decreto-lei de execução orçamental, entrou em vigor um corte de 10% nas despesas correntes e, mais grave, outro de 20% no PIDDAC, Programa de Investimentos e Despesas de Desenvolvimento da Administração Central. Esse corte foi genérico, e estamos todos conscientes da gravÃssima situação financeira em que se encontra o paÃs – embora, há que dizê-lo, essa situação, longe de se dever apenas à crise internacional, é consequência do descalabro orçamental dos governos Sócrates, havendo portanto responsáveis. Já agora, e uma vez mais, recordo que o próprio José Sócrates, na sequela da derrota nas eleições europeias, citou como erro que o seu governo tinha cometido o de não investir suficientemente na Cultura, como o tinha feito na Ciência. A vacuidade e inconsequência desta declaração de compromisso estão à vista; depois de uma derrota e na iminência de novo e decisivo confronto, legislativo, o primeiro-ministro e lÃder do PS quis “amaciar†os “intelectuais e artistasâ€, com alguns dos quais teve mesmo uma reunião durante a campanha, escolhendo até uma actriz e realizadora, Inês de Medeiros, para figurar como independente nas listas em lugar proeminente – e vá lá saber-se o que faz ela de particular no seu cargo de deputada. É o costume: em momentos de campanha exibem-se como apoiantes algumas mais ou menos destacadas personalidades culturais, para supostamente dar uma legitimidade acrescida, quando são de facto meras “flores na lapela†– e só me espanta que haja ainda quem aceite continuar a participar neste jogo, afinal o de figurantes. É certo que sendo o esforço geral (embora, insisto, com responsáveis que não podem ser esquecidos) não há também nenhum razão ética para a Cultura ser poupada. O que é grave, no entanto, é adoptarem-se medidas como as decorrentes desse art.º 49 do decreto-lei de execução orçamental, que são cegas, sem atender a especificidades. Permitam-me recordar o seguinte facto, que as memórias são curtas: em Maio de 2003, salvo erro, a primeira medida de fundo do governo PSD/CDS de Durão Barroso, sendo ministra das Finanças Manuela Ferreira Leite, foi a extinção ou fusão de uma série de instituições públicas (donde resultou nomeadamente a extinção do Instituto de Arte Contemporânea, fundido com o Instituto Português das Artes do Espectáculo, num efémero Instituto das Artes, hoje direcção-geral). O PS protestou então vivamente, e com toda a razão, contra o carácter arbitrário e cego dessa listagem. Acontece que agora o mesmo PS, ou o seu governo, fez algo de equivalente. Mudam-se os tempos… Com efeito, e apesar do posterior recuo do governo – que atenção, foi só parcial e mesmo assim não está ainda traduzido em dispositivo legal de revogação de certas normas – não foram tidas em conta as particulares fragilidades do sector cultural e que as consequências dos cortes no sector eram absolutamente residuais no contexto geral da contenção orçamental – e este facto, há que sublinhar, foi de princÃpio aceite pela ministra Gabriela Canavilhas. Rememoremos então alguns factos concretos. Na sequência da entrevista da ministra ao Público de 25/06/08, anunciando os cortes, houve uma imediata reacção da Plataforma do Cinema, logo seguida de representantes doutros sectores, constituindo-se uma Plataforma das Artes – motivado pelas circunstâncias desastrosas, o facto é ainda assim de um relevo particular, que importa assinalar, o de pela primeira vez a “comunidade artÃstica†em Portugal ter reagido colectivamente. A agitação foi de tal ordem que o governo acabou por recuar, por intervenção expressa do primeiro-ministro, claramente receoso de novo conflito aberto com o sector, como aliás tinha acontecido no consulado de Isabel Pires de Lima – e, mantida ainda durante muito tempo, aquela não deixou de ser “remodelada†na primeira ocasião propÃcia. Foram assim anulados os previstos cortes de 10% no financiamento dos projectos deste ano, e descativadas 7,5% das verbas do PIDDAC, o corte passando assim de 20% para 12,5%. Uma vitória do sector cultural? Simbolicamente sem dúvida, e esse facto há também que registá-lo. Mas na prática as coisas são bem mais complexas – e aliás ainda recentemente, em 18 de Outubro, a Plataforma de Cinema tornou público que não foram ainda tomadas as medidas concretas inerentes ao acordo estabelecido com o governo. Mas há mais: para além do tristÃssimo episódio que foi o cancelamento das verbas para apoio a projectos no 2º semestre da Direcção-Geral das Artes, a ministra mantêm-se inflexÃvel num ponto que é maior gravidade e que anda esquecido: cancelar as contribuições anuais do Estado para o Museu Berardo e Serralves. Desta quebra de compromisso disse mesmo ela: “Não me parece dramático. Do meu ponto de vista, aliás, é a retenção que causa menos problemasâ€! Supõe isto que a ministra desconhece que, para além das suas habituais actividades visÃveis, os museus têm um trabalho de fundo na constituição de colecções que não pode ser simplesmente suspenso. Como escreveu João Fernandes, director do Museu de Arte Contemporânea de Serralves: “Interromper compromissos de pagamento já contratualizados significa perder oportunidades, desaparecer de cena e comprometer seriamente a possibilidade de uma retoma futura. É muito mais caro interromper e retomar uma colecção do que continuá-la, por paradoxal que possa parecer. Não honrar compromissos existentes ameaçará o prestÃgio e o reconhecimento internacionais que o Museu de Serralves construiu ao longo da sua existência, pondo em perigo o seu presente e o seu futuroâ€. Este é o grande buraco negro que anda esquecido, e que anda desaparecido do espaço público. Mais: havendo certamente um processo negocial a fazer (ou a decorrer já), não há a mais mÃnima ideia de se e como irá o Estado compensar os compromissos não assumidos este ano, tanto mais que se avizinha (se passar) um OE durÃssimo para o próximo ano. E demonstra que a ministra não faz a mÃnimas das ideias do que é realmente uma colecção pública de arte contemporânea. De resto, Canavilhas neste capÃtulo procedeu sistematicamente de forma imprópria: avisou previamente Berardo mas não Serralves, e chegou ao ponto de dizer, em audição parlamentar que “o acervo de Serralves não é público mas de Serralves, que é uma fundação privadaâ€, ignorando que foi o Estado que incentivou uma fundação de parceria público-privado (exemplar aliás, como tantas vezes tem sido sublinhado) e gestão privada mas que o acervo da Fundação é público, contrariamente à colecção Berardo. A energia e combatividade que tive ocasião de assinalar em Gabriela Canavilhas estão-se a tornar em arrogância e prepotência, e mesmo falta da dignidade e respeito que se exige a um responsável polÃtico, como no modo em que sacudiu a água do capote no tocante à DGArtes e á demissão do seu director, Jorge Barreto Xavier, ou no modo como se referiu a João Fiadeiro, coreógrafo e responsável por uma das mais bem sucedidas estruturas de base no sector coreográfico e na cultura em geral, o Atelier Real. Insistir em que há sinais que “fazem diferença de orientação estratégica†neste governo, ousar dizer que “no meio de tanta dificuldade, se calhar podemos parar [parar?!] para rever mecanismos, estabelecer estratégias a longo prazo que possam ficar menos dependentes destas flutuaçõesâ€, pode dizer alguma coisa da determinação e optimismos pessoais de Gabriela Canavilhas mas politicamente são puro autismo, uma quimera perigosa que não resiste minimamente à realidade dos factos. Augusto M. Seabra |